Quinta-feira passada, no interiorzão da Bahia — onde até o silêncio cochicha saliências —, um episódio digno de novela mexicana com direção de Woody Allen sacudiu as redes sociais. Aconteceu num hospital, onde um homem de 48 anos, internado com cólicas renais, enfrentaria uma crise ainda mais dolorosa: a da simultaneidade afetiva.
Tudo começou quando, num raro eclipse de juízo, esposa e amante resolveram visitá-lo no mesmo horário no “Dia dos Namorados”, cada uma munida de lanches, sucos, toalhas e expectativas. A recepção quase virou ringue, com troca de farpas e olhares enviesados que prenunciavam escândalo em andamento.
Do quarto, entre uma pontada no rim e outra no orgulho, o paciente pressentiu a iminente tragédia. Não hesitou: arrancou o soro do braço, correu até o banheiro, abriu a janela e — num rasgo de instinto ou desespero — atirou-se ao mundo com avental, chinelos e a autoestima em petição de miséria.
O vigilante, acostumado a chiliques e surtos de toda sorte, ficou perplexo:
— O homem passou voando pelo jardim, gritando que ia embora… com a bunda de fora!
As duas tentaram alcançá-lo, mas ele sumiu na poeira como quem abandona, no susto, a antiga pele no varal do destino.
Coincidência — ou pegadinha cósmica —, um amigo meu trafegava pela área quando freou o carro diante da figura em trajes sumários, ofegante, olhos de espanto, como quem fora expulso da própria história sem direito nem a escova de dentes. Por um instante, achou que fosse um assalto em andamento. Mas bastou o homem entrar e abrir a boca para o teatro mudar de ato.
Era um sujeito articulado, desses que filosofam no meio do caos. Entre suspiros e goles da garrafinha d’água do meu amigo, começou a discursar sobre as contradições do amor moderno, com a desenvoltura de um Sócrates de porta de pronto-socorro.
— As pessoas vivem negando o óbvio — disse, ajeitando o avental para esconder as partes pudendas. — Homens e mulheres não nasceram para a monogamia. Isso é invenção de igreja e novela das nove. Como já dizia Raulzito, “amor só dura em liberdade, o ciúme é só vaidade...” e “quem gosta de maçã irá gostar de todas, porque todas são iguais...” E o Diabo rindo de todo mundo!
E seguiu, entre frases e pausas dramáticas:
— A fidelidade virou vitrine de loja: bonita por fora, oca por dentro. O desejo é teimoso como formiga em pote de açúcar: se reprime uma aqui, outra escapa ali. O pior é que nos ensinaram a censurar não só o próprio corpo, mas o da cara-metade também. Um pacto cruel de vigilância mútua.
— Não defendo a sacanagem pela sacanagem — completou, com ares de quem já atravessou descalço o deserto de espinhos dos sentimentos —, mas o relacionamento aberto, às vezes, é mais honesto que essa encenação do “até que a morte nos separe”, com o coração maluco pra pular o muro e fazer check-in noutro endereço.
Meu amigo, monógamo convicto, que só escutava e não tolera guerra conjugal nem como espectador, faz o que lhe parece prudente fazer: cede uma bermuda e uma camiseta esquecidas no porta-malas e para num boteco à beira da estrada, para abrir uma cerveja e organizar aquele caldeirão de teorias. Nem bem a segunda garrafa chega, surgem as duas mulheres do enrosco, faiscando pelos olhos e armadas até os dentes — de palavras, é claro.
Não houve tempo para trégua nem habeas corpus emocional. O filósofo virou novamente um Usain Bolt e desapareceu pela porta dos fundos, sem agradecer a saideira, deixando no ar uma dívida antiga que nem Freud consegue quitar: entender o amor sem manuais.
E as duas ficaram ali, encarando meu amigo. Quiseram saber o que o fugitivo havia dito antes da chegada delas. Como não é homem de meias-palavras — ao contrário, é de uma fidelidade canina no seu relacionamento afetivo —, narra com precisão quase jornalística o que ouviu.
Para sua surpresa, elas se entreolharam longamente, respiraram fundo e saíram juntas, lado a lado, como quem digere um xarope amargo, mas necessário. Um silencioso “é... faz sentido...” parecia ecoar entre as mulheres.
Ele pagou a conta e voltou pra casa. Afinal, como costuma dizer, não nasceu para ser árbitro de enroscos alheios — muito menos para testemunha ocular de adultério filosófico.
Vai que o delegado resolve intimá-lo, não para depor sobre o sumiço do paciente do hospital, mas para esclarecer, com todas as letras, o que é o amor e suas nuances em tempos de redes sociais e geolocalização.
Rir é o melhor dos remédios !!
ResponderExcluirQuarta feira eu sempre começo o meu dia rindo !!😄
ResponderExcluirO filósofo fujão daria o mesmo direito à sua “amada esposa”? Com certeza não . Nelza Martins
ResponderExcluirTodo filósofo tem coração grande e acolhedor: Sempre cabe mais um (uma).
ResponderExcluirJá os rins…
Uma boa explicação, baseada na filosofia, pode sanar muitas divergências. A maturidade ajuda, este caso comprova essa tese. Viva a harmonia.
ResponderExcluirBom dia! Obrigado por me fazer rir tão cedo e tão frio aqui na Região Serrana do RJ! Abs
ResponderExcluirComeçar a quarta-feira rindo é bom demais, uai!
ResponderExcluirImagino a cena do filósofo fujão com duas amantes no seu calcanhar.🤣
Sorte dele ter encontrado um psicalista para amansar as mulheres apaixonadas pelas diferentes formas de "amor". Parece-me que, após ouvir o monógamo psicológo, saíram do bar prontas para formarem um trisal, chegando no consenso de que a melhor coisa será participar da festa de forma igualitária em um novo tipo de relacionamento. A pergunta é: elas darão o troco?
Simbora rumo à próxima e divertida crônica. Valeu Hayton
Quem sou eu pra dar pitacos nesses casos controversos, mas parece que você, meu caro Oceano, pegou o espírito da coisa: pode estar brotando um trisal – seja lá o que isso signifique. 😂
Excluir"Nesse mundo de meu Deus tem cada inquilino!" Já dizia minha avó.
ResponderExcluirKkkkkk
Há um ditado popular que diz "de um limão,,se faz uma limonada", taí uma "limonada" cronicada, a partir de um "limão" notícia rsrsrs
ResponderExcluirLi esta notícia no periódico de Salvador Correio da Bahia e ri mais da ligeireza do fujão que da âmago noticiado.
Agora fico sabendo que o grande Hayton teve informação, de fonte fidedigna, do fato narrado no periódico, e, para não deixar passar em branco, nos premiar com esta bela crônica, bem acolchoada da verdade-verdadeira e de lições de filosofia partidas daquele binamorado em situação de perrengue inusitado, sem deixar cair seu[dele] "ânimus amorosus".
Filosofar é preciso, até mesmo nesses tempos de atropelos à lei processual para obtenção de confissões inesperadas e,por vezes, desconexas e inúteis.
Soube, por fontes não fidedignas, que as pedras nos rins de fujão se foram, sem necessidade de intervenção cirúrgica qualquer, na mesma disparada empreendida para salvar-se das enamoradas e que, a equipe médica do hospital já avalia estudar este novo método para aplicação alternativa em pacientes que possam disparar na mesma velocidade estimada e atribuída ao bienamorado.
Ao pé da letra, Tonho, não sei se meu amigo contou tudo que sabe. Nem mesmo se de fato ele esbarrou na criatura em fuga. De todo modo, o que é a verdade diante uma uma versão razoável?
ExcluirComo é bom ler sobre fato real acontecido, com pitadas de humor filosófico da vida como ela é. Nelson Rodrigues ficaria com inveja. Parabéns Hayton, por mais uma quarta-feira bem "cronicada".
ResponderExcluirEssa estratégia de "treinamento" nem Usain Bolt imaginou! Ainda mais com reflexões filosóficas! Kkk
ResponderExcluirCrônica "a la Jorge Amado", com seu Flor no papel principal, dando-nos pitadas de humor e filosofia para a véspera do feriado.
ResponderExcluirDepois da performance na corrida ao fugir da decapitação, ficará muito difícil ser fiel a dois corações.
ResponderExcluirAconteceu caso semelhante conosco, do BB Agência Centro BH. Na nossa plataforma, pagávamos AM de Fundo de Garantia por tempo de Serviço. Ocorre que o beneficiário havia falecido e aí a esposa apareceu na agência para tentar sacar o saldo. Orientada para os trâmites legais para receber, marcamos para a próxima semana. Na semana seguinte, apareceu a viúva e, ninguém sabe como “a outra” soube, também foi lá na agência tão logo o expediente abriu. Na mesa do Supervisor o bate boca foi inacreditável.... Cada uma dizendo que era detentora do espólio do falecido. Nosso supervisor, não titubeou... fechou a mesa, levantou-se e deu o veredito: “as senhoras vão conversar lá na delegacia para ver quem é que tem o direito... Aqui ninguém recebe um tostão”. Histórias não contadas do BB.
ResponderExcluirCom exceção do salto pela janela em diante, eu já passei pela mesma situação do cidadão quanto tive apendicite, situação contornada graças à benção de Deus ter me dado 5 irmãos bem fortes que salvaguardaram meu ambiente de recuperação. Dedé Dwight
ResponderExcluirO pior é a dificuldade para discordar com bons argumentos quando o fujão chama o instituto da exclusividade nas relações de hipocrisia. Felizes os que conseguem manter relações abertas sem sofrer a dor dos pesados valores de uma formação judaico/cristã.
ResponderExcluirFico imaginando as duas depois do salto, sem vara, pela janela. Será que se entreolharam e pensaram: "hum, pintou um clima", kkkkkkk
ResponderExcluirNunca me vi numa situação dessa, mas já vivi algo parecido. Quando tinha 23 anos, conheci uma desquitada na praia. Conversa vai e vem, que terminamos no seu apartamento. Lá pras tantas da madruga, cansado de love e cerveja, terminei adormecendo na casa da anfitriã. Assim que peguei no sono fui despertado com batidas na porta do apartamento que ficava no primeiro andar. Era o ex marido. Entrei em pânico. Na dúvida entre me esconder no guarda roupa e pular pela varanda, optei pela segunda. Quando me preparava para o salto, uma voz lá de baixo ecoou: "não faça isso". Como ninguém atendeu a porta ele resolveu descer e chamar a criatura pelo nome para que ela o ouvisse. Nesse momento recuei e desisti do salto sem vara. A porta foi aberta e eu constrangido só vi o cara dizer: "não tenho mais nada com essa mulher. Só vim pegar minha bolsa de gelo porque estou com enxaqueca. Esse abacaxi não mais me pertence." Que alívio. O cara foi embora e eu peguei meu bugre velho e me piquei também. Depois desse dia, nunca mais fiz visita em domicílio. Ufa!
ResponderExcluirExcelente!
ResponderExcluirDesta vez você revelou os traços profundos da fragilidade moral contemporânea. O enredo — um homem internado que tenta fugir de um embate entre esposa e amante no Dia dos Namorados — serve como metáfora do colapso ético que muitas vezes permeia as relações humanas hoje, marcadas por promessas quebradas e escolhas imprudentes.
ResponderExcluirExpôs, com rara habilidade habilidade, a desordem afetiva não de forma panfletária, mas pelo riso sutil e pela caricatura do cotidiano.
A cena da fuga apressada do protagonista — avental esvoaçando, soro arrancado e orgulho em frangalhos — não apenas provoca o riso, mas também sugere o vazio existencial de quem tenta conciliar vidas paralelas, ferindo os vínculos mais elementares de confiança e respeito. Parabéns
Gostei especialmente da “simultaneidade afetiva”; de “uma pontada no rim e outra no orgulho”; do “Sócrates de porta de pronto-socorro”; do “desejo é teimoso como formiga”; e da referência dramática ao “pacto cruel de vigilância mútua”.
ResponderExcluirO autor foi cirurgião hilário pra descrever a pantomina!
Todo esse discurso e até a hipótese do trisal não resistem à eventual falta de simetria de desejos e sentimentos entre os envolvidos. Basta um deles gostar ou desejar mais do que os outros, em qualquer momento, que a abertura filosófica desaba.
Sem “habeas corpus emocional”!
Será uma via de mão dupla,ou só serve para o homem?
ResponderExcluirSerá que esse tal relacionamento aberto ensejaria uma redução no cada vez mais crescente índice de “feminicídio” ? Eis aí uma pesquisa que poderia ser feita!! Quanto ao texto, mais uma genialidade do Hayton! (Altamirando Ferreira da Silva).
ResponderExcluirExcelente!!! Ainda ben que as armas foram palavras, e a reflexão levaram a um consenso..........
ResponderExcluirNão sei se rio ou se choro.
ResponderExcluirDemais, esse enrosco.
Mas, gostaria de saber o que aconteceu depois, em casa.
Por isso, aguardo a continuação dessa crônica.
Acho que vai ser interessante.
Essa "simultaneidade afetiva" é insumo para muitas crônicas, romances e outras formas de "entretenimento". Poucos, incluindo a ala feminina, nunca tiveream o sentimento, mesmo em silêncio e de forma platônica, de ter uma "queda" por alguém que fez o coração agitar-se em ritmo anormal. A questão toda está em ir além do que foi "padronizado" pela "ética conjugal"...
ResponderExcluirSerá que esse tal relacionamento aberto ensejaria uma redução no cada vez mais crescente índice de “feminicídio”? Eis aí um assunto para uma boa pesquisa!!Quanto ao texto, mais uma genialidade do Hayton!!
ResponderExcluirPelo visto prevaleceu a paz
ResponderExcluirO que é o amor, sinceramente, não sei. Mas, se a violação ou transgressão da regra da fidelidade conjugal imposta aos cônjuges termina em uma delegacia, definitivamente esse amor não cabe no conceito de precisão de dois grandes do cancioneiro popular: "... se o amor é como um grão, morre, nasce trigo. Vive, nasce pão." e "...por ser exato, o amor não cabe em si, por ser amor, invade e fim."
ResponderExcluirSe homens e mulheres não nasceram para serem monogâmicos, isso eu também não sei. Mas os riscos da poligamia, pular um muro aqui, uma cerca ali e até a janela de um hospital, são bem menores de que algumas pedras nos rins. Deve ter mais gente morrendo de infecções renais do que pulando cercas.