agosto 13, 2025

João vive. Viva!

JOÃO VIVE. VIVA!
Hayton Rocha


Em Copacabana, onde a maresia corrói metais, mas conserva memórias, vive João Cândido de Lima Neto. Desde fevereiro de 1949, quando trocou o expediente no Banco do Brasil pelos passeios matinais entre o Forte e o Leme, João caminha pelas calçadas como quem relê capítulos de um livro cujo final só ele sabe. Já são 100 anos de prosa e verso — e o enredo, veja só, ainda se escreve com graça e espanto.

Figura carimbada do bairro, virou personagem de uma edição especial de O Globo sobre centenários cariocas. Ganhou manchete não apenas por atravessar um século em pé, mas por ser raiz invisível da cidade — dessas que não aparecem nas fotos, mas sustentam o que nelas floresce. Um alicerce discreto, carregando a alma do lugar sem alarde nem holofote.


Reprodução/O Globo - Fotografia: Guito Moreto

Na entrevista, falou da Copacabana quase rural, das noites apagadas pela guerra e do fiscal de praia que só liberava banho entre 14h e 16h. Imagine só: pedir licença para mergulhar no Atlântico! A paranoia era tanta que até o pôr do sol parecia precisar de crachá. João conta isso com um riso discreto, ajeitando o chapéu de feltro marrom, como quem carrega no bolso as chaves do tempo — e ainda sabe onde cada uma se encaixa.

Ele também coleciona apegos particulares — além de moedas raras e carrinhos em miniatura que já lhe renderam menções em revistas britânicas. Guarda gargalhadas de netos, buzinas de bonde, cafés na Colombo, memórias de Sinatra no Maracanã e sorrisos que ficaram presos nas entrelinhas do passado. Caminhou sozinho até os 95. Hoje, ladeado por cuidadora, desfila sua elegância centenária entre jornaleiros, chaveiros, porteiros e pipoqueiros. Lembra um samba de Cartola ou Noel Rosa: a gente reconhece a letra mesmo sem escutar a melodia.

Tem três filhos, quatro netos, três bisnetos e uma curiosidade sem freio. Diz a filha, Renata, que o segredo está nos livros. Ou nos passos. Ou, quem sabe, no dom de continuar achando graça onde já não há tanta novidade. Um talento singular: manter-se jovem sem precisar parecer — talvez o mais subversivo dos gestos num mundo viciado em juventudes performáticas.

Penso nisso tudo e me pego imaginando o que diriam cientistas ao ver João atravessar os últimos 100 anos com essa leveza. 

Justamente na página ao lado da reportagem, um geneticista de Harvard, David Sinclair, crava: “A primeira pessoa que viverá 150 anos já nasceu.” Segundo ele, até 2035 haverá uma pílula capaz de reiniciar nossas células — como quem clica em atualizar sistema na tela da vida. Rugas a menos, mitocôndrias a mais. Versão 2.0 da existência.

Mas de que adianta viver 150 anos se não der pra restaurar as configurações originais de fábrica? Não falo de articulações novas ou do viço da pele. Falo da capacidade de se encantar com a caneca trincada que não vaza, de rir do cachorro desafinado que late pro motoqueiro apressado, de bater à porta do vizinho só pra desejar bom dia, de “beijar o português da padaria”, como diria Zeca Baleiro. E é aí que João, com seu passo miúdo e olhar curioso, parece já ter descoberto o segredo que nenhuma cápsula trará: viver mais é menos urgente que viver melhor.

Se é pra sonhar com longevidade, que seja com espaço interno pra carregar reservas de encantamento — também de indignação, claro. O mesmo João que, certamente, se indigna, à sua maneira, com um país que tolhe a dignidade. Onde a miséria não seja confundida com estatística, a desigualdade não seja banalizada e criança tenha infância, não trincheira. Onde ninguém precise pedir licença pra existir ou prova de endereço pra ser tratado como gente.

Um país que abrace mais e castigue menos. Onde segurança não seja privilégio nem sentença. Onde o futuro não dependa de cápsulas milagrosas, mas de escolhas conscientes. Onde democracia não seja aplicativo com bug, mas organismo vivo, corrigido quando necessário por gente capaz — sem Messias de ocasião nem vilões convenientes.

E se, por capricho da biotecnologia, você que me lê for a primeira pessoa a soprar 150 velinhas, que seja com a força de quem entendeu que a vida vale mais pelas coisas que não custam: a lembrança da mãe oferecendo chá de eucalipto e manta de chenille no arrepio da febre; do pai pelejando com o chiado do rádio antigo justamente na hora do gol.

Ou, faça como João: aguarde o apito final do Grande Árbitro fechando o jogo — quem sabe, um pouco antes dos 120 — com gratidão no bolso, lucidez no olhar e as alpercatas de sempre, leves o bastante para mais um passeio sereno pelas calçadas do acaso.

agosto 06, 2025

Em nome do mau cheiro, amém

EM NOME DO MAU CHEIRO, AMÉM
Hayton Rocha


Só me faltava essa! Christine Connell, influenciadora digital norte-americana, viralizou nas redes sociais, no mês passado, ao garantir que passou sete anos sofrendo com uma infecção crônica nos seios nasais causada por um pum próximo ao rosto. Isso mesmo: flatulência facial. Uma bufa com mira certeira.


Reprodução/Redes Sociais


Segundo a moça, tudo começou quando, recuperando-se de uma cirurgia no tornozelo, cochilava num quarto de hotel ao lado do então namorado. O rapaz, tomado por uma emergência intestinal incontrolável, soltou aquilo que os antigos chamavam de "vento ruim". E bem perto do rosto da amada.


Daí em diante, dores faciais, congestão nasal permanente e infecções recorrentes. Nem o velho e confiável Vick Vaporub, disponível nas melhores prateleiras do mercado farmacêutico, aliviava o desconforto. Foi assim que começou a via-sacra por consultórios médicos e exames dignos de enredos de ficção científica.


Até que, numa dessas jornadas diagnósticas, um laboratório revelou o mistério: Escherichia coli — a popular E. coli — instalada nos confins das vias respiratórias da jovem. Uma bactéria nativa das vísceras agora promovendo intercâmbio cultural nas cavidades paranasais. A equação foi montada em segundos: do cólon dele ao nariz dela, voo direto, sem escalas, sem visto alfandegário nem pedido de desculpas.

Quem sou eu para me meter com essas trocas gasosas conjugais? Sei apenas que, durante longas convalescenças, muitos casais dormem como cartas de baralho: valete, dama ou rei, cada cabeça para um lado. E, nessas posições alternativas, o inesperado costuma bater ponto com razoável frequência, muitas vezes servindo até de despertador em plena madrugada. 

Não sou totalmente leigo no assunto, claro. Posso afirmar que já vi casamentos terminarem por muito menos — e com bastante barulho no tribunal. Quando não há filhos em disputa, bens a dividir ou pensão para reivindicar, abre-se espaço para o que chamo de litigância olfativa. Inventa-se uma tragédia bacteriológica com apelo emocional e potencial indenizatório digno de um seriado de TV explorando o universo jurídico.

Ouvi de um patologista clínico amigo meu, dos mais confiáveis e discretos — daqueles que jamais postariam um parecer no Instagram — que gases intestinais não transmitem bactérias. A E. coli, segundo ele, provavelmente veio de ambiente hospitalar ou de alguma intercorrência pós-cirúrgica. Mas a moça sustenta sua versão original com fervor evangélico. E, convenhamos, isso rende bem mais curtidas que qualquer boletim técnico da Organização Mundial da Saúde.

Desde então, virou sacerdotisa da higiene nasal. Espalha tutoriais sobre lavagem com soro fisiológico, prega vaporizadores e compartilha sua via-crúcis respiratória como quem revela a terceira parte dos segredos de Fátima. Seus seguidores se dividem entre o ceticismo clínico e a fome por escândalos — que, diga-se, rende mais que barris de petróleo em tempos de guerra no Oriente Médio.


Não vou negar, ando apreensivo com o precedente. Vai que a moda pega e os tribunais passem a julgar flatulências litigiosas? Já vislumbro cláusulas contratuais em futuros casamentos: “As partes concordam que odores involuntários emitidos no convívio não constituem ofensa nem justificam pedido de indenização, salvo se...”


E olha que tem odores pra todos os desgostos. Um bafo matinal já basta pra azedar o café da manhã — às vezes, nem “bom dia” salva. Dentista resolve? Talvez. Fio dental, um chiclete e muita fé. O chulé, então, muda o microclima do lar e, em casos graves, exige intervenção médica — ou exorcismo. Já o temido combo dos horrores — bafo, bufa, chulé, precedidos de um arroto — constitui uma amostra grátis dos confins dos infernos.


Mas se cada micróbio da vida a dois for parar no tribunal, com laudos técnicos, perícias olfativas e vídeos explicativos, nosso Judiciário — que já tropeça com ações de guarda, alimentos e xingamentos via redes sociais — vai implodir. Estaria vindo aí o Direito dos Sentidos, com varas específicas para flatulências, hálitos, secreções e outras intimidades litigiosas.

Para os casos mais cabeludos, talvez se convoque uma junta formada por dentistas, otorrinos, podólogos e psicanalistas. E, quando tudo mais falhar, que se chame um padre — porque tem situações em que só reza brava dá conta dessa biodiversidade.

Melhor rir antes que algum juiz aceite denúncia de flatulência dolosa com agravante de mira certeira — a mais antiga modalidade de assédio conjugal desde os tempos de Adão e Eva. Crime sem pena, mas com cheiro de sentença inapelável.

João vive. Viva!

JOÃO VIVE. VIVA! Hayton Rocha Em Copacabana, onde a maresia corrói metais, mas conserva memórias, vive João Cândido de Lima Neto. Desde feve...