Para celebrar o centenário de Altamiro Carrilho (1924 – 2012), o gênio da flauta transversal, a Casa do Choro, no Rio de Janeiro, está lançando um site com o acervo particular do músico, doado pela família à instituição. São gravações, manuscritos, partituras, fotografias, troféus e objetos pessoais, catalogados pelo pesquisador Tomaz Retz, agora ao alcance dos fãs do mais antigo gênero de música popular urbana do Brasil: o choro.
Reprodução/YouTube |
Que manhã inesquecível em 1998, no Recife, aquela sexta-feira em que conheci Altamiro Carrilho! De noite, ele se apresentaria para convidados do Banco do Brasil na cobertura do prédio onde a Avenida Rio Branco cruza com o Cais do Apolo. Um lugar iluminado, à beira-rio.
Altamiro, com mais de 100 discos, fitas, CDs e sei lá mais o que gravados em 60 anos de carreira, dois anos antes havia participado do Projeto Tom Brasil. Uma ação de marketing cultural que reuniu uma seleção de craques da música instrumental brasileira, incluindo Armandinho, Dominguinhos, Raphael Rabello e outras feras.
Dava para notar que, muito mais que um instrumentista famoso, eu estava diante de um cara no ápice da maturidade (74 anos), ainda apaixonado pelo que fazia e de um bom humor contagiante.
Contava histórias impagáveis. Um dia, dizia ele, sofrendo horrores com uma apendicite, foi levado de ambulância ao hospital, no Rio de Janeiro. Lá, enquanto era anestesiado, só pensava em como iria pagar a despesa, já que a situação financeira nunca foi lá essas coisas. Mas quando acordou, o médico, todo sorridente, acelerou sua recuperação ao dizer que a conta já tinha sido paga: ao lado do pai, de quem herdara o gosto pelo choro, ele curtia os discos de Altamiro desde criança.
Gratidão é algo interessante. Geralmente as pessoas preferem retribuir um dano com um coice a agradecer, com o coração, um favor. Talvez porque ser grato pesa mais do que querer se vingar. Poucos enxergam que, ao receber um benefício com gratidão e reconhecimento, já quitam parte da dívida na origem.
Mas até as boas conversas chegam ao fim. Quando ofereci de presente a Altamiro uma caneta chique, com a logomarca do patrocinador do evento da noite, ele sorriu e desandou a falar de como se tornara conhecido no mundo todo, depois de rodar países como Alemanha, Egito, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, México, Portugal, União Soviética e mais um montão de lugares.
Numa turnê em 1963, um famoso maestro russo ficou encantado depois de assistir a um espetáculo em Moscou e fez questão de cumprimentá-lo no camarim, afirmando que acabara de ouvir um dos melhores flautistas do mundo. Resultado? Teve que esticar a estadia por mais três meses por causa de tantos convites para shows.
No último dia, o famoso maestro o convidou para um café da manhã. Os russos são conhecidos pela sua hospitalidade. Gostam de receber amigos e mesas fartas são o atributo principal desses encontros. Mesmo que seja apenas um encontro amistoso, modesto, é comum, ao final, oferecer um mimo ao visitante que seja muito relevante para o anfitrião em termos afetivos.
Altamiro recebeu uma velha caneta-tinteiro, com a ressalva de que ela havia assinado diplomas de grandes músicos russos. “Que presentão, hein!?”, pontuou o flautista brasileiro com os olhos marinando, dizendo que quase se ajoelhou diante do russo.
Ao chegar no Rio, um duro golpe: sua mala tinha sido violada e levaram a caneta que ele escondera entre meias e cuecas. E um dos maiores divulgadores do nosso choro, inconsolável, tomou o rumo de casa, onde se trancou no quarto por dois dias e chorou, chorou como nunca, segundo ele.
Pensando bem, o que esperar de uma nação que, anos mais tarde, acordaria estarrecida com a notícia de que o mais importante ícone do futebol (o troféu Jules Rimet, conquistado em definitivo após três vitórias em Copas do Mundo, em 1970) havia sido roubado e derretido?
A estatueta com 3,8 kg de ouro estava na sala da presidência da CBF, no prédio da Rua da Alfândega, no Rio, onde funcionava a entidade. O vidro à prova de balas da vitrine não serviu de obstáculo aos ladrões, que quebraram a moldura de madeira e levaram inclusive outros três troféus. O roubo foi considerado escandaloso pela facilidade com que os ladrões entraram e saíram do prédio carregando o maior símbolo da história do futebol brasileiro.
Embora a conexão entre um roubo e o outro possa parecer forçada, a comparação com a perda pessoal de Altamiro reflete uma questão cultural e histórica bem mais ampla. Triste Brasil.
Mas voltemos à sexta-feira em que conheci Altamiro Carrilho, há 25 anos. Preciso contar que ele esqueceu, na sala em que conversamos, a caixinha com a caneta que ofereci.
Não lhe fez falta, imagino. A que fez, era outra. Tinha a tinta da gratidão e do reconhecimento no bico da pena.
Uma bela história que merece ser compartilhada!
ResponderExcluirSempre aprendo com o Hayton um pouco da biografia do homenageado.
Eu colecionava discos de choro, o do Altamiro Carrilho era um dos prediletos.
Aqui em Brasília comecei a frequentar o Clube do Choro desde 1999, ano do projeto Brasileirinho 50 anos, do Waldir Azevedo.
Deve ter havido projeto em homenagem ao Altamiro.
Emílio.
Gratidão agora virou ciência, sendo pesquisada em grandes centros médicos. Não só o efeito na saúde em quem a expressa, como na de quem a recebe. Gratidão a tu eu tenho. Por trazer cenas da vida e de vida., que sem tua caneta ir visitar uma folha desejante ficariam apenas contigo. Compartilhar conteúdos é um ato de gratidão. E eu o acolho e o reconheço. Tenho discos do Altamiro, que nunca mais escutarei do mesmo jeito. Agora eles foram iluminados por esta bela crônica. Obrigado.
ResponderExcluirCrônica primorosa! Também sou fã do Altamiro , até tentei , há muitos anos, aprender a tocar flauta. Felizmente só tentei, porque ninguém merecia ser torturado pelas minha notas desafinadas. Altamiro Carrilho elevava, e ainda eleva, com sua música, nossas almas ao céu ! Quanto aos maus costumes neste nosso Brasil? Está cada vez pior , lamentavelmente.
ResponderExcluirDeus preserve sua memória e talento para escrever e nos brindar com tantos presentes valorosos! Grata!
ResponderExcluirhttps://youtu.be/veB0LYY2IUo?si=6VmivIP16j9WRzPS
ResponderExcluirAproveito para deixar alguns sucessos. 👆
Brilhante crônica e homenagem ao Mestre da Flauta considerado o flautista do mundo. Muito bom conhecer um pouco mais sobre este grande Homem da cultura brasileira. Parabéns Hayton.
É bom acordar lembrando que é quarta-feira e esticar o braço para pegar o celular em busca da crônica do dia.
ResponderExcluirE a de hoje me fez viajar no tempo, lembrar do programa da Tv Tupi (Altamiro Carrilho e sua Orquestra) que minha madrinha não perdia e que eu também aprendi a gostar. Anos mais tarde o Chorinho acompanhou meus bons momentos no Restaurante Moenda em que um grupo de senhores tocava chorinho para acompanhar o jantar e o romance dos namorados e fãs do chorinho. Eta lembranças boas vindas de uma excelente crônica! Entenderam agora porque são tão esperadas as crônicas das quartas feiras?
Bons tempos. Valeram as boas recordações com este músico espetacular !
ExcluirUma das referências da nossa MPB descrita com maestria. Retalhos de uma vida descritos com a sutileza das notas musicais.
ResponderExcluirEntão nosso mestre Altamiro era na verdade um perdedor de canetas contumaz e alguém há de tê-lo visto chorando dizendo que perdera a caneta de Hayton, pois mais importante que o valor de uma caneta é o gesto de gratidão nela embutida. Dedé Dwight
ResponderExcluirBelas lembranças. A gratidão, para quem a tem, é das melhores características de uma pessoa. Abração,
ResponderExcluirGradim.
Impagável mesmo todo o enlevo de partilhar da sabedoria de um grande artista como Altamiro Carrilho. Quantas histórias. Quantas emoções ele, certamente, transmitiu. Sem contar a felicidade que a sua música trouxe para tantos. Se os cobres não foram em razão condizente com a grandeza de sua obra, a realização de marcar com a vida e o instrumento vários corações foi gigante. Mais um troféu para a galeria de Hayton.
ResponderExcluirRoubar! Roubos! Ladroagens! Estás palavras nos acompanham desde o Pedro Álvares Cabral. E roubar uma taça ou uma caneta, isso é besteira, fichinha. Triste Brasil! Bela crônica homenagem ao homem da 🪈. E a nós, pelo prazer de ler.
ResponderExcluirAdorei a crônica. Não conhecia quase nada sobre o Altamiro, apesar de gostar muito de chorando.
ResponderExcluirConsidero a gratidão uma riqueza pessoal. Nunca espero gratidão dos outros, mas me sentir grata em relação aos outros me faz um bem danado. Todos os dias, ao acordar me ponho a listar mentalmente alguns bons motivos para iniciar o dia com gratidão. Aliás, essa è a minha principal etapa da oração. Orar para mim envolve três etapas: agradecimento, perdão e pedido. Acho que devemos sempre iniciar pelo agradecer e, talvez, seja o suficiente.
Imagine se o Hayton tivesse dado a Altamiro uma certa Caneta Azul!!
ResponderExcluirComo locutor da “potente” Rádio Marcelino Ramos, no meu primeiro emprego, em 1973, tocava muito e aprendi a admirar o choro artístico de Altamiro Carrilho.
Bela homenagem do nosso cronista!
Sua crônica me fez voltar a um final de semana, nos anos 90 do século passado.
ResponderExcluirNo sábado à noite, fui ao Teatro do Paiol assistir ao show de Altamiro Carrilho.
Quando terminou o espetáculo, observei que a bilheteria do Teatro ainda estava aberta.
Não tive dúvida:
Comprei ingresso e retornei ao Teatro no domingo, para ver novamente o grande espetáculo dessa lenda da flauta.
Na segunda-feira, a ida ao BB, para uma nova semana de trabalho, foi bem mais leve que o habitual.
Luiz Andreola
Comovente a simplicidade de Altamiro, como se não fosse o Pelé da flauta. Belíssima crônica!
ResponderExcluirQue crônica ! O comentário do Ademir sintetizou meu sentimento após a leitura dessa reverência ao talentoso Altamiro!
ResponderExcluirParabéns ,Hayton!
Já vinha achando, e hoje tenho quase certeza, que você foi escolhido pelo pessoal que criou a tão "decantada' IA, pra mostrar do que é capaz de produzir um cérebro e memória.
ResponderExcluirPorque são verdadeiramente inimagináveis e inusitados os temas com que, a cada semana, você nos faz brindar pelo brilhantismo com que os discorre.
Agora, pra homenagear o imortal Altamiro, você conta uma história tocante, comovente, oriunda de um detalhe, o esquecimento da caneta.
Acreditasse eu na espiritualidade, teria certeza de que Altamiro estaria agora, após tomar conhecimento de sua crônica, pedindo autorização ao Criador pra voltar aqui, só pra lhe fazer uma homenagem - tocar pra você, ainda que em um sonho que você tivesse antes da levantada pelas dores lombares...
Altamiro foi único... Bom no que fazia, inclusive nos bate-papos.
ResponderExcluirEsqueceu a caneta, mas, tenho certeza, não do significado. Ele era humilde e culto...
Não participei desse show em Recife, estava viajando. Fiquei triste por não ter conhecido um artista de que sempre fui fã. Quanto aos episódios, já tentam roubar nossa dignidade às vezes. Pobre país.
ResponderExcluirPosso imaginar a preocupação do grande Altamiro ao dar conta de ter esquecido a caneta presenteada pelo cronista; deve ter voltado à sua memória a caneta que o fez chorar por 2 dias e deve ter ficado encabulado. Rsrs
ResponderExcluirMais um episódio “simples” (!) rendendo uma bela história.
ResponderExcluirSó os melhores cronistas são capazes!
Músico maravilhoso, Altamiro!
ResponderExcluirBoas histórias ficam melhores ainda com persongens especiais.
ResponderExcluirAltamiro Carrilho é uma daquelas figuras que brilham eternamente. A história da música brasileira tem nele um capítulo muito especial.
Uma alegria receber esse presente na forma de crônica.
Interessante o trocadilho do título: A flauta que fez.
ResponderExcluirImportante a homenagem ao grande compositor com a criação do site e a publicação de sua vasta obra em prol do público.
Fiquei surpreso com a sua origem e produção. Mais surpreso ainda com o comparativo do furto da caneta russa e a taça Jules Rimet protegida a sete chaves à prova de balas.
De fato, é triste tais fatos no Brasil.
Feliz o desfecho da caneta doada pelo autor do texto, em referência ao aspecto gratidão e afins.
Parabéns por mais uma missão cumprida.
PS: Espero que não esteja esquecido de dar do projeto do livro.
Meu primeiro emprego foi em uma Emissora de Rádio. Eu era operador de som e coloquei muitas vezes os discos (de vinil) de Altamiro Carrilho para "rodar". Suas músicas fizeram parte de minha juventude. Só tenho lembranças boas. Minha gratidão por me fazer recordar momentos tão serenos, quando minha maior preocupação, naquele momento, era escolher qual música iria ao ar. Não tinha a menor noção do que viria pela frente...
ResponderExcluirMeu Amigo, que abordagem bacana, essa de trazer Altamiro Carrilho às nossas lembranças. O Choro quando tocado pela sua flauta mágica, era lindo. Sobre a questão do estado de gratidão, diante de situações que permeiam o nosso cotidiano, é um maravilhoso exercício para a alma. Acordar grato pelo dia, pela saúde, pelos Amigos, pela vida, enfim, nos faz um bem danado.
ResponderExcluirabração!!!
Mário Nelson.
Talvez essa homenagem seja insuficiente para registrar os fatos meritórios pelos quais você viveu e presenciou. Mas podemos nela resumir e reconhecer o responsável para que mais tarde quando a saudade se fizer presente, você tenha outras recordações para nos agraciar com tão belo relato.
ResponderExcluirAltamiro foi um ícone mundial da música. Merece todas as homenagens e reconhecimento. Infelizmente quase desconhecido pelos mais jovens. Hayton prestou justa homenagem e nos fez refletir sobre a importância da gratidão..
ResponderExcluirTinha e tenho um grande apreço por ele … Costumava ir conversar com ele após as apresentações … A carinha e o coração do avô que todos gostaríamos de ter vivo ao nosso lado … Um ser de luz ! Pouco reconhecido no Brasil, aliás como de costume, para ser pontual …
ResponderExcluirComentário do anônimo é meu : Mário Edson!👆👆👆
ResponderExcluirSempre Nos presenteando com ótimas crônicas. Tornou-se um craque, Amigo Hayton
ResponderExcluirMais uma bela e instrutiva crônica. Mesmo admirando Altamiro não sabia do reconhecimento internacional. Bom que ele vivenciou esses momentos.
ResponderExcluirMeu Caro Hayton,essa que Você nos contou sobre Altamiro,só nos faz lembrar que Recordar é Viver! Fantástico!
ResponderExcluirParabéns sempre!