outubro 29, 2025

O botão secreto

O BOTÃO SECRETO

Hayton Rocha 


A notícia de que Lúcia e Zé Alípio celebraram Bodas de Ouro sábado passado deixou feliz uma legião de amigos. Meio século casados é prova de que a vida pede amor, cuidado, entrega, renúncia... e algum botão secreto de paciência.



Por falar no tal botão secreto, quando alguém não nos convence no grito, logo apela para uma pesquisa. De preferência com sobrenome estrangeiro de pronúncia enrolada e pronto: argumento vira verdade revelada em tábua de mandamentos. Como, por exemplo, “publicada na Computers in Human Behavior pela Universidade de Heidelberg”.

Outro dia, li sobre um estudo desses. Dizia que 25 jovens entre 18 e 30 anos toparam passar 72 horas sem criticar a cara-metade. O número ímpar sugeria relações mais... flexíveis entre alguns deles. Nada de resmungos sobre toalha molhada na cama, a gaveta que ficou aberta ou a demora para escolher roupa. Três dias inteiros de abstinência conjugal.

Segundo o relato, o resultado foi tão impressionante que o cérebro dos participantes parecia em lua de mel perpétua, disparando hormônios como fogos de réveillon. Havia até gráficos provando que reclamar menos equivale a viver mais e melhor.

Por alguns instantes, acreditei. Imaginei casais salvos de farpas verbais, do divórcio e até de cunhadas e sogras, apenas fechando a boca por 72 horas. O casamento deixaria de ser contrato civil para virar programa de reabilitação neuronal.

Mas veio o rodapé da notícia: “se você acreditou, lamento, nada disso aconteceu”. A tal pesquisa falava, na verdade, de abstinência de celulares. Não de resmungos conjugais. Coincidência ou não, justamente quando a Apple lançava o iPhone 17, anunciado como grande revolução depois de anos de mudanças discretas.

A decepção não foi tão grande. Trocar uma queixa diária por uma olhadinha no celular a cada dez minutos dá quase na mesma: ambos liberam dopamina e corroem lentamente a sanidade.

Os alemães de Heidelberg — sempre eles, que já nos deram Beethoven, Beckenbauer e cerveja — reuniram 25 adultos para um retiro tecnológico. Durante 72 horas, podiam usar o celular só para funções vitais: estudo, trabalho ou aquele telefonema rápido para saber se os pais estavam bem. Nada de Instagram, nada de TikTok, nada de “bom-dia, grupo” no WhatsApp.

Resultado: o cérebro reagiu como o de quem larga álcool ou cocaína. O mesmo vazio, o mesmo tremor nas mãos. E depois, a mesma euforia, como se o organismo tivesse descoberto uma nova religião.

Não se sabe se é pra rir ou chorar. A ciência comprova o que qualquer avó analógica já dizia entre uma peça de bordado e outra: “meu filho, larga isso e vai brincar lá fora”. Só que, vindo de Heidelberg e publicado em inglês, a bronca vira paper— e rende congresso em resort cinco estrelas.

Agora, pense comigo: se desligar o celular por 72 horas já faz o cérebro valsar ao som do Danúbio Azul, imagine se a criatura largasse também redes sociais e debates políticos no X. Seria capaz de atingir o nirvana em menos tempo que um monge tibetano.

Mas sejamos realistas: ninguém topa. A geração plugada no carregador não aguenta cinco minutos sem checar a tela. Um maluco qualquer pode apertar o botão da 3ª Guerra e, mesmo assim, a prioridade será atualizar o feed. Afinal, se não postar o apito do primeiro míssil, como provar aos “seguidores” que ele aconteceu?

Os pesquisadores já deram a sentença: celular não é hábito, é dependência. Em clínicas de reabilitação, seria fácil imaginar a cena:
— “Olá, meu nome é Uaifone da Silva e estou há três horas sem abrir o Instagram.”
— “Força, Uai, você chega lá!”

Noto que a pesquisa funciona mais como espelho que novidade. Descubro que somos ratinhos de laboratório clicando em botões luminosos à espera de migalhas. Só que, ao contrário dos roedores, pagamos caro pelo dispositivo que nos escraviza — e ainda brigamos na fila pelo modelo novo.

Enquanto isso, sigo intrigado com a mentira inicial. Porque, convenhamos, 72 horas sem reclamar da cara-metade também seria um experimento revolucionário. Aposto que o cérebro reagiria do mesmo jeito, talvez até melhor.

O tal botão não está escondido em nenhum chip. Está na paciência miúda que costura os dias: recolher a toalha, engolir a queixa, o dedo que busca a tela. Lúcia e Zé Alípio descobriram isso cedo e atravessaram meio século de mãos dadas.


Nós, órfãos dessa sabedoria, seguimos implorando que algum engenheiro nos entregue, dentro de uma caixinha branca, aquilo que já existe dentro de nós — e que faz dois corações dançarem juntos.

 

outubro 22, 2025

Garatujas de boteco

GARATUJAS DE BOTECO 
Hayton Rocha


O coronel Charles Bronson Cunha era daqueles clientes que faziam gerente de banco suar frio em pleno meio-dia, sol a pino, colarinho sufocante e sapatos apertando os joanetes. Em véspera de renovar RDB, o gerente se sentia feito cafetina com contas a pagar: sorriso ensaiado, adulando e oferecendo vantagem além da conta — interessado mesmo era no volume do dinheiro que ficaria no cofre, não na fidelidade do freguês.

Cebecê tinha quase todo o cardápio da agência: aplicações de renda fixa e variável, cartões, cheque especial, financiamentos, seguros, títulos de capitalização e até produtos que nem o gerente entendia, mas que engrossavam o caldo do resultado mensal. Tratado, portanto, como príncipe de cofre cheio, com tapete vermelho estendido e cafezinho servido como se fosse champanhe.

Só que, de quinta a domingo, cultivava um hábito mais valioso que qualquer aplicação: a farra. Religiosamente, estacionava a camioneta na porta do mesmo boteco, já tombado pelo peso das histórias. Ali reinava: entornava cerveja como petróleo recém-descoberto, multiplicava amigos como cupim em guarda-roupa velho e, no auge da bebedeira, virava filantropo de balcão. Ninguém pagava a conta. Só ele — fosse capanga, colega, desafeto arrependido ou parasita de ocasião.



O roteiro era sempre o mesmo. Perto da saideira, embalado pela voz cavernosa de um cover de Nelson Gonçalves em “Matriz ou Filial”, já sem distinguir banheiro masculino de feminino, pedia a conta. Sacava o talão, rabiscava o valor em língua indecifrável e arrematava com uma garatuja imensa, terminada em três pontos. Segundo ele, sinal de uma irmandade famosa “nos quatro cantos do mundo”.

Na segunda-feira, o dono do bar depositava o cheque. Na terça, o banco devolvia: “assinatura divergente”. Não era saldo — Cebecê tinha mais dinheiro que o ofertório da paróquia em safra boa. O problema era outro: a cada porre, nascia uma assinatura nova, sempre diferente da anterior.

Cheio de dedos, o dono do bar batia à porta para trocar o cheque. O coronel, ainda de ressaca, pedia desculpas, tomava um Engov, oferecia café e emitia outro, mais parecido com os arquivos do banco. E a vida seguia… até quinta-feira, quando começava novo capítulo da novela etílica.

Cansado da comédia, Cebecê resolveu pôr fim à humilhação. Invadiu o aquário envidraçado do gerente e disparou:
– Venha cá, tô devendo alguma prestação?
– De jeito nenhum, coronel!
– Tem saldo na minha conta?
– Um dos maiores...
– Então sou ou não sou bom cliente?
– O melhor de todos! – respondeu o gerente, quase em continência.

O coronel ajeitou o bigodão:
– Quando abri a conta, não me fizeram assinar umas quatro vezes naquele cartãozinho?
– Sim, senhor, normas do Banco Central.
– Pois essa norma tá me tratando como caloteiro!
– Não é isso, coronel. Seus cheques só voltam quando a assinatura não confere.
– Então me arrume outro cartão.

O gerente obedeceu.
– E agora?
– Agora o senhor vem comigo até o boteco. Depois da terceira cerveja, assino uma vez. Na quinta, assino de novo. Na sétima, com uma dose de rum, assino outra. Assim, qualquer cheque meu vai bater com o arquivo de vocês, seja segunda, sexta ou domingo de madrugada.

O gerente ainda hesitou, mas a ameaça final encerrou a discussão:
– Se devolver mais um cheque meu, mudo de banco!

E assim nasceu o sistema de conferência mais criativo da região: três assinaturas calibradas por bebida e homologadas pelo fígado. O Banco Central pode até não reconhecer a prática. Mas os botecos — principais interessados —, sim.

O problema desapareceu. O coronel seguiu brindando com sua corte, o dono do bar sossegou e o gerente descobriu que fé em assinaturas vale tanto quanto fé em santos de gesso — tudo depende da quantidade de álcool nas veias.

Entre garatujas e goles, Cebecê provava que a vida, tal qual sua assinatura, nunca confere de primeira: precisa de improviso, repetição e um pouco de incerteza para parecer verdadeira. Afinal, como dizia Humphrey Bogart em “Casablanca”, todo homem está pelo menos três “bramas” abaixo do normal.


                    É na próxima semana...




outubro 15, 2025

Sangue no quintal



 

Ilustração: Uilson Morais (Umor)


SANGUE NO QUINTAL 

Hayton Rocha


Dia desses, meu amigo Avelar me convidou para um sábado no Porto Gurgueia, sua chácara em Sobradinho, impondo um pedágio inusitado: eu deveria preparar um guisado de duas galinhas que ele acabara de abater, acompanhado de feijão verde e purê de batatas.


Aceitei a contrapartida, talvez embalado pela bebida que descia goela abaixo nas preliminares com Manoel, Nassib e Rodrigo. No lugar da clássica galinha ao molho pardo, servi uma versão “sem sangue”: vinho tinto e cebola torrada substituíram o ritual da cabidela, emprestando cor e sabor ao molho sem necessidade de qualquer sacrifício vampiresco. Bastou refogar a galinha com alho, cebola picada, pimentão e tomate, cozinhar em água, fritar uma cebola grande até quase virar carvão, misturar vinho e engrossar com farinha de milho. O resultado surpreendeu.


Na boquinha da noite, depois da soneca no alpendre e entre goles de café preto, Avelar quis saber a origem da minha “aversão” ao molho pardo. Expliquei que não havia aversão — apenas experimentara um jeito alternativo de cozinhar. Porém, atiçado pela curiosidade dele, lembrei-me de uma cena que talvez explique tudo.


Voltei a 1968, em União dos Palmares, Zona da Mata alagoana. Revi o menino que cuidava de galinhas como quem cuida de irmãs menores. Até o dia em que a própria mãe, com um punhado de milho e um tititi disfarçado de carinho, atraiu três delas para dentro da cozinha. Libertou as menores e fechou a porta. A gordinha ficou.


Com o pé esquerdo, pisou-lhe as pernas contra o chão. A mão direita empunhava uma faca afiada. Um golpe certeiro no pescoço. A carótida rompida. O sangue jorrando na vasilha. O menino, paralisado, registrou cada detalhe. A ave debatendo-se. O líquido vermelho enchendo o recipiente. A vida escorrendo até o silêncio.


Pior foi perceber que a assassina era sua mãe. A mesma que rezava ajoelhada na Matriz de Santa Maria Madalena, aos domingos, pela salvação das almas — menos das aves do quintal.


O corpo ainda quente foi mergulhado em água fervendo dentro de um caldeirão. As penas arrancadas sem dó. A penugem sapecada na boca do fogão. Depois, cortada em pedaços: asas, coxas, peito, miúdos. Tudo temperado com alho, cominho, pimenta, sal e vinagre. Um preparo que, para o menino, parecia uma tentativa vã de curar ferimentos que já não tinham solução.


– E o sangue? Vai jogar no ralo da pia? – perguntou ele, ainda chocado com a cena.
– Saia daí! Vá brincar no quintal! – decretou a mãe.


No galinheiro, o menino esperava encontrar revolta. Imaginava que as sobreviventes iniciariam uma greve de fome, rejeitando milho e restos de comida em protesto pelo sacrifício da amiga. Mas não. Lá estavam todas conformadas, submissas à rotina miúda: beber água e olhar pro céu, ciscar, tolerar o estupro do galo sem quaisquer preliminares. Para o menino, parecia apenas um gesto de gentileza masculina para protegê-las da chuva e do vento frio à sombra. Não sabia que gentileza nenhuma havia naqueles esporões ameaçando cangotes.


Na mesa, ninguém estranhou o cardápio: “galinha à cabidela”, eufemismo para disfarçar a crueldade dos esfomeados.
– Eu quero uma coxa! – apressou-se a irmã mais velha.
– A titela é minha! – gritou o irmão do meio.
– Quero o coração e a moela! – exigiu outro.
– Pelo visto, só vai sobrar ciscador, grade e sobrecu... – brincou o pai, sentado à cabeceira.


O menino, engasgado com a própria tristeza, não conseguiu achar graça. O mundo ao redor parecia normal: a família de barriga cheia, as demais galinhas vivas indiferentes ao massacre, a mãe satisfeita com seu prato. “Tudo vale a pena se a ração não for pequena”, pareciam cacarejar, mesmo sem nunca ter lido Pessoa.


Um ano antes, em 1967, o menino havia lido que a democracia sangrara no céu do Nordeste com a queda do avião do presidente Castelo Branco. Agora, ele sangrava em silêncio no quintal de União dos Palmares. A ditadura engrossava o caldo tanto na panela de guisado quanto nos porões do regime.


Um mês mais tarde, a peste aviária — “murrinha” — dizimou todo o plantel, pintinhos incluídos. Houve quem dissesse que foi praga rogada pelo menino inconformado. Calúnia, claro. Mas talvez tenha ocorrido uma súplica inocente aos deuses dos quintais: que se fizesse justiça onde a solidariedade falhara, que se calasse para sempre o galinheiro acovardado e cúmplice.


Avelar, ouvindo a história, sentenciou que aquilo só podia ser verdade. Eu, até hoje, não digo que sim nem que não. Mas desconfio de que foi naquela manhã de 1968 que aprendi a detestar a ideia de cozinhar uma criatura no próprio sangue.


Por isso, se tiver que botar novamente uma galinha na panela — faz tempo que não faço isso —, optarei de novo pelo vinho tinto, seco. Um Cabernet Sauvignon, pelo menos, não exige sacrifício: só aquece e consola.



Vem aí...





outubro 08, 2025

O grão que engole a floresta

O GRÃO QUE ENGOLE A FLORESTA

Hayton Rocha


Navios já não precisam do mar. Ancoram em terminais que surgem no meio do nada, onde antes só havia floresta ou o mugido de boi faminto. Ali, o vazio virou mar de verde oleaginoso. A soja — grão anônimo, sem a nobreza dourada do trigo que vira pão nem a poesia da uva que se entrega em vinho — ergueu-se como soberana invisível da economia brasileira. Uma rainha discreta, mas implacável, capaz de mover exércitos, redesenhar mapas e trocar árvores por cifras.



Dela se faz óleo, leite, tofu, carne vegetal, ração para bois e peixes, cosméticos e até biodiesel para movimentar os caminhões que a transportam. Um grão que, triturado, vira tudo, menos mata virgem. É a semente que dá lucro, mas arranca raízes sem piedade.

 

O mundo inteiro mastiga soja sem notar. O frango no prato chinês, a ração do suíno europeu, o hambúrguer vegano embalado em discurso de salvação planetária — todos temperados com a febre que se espalha do Cerrado à Amazônia. Onde antes havia floresta, agora há campos verdes que se multiplicam feito metástase. Cada safra é anunciada como recorde — e a próxima, ninguém duvida, também será.

 

A fronteira agrícola se comporta como exército em marcha lenta: começou pelo Sul, ocupou o Centro-Oeste, parte do Nordeste, e agora se insinua pelo coração úmido da Amazônia. Cada ponte inaugurada, cada estrada pavimentada, cada porto em projeto é uma trombeta anunciando a chegada da tropa. A BR-319, que corta o Amazonas como faca esquecida na manteiga, é o próximo alvo. Agricultores a veem como promessa de frete barato. Ambientalistas, como convite ao apocalipse.

 

A soja já dança no salão principal da economia, estrela maior do agronegócio — este, sim, responsável por um quarto do PIB —, dama imponente do banquete brasileiro. Como toda dama de vestido longo, ela exige espaço, luxo e palmas. O pacto que deveria conter seus excessos — a moratória da soja — tropeça entre suspeitas de cartel e promessas vazias. A União Europeia tenta fechar a porta, os estados escancaram janelas, e a Justiça assiste, feito árbitro de futebol acuado em pelada na favela.

 

Há quem diga que é simples: basta cumprir a lei, que já exige preservar 80% da vegetação nativa na Amazônia. Mas grileiro nunca trabalha com simplicidade. Derruba árvores na esperança de que, amanhã ou depois, a regra mude, a fiscalização cochile, a floresta seja esquecida. O crime, aqui, é investimento seguro: cheque pós-datado. Desmata-se hoje para colher fartura de amanhãs.

 

E a terra, inflacionada, dobra de valor em poucos anos. O mesmo mecanismo que nos anos 1970 inflou preços urbanos e empurrou os mais pobres para a periferia agora aplica cartão amarelo à floresta. A especulação é a mesma, só mudaram os cenários: ontem, arranha-céus de concreto; hoje, silos metálicos.

 

Cientistas, com seus gráficos e satélites, alertam: se metade da Amazônia tombar, a temperatura do planeta sobe até 2,5 graus, as chuvas desaparecem e os rios minguam. O Brasil, dono de 80% de energia hídrica, pode ficar a seco. O planeta, sedento. E tudo isso com base em cálculos otimistas. A verdade, repetida em seminários, é que a Amazônia não é apenas nossa: é o refrigério da alma da Terra.

 

Mas vai convencer quem vê soja virar dólar mais depressa que árvore vira chuva!

 

Enquanto isso, Belém lustra os salões para a COP-30. Virá gente do mundo inteiro, mês que vem, brindar com coquetéis e discursos sobre salvar a floresta. Ironia tropical: a mesma cidade que servirá de púlpito verde já ensaia os bastidores para novos portos de grãos. Belém, entre o altar e o balcão, entre o sermão e a soja.

 

E eu aqui, lembrando de minha santa mãe, que na próxima semana completa 87 outubros. Ela, que sempre tinha uma sentença terrível na ponta da língua quando a vida insistia em me ensinar pela dor: “Eu não disse?”. Imagino-a, meio século à frente, balançando a cabeça diante de um planeta quente, rios secos e tataranetos migrando em busca de água potável. Com um sorriso irônico, dirá de novo: “Eu não disse?”.

 

Melhor acreditar que nada disso faz sentido, que derrubar árvores é só o preço do progresso. Afinal, daqui a cinquenta anos eu não estarei aqui. Você, que me lê, talvez esteja.

 

Se estiver, não se surpreenda: o “eu não disse?!” da mãe-natureza vai ecoar mais alto que qualquer trator — inclusive movido a biodiesel.

outubro 01, 2025

Fósseis do presente



 

FÓSSEIS DO PRESENTE 
Hayton Rocha


Fiquei pensativo, outro dia, com a notícia de que fotos, moedas e um exemplar amarelado de A Tribuna de Santos foram encontrados dentro de uma cápsula do tempo, enterrada em 1921 no quartel de Quitaúna, em Osasco. Um presente do passado para o futuro, lacrado diante de presidentes, marechais e engenheiros militares. Cento e quatro anos depois, um capitão de 33 anos abriu a caixa e encontrou, além do cheiro de mofo, a sensação de folhear a alma de um país que ainda engatinhava no século XX.

Imagino o susto das autoridades de 1921 se pudessem bisbilhotar 2025: caixas de supermercado sem humanos, carros que andam sozinhos, gente pedindo comida com um clique no celular e, mesmo assim, brigando nas redes sociais para provar quem é mais patriota. Aposto que voltariam correndo para carruagens puxadas a cavalo, cuidando dos bolsos para não perder as moedas de réis.

A cápsula trazia jornais noticiando a Primeira Guerra, tumultos na Câmara, crises em Portugal e a visita de um ministro da Guerra a Santos. Um século depois, só mudaram nomes, bigodes e trajes: seguimos colecionando crises e guerras, com a pontualidade das queimadas no Cerrado.

Então me pego especulando: o que eu deixaria para ser encontrado daqui a 104 anos?

Talvez um pendrive — só para arrancar gargalhadas de quem, em 2129, já terá hologramas na retina. Ou uma carteira de couro, para que arqueólogos do futuro se perguntem por que precisávamos de plástico com chip para pagar o cafezinho. Ou um controle remoto, esse fóssil de sofá, lembrança de um tempo em que a humanidade travava batalhas épicas contra almofadas em busca de outro pedaço de plástico com pilhas.

Quem sabe uma barra de chocolate? Mas aí seria crueldade: se os especialistas de hoje estiverem certos, em 2030 já teremos entrado na era da escassez de cacau. Imagino a cena: um tataraneto guloso abrindo o embrulho e se perguntando se aquele pó marrom era doce ou apenas mais uma pegadinha dos antepassados.

Enquanto um descendente lambe o papel vazio, outros herdarão o silêncio da caligrafia — essa que já foi arte de freiras com palmatórias e de contadores nos livros-caixa, hoje sobrevive em convites de casamento. As chaves metálicas, que tilintavam como sinos de liberdade, deram lugar a digitais e senhas. Senhas que também caminham para a extinção, substituídas por olhos e rostos escaneados.

E os shoppings? Esses santuários do consumo logo virarão policlínicas, escritórios de coworking e playgrounds para idosos. O caixa de fast-food, antes malabarista de bandeja e troco, já foi trocado por telas de toque que nunca oferecem o brinde de um sorriso.

Até a embreagem, madrasta dos motoristas iniciantes que fazia o carro se engasgar na ladeira, entrou em contagem regressiva. Veículos automáticos prometem enterrar de vez a marcha manual — e, com ela, a desculpa de que o carro “morreu” justamente na hora de levar a namorada para casa às dez da noite.

Talvez eu devesse enterrar também um caderno com recortes de discussões nas redes sociais: gente batendo boca como no recreio da escola, cada um convencido de que a bola de verdade é a sua. Material perfeito para que historiadores concluam que a Terceira Guerra Mundial não aconteceu por falta de munição, mas por excesso de verborragia e falta de respeito à opinião alheia.

Deixaria ainda um celular com 1234 aplicativos inúteis, para que em 2129 descubram que já fomos escravos de alarmes e notificações — e que até para beber água era preciso um deles nos avisar.

Ou uma máscara de pano, daquelas de 2020, prova de que já vivemos tempos em que um vírus obrigou bilhões a se esconder atrás de um pedaço de tecido — enquanto muitos juravam que o fim da farra estava próximo.

No fundo, qualquer cápsula do tempo é uma confissão: a de que somos frágeis, passageiros, mas teimosos em deixar marcas. Uma foto esmaecida, uma cédula de vinte reais, uma manchete sobre a perda, na mesma semana, do traço de Jaguar e da pena de Luis Fernando Verissimo — tudo serve para gritar ao futuro: “estivemos aqui!”.

E talvez seja isso o que mais inquieta. Não importa se deixaremos uma máscara ou uma barra de chocolate: o que atravessa séculos não é o objeto, mas a mania de querer ser lembrado. Mania tão humana quanto inútil — já que a vida, essa gozadora incorrigível, passa os séculos apagando, com prazer, as nossas pegadas.

Uma calcinha preta na novela

UMA CALCINHA PRETA NA NOVELA  Hayton Rocha Semana passada, fui provocado por um sábio amigo, desses que citam o Código Penal de cabeça e ain...