outubro 08, 2025

O grão que engole a floresta

O GRÃO QUE ENGOLE A FLORESTA

Hayton Rocha


Navios já não precisam do mar. Ancoram em terminais que surgem no meio do nada, onde antes só havia floresta ou o mugido de boi faminto. Ali, o vazio virou mar de verde oleaginoso. A soja — grão anônimo, sem a nobreza dourada do trigo que vira pão nem a poesia da uva que se entrega em vinho — ergueu-se como soberana invisível da economia brasileira. Uma rainha discreta, mas implacável, capaz de mover exércitos, redesenhar mapas e trocar árvores por cifras.



Dela se faz óleo, leite, tofu, carne vegetal, ração para bois e peixes, cosméticos e até biodiesel para movimentar os caminhões que a transportam. Um grão que, triturado, vira tudo, menos mata virgem. É a semente que dá lucro, mas arranca raízes sem piedade.

 

O mundo inteiro mastiga soja sem notar. O frango no prato chinês, a ração do suíno europeu, o hambúrguer vegano embalado em discurso de salvação planetária — todos temperados com a febre que se espalha do Cerrado à Amazônia. Onde antes havia floresta, agora há campos verdes que se multiplicam feito metástase. Cada safra é anunciada como recorde — e a próxima, ninguém duvida, também será.

 

A fronteira agrícola se comporta como exército em marcha lenta: começou pelo Sul, ocupou o Centro-Oeste, parte do Nordeste, e agora se insinua pelo coração úmido da Amazônia. Cada ponte inaugurada, cada estrada pavimentada, cada porto em projeto é uma trombeta anunciando a chegada da tropa. A BR-319, que corta o Amazonas como faca esquecida na manteiga, é o próximo alvo. Agricultores a veem como promessa de frete barato. Ambientalistas, como convite ao apocalipse.

 

A soja já dança no salão principal da economia, estrela maior do agronegócio — este, sim, responsável por um quarto do PIB —, dama imponente do banquete brasileiro. Como toda dama de vestido longo, ela exige espaço, luxo e palmas. O pacto que deveria conter seus excessos — a moratória da soja — tropeça entre suspeitas de cartel e promessas vazias. A União Europeia tenta fechar a porta, os estados escancaram janelas, e a Justiça assiste, feito árbitro de futebol acuado em pelada na favela.

 

Há quem diga que é simples: basta cumprir a lei, que já exige preservar 80% da vegetação nativa na Amazônia. Mas grileiro nunca trabalha com simplicidade. Derruba árvores na esperança de que, amanhã ou depois, a regra mude, a fiscalização cochile, a floresta seja esquecida. O crime, aqui, é investimento seguro: cheque pós-datado. Desmata-se hoje para colher fartura de amanhãs.

 

E a terra, inflacionada, dobra de valor em poucos anos. O mesmo mecanismo que nos anos 1970 inflou preços urbanos e empurrou os mais pobres para a periferia agora aplica cartão amarelo à floresta. A especulação é a mesma, só mudaram os cenários: ontem, arranha-céus de concreto; hoje, silos metálicos.

 

Cientistas, com seus gráficos e satélites, alertam: se metade da Amazônia tombar, a temperatura do planeta sobe até 2,5 graus, as chuvas desaparecem e os rios minguam. O Brasil, dono de 80% de energia hídrica, pode ficar a seco. O planeta, sedento. E tudo isso com base em cálculos otimistas. A verdade, repetida em seminários, é que a Amazônia não é apenas nossa: é o refrigério da alma da Terra.

 

Mas vai convencer quem vê soja virar dólar mais depressa que árvore vira chuva!

 

Enquanto isso, Belém lustra os salões para a COP-30. Virá gente do mundo inteiro, mês que vem, brindar com coquetéis e discursos sobre salvar a floresta. Ironia tropical: a mesma cidade que servirá de púlpito verde já ensaia os bastidores para novos portos de grãos. Belém, entre o altar e o balcão, entre o sermão e a soja.

 

E eu aqui, lembrando de minha santa mãe, que na próxima semana completa 87 outubros. Ela, que sempre tinha uma sentença terrível na ponta da língua quando a vida insistia em me ensinar pela dor: “Eu não disse?”. Imagino-a, meio século à frente, balançando a cabeça diante de um planeta quente, rios secos e tataranetos migrando em busca de água potável. Com um sorriso irônico, dirá de novo: “Eu não disse?”.

 

Melhor acreditar que nada disso faz sentido, que derrubar árvores é só o preço do progresso. Afinal, daqui a cinquenta anos eu não estarei aqui. Você, que me lê, talvez esteja.

 

Se estiver, não se surpreenda: o “eu não disse?!” da mãe-natureza vai ecoar mais alto que qualquer trator — inclusive movido a biodiesel.

outubro 01, 2025

Fósseis do presente



 

FÓSSEIS DO PRESENTE 
Hayton Rocha


Fiquei pensativo, outro dia, com a notícia de que fotos, moedas e um exemplar amarelado de A Tribuna de Santos foram encontrados dentro de uma cápsula do tempo, enterrada em 1921 no quartel de Quitaúna, em Osasco. Um presente do passado para o futuro, lacrado diante de presidentes, marechais e engenheiros militares. Cento e quatro anos depois, um capitão de 33 anos abriu a caixa e encontrou, além do cheiro de mofo, a sensação de folhear a alma de um país que ainda engatinhava no século XX.

Imagino o susto das autoridades de 1921 se pudessem bisbilhotar 2025: caixas de supermercado sem humanos, carros que andam sozinhos, gente pedindo comida com um clique no celular e, mesmo assim, brigando nas redes sociais para provar quem é mais patriota. Aposto que voltariam correndo para carruagens puxadas a cavalo, cuidando dos bolsos para não perder as moedas de réis.

A cápsula trazia jornais noticiando a Primeira Guerra, tumultos na Câmara, crises em Portugal e a visita de um ministro da Guerra a Santos. Um século depois, só mudaram nomes, bigodes e trajes: seguimos colecionando crises e guerras, com a pontualidade das queimadas no Cerrado.

Então me pego especulando: o que eu deixaria para ser encontrado daqui a 104 anos?

Talvez um pendrive — só para arrancar gargalhadas de quem, em 2129, já terá hologramas na retina. Ou uma carteira de couro, para que arqueólogos do futuro se perguntem por que precisávamos de plástico com chip para pagar o cafezinho. Ou um controle remoto, esse fóssil de sofá, lembrança de um tempo em que a humanidade travava batalhas épicas contra almofadas em busca de outro pedaço de plástico com pilhas.

Quem sabe uma barra de chocolate? Mas aí seria crueldade: se os especialistas de hoje estiverem certos, em 2030 já teremos entrado na era da escassez de cacau. Imagino a cena: um tataraneto guloso abrindo o embrulho e se perguntando se aquele pó marrom era doce ou apenas mais uma pegadinha dos antepassados.

Enquanto um descendente lambe o papel vazio, outros herdarão o silêncio da caligrafia — essa que já foi arte de freiras com palmatórias e de contadores nos livros-caixa, hoje sobrevive em convites de casamento. As chaves metálicas, que tilintavam como sinos de liberdade, deram lugar a digitais e senhas. Senhas que também caminham para a extinção, substituídas por olhos e rostos escaneados.

E os shoppings? Esses santuários do consumo logo virarão policlínicas, escritórios de coworking e playgrounds para idosos. O caixa de fast-food, antes malabarista de bandeja e troco, já foi trocado por telas de toque que nunca oferecem o brinde de um sorriso.

Até a embreagem, madrasta dos motoristas iniciantes que fazia o carro se engasgar na ladeira, entrou em contagem regressiva. Veículos automáticos prometem enterrar de vez a marcha manual — e, com ela, a desculpa de que o carro “morreu” justamente na hora de levar a namorada para casa às dez da noite.

Talvez eu devesse enterrar também um caderno com recortes de discussões nas redes sociais: gente batendo boca como no recreio da escola, cada um convencido de que a bola de verdade é a sua. Material perfeito para que historiadores concluam que a Terceira Guerra Mundial não aconteceu por falta de munição, mas por excesso de verborragia e falta de respeito à opinião alheia.

Deixaria ainda um celular com 1234 aplicativos inúteis, para que em 2129 descubram que já fomos escravos de alarmes e notificações — e que até para beber água era preciso um deles nos avisar.

Ou uma máscara de pano, daquelas de 2020, prova de que já vivemos tempos em que um vírus obrigou bilhões a se esconder atrás de um pedaço de tecido — enquanto muitos juravam que o fim da farra estava próximo.

No fundo, qualquer cápsula do tempo é uma confissão: a de que somos frágeis, passageiros, mas teimosos em deixar marcas. Uma foto esmaecida, uma cédula de vinte reais, uma manchete sobre a perda, na mesma semana, do traço de Jaguar e da pena de Luis Fernando Verissimo — tudo serve para gritar ao futuro: “estivemos aqui!”.

E talvez seja isso o que mais inquieta. Não importa se deixaremos uma máscara ou uma barra de chocolate: o que atravessa séculos não é o objeto, mas a mania de querer ser lembrado. Mania tão humana quanto inútil — já que a vida, essa gozadora incorrigível, passa os séculos apagando, com prazer, as nossas pegadas.

O grão que engole a floresta

O GRÃO QUE ENGOLE A FLORESTA Hayton Rocha Navios já não precisam do mar. Ancoram em terminais que surgem no meio do nada, onde antes só havi...