dezembro 03, 2025

A insustentável leveza de um cafuné

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DE UM CAFUNÉ
Hayton Rocha 


No Japão, onde o tempo parece andar de quimono e sandálias de palha, já é possível alugar uma avó por hora. Sim, você não leu errado: avó por hora, como quem reserva mesa em restaurante ou carro de locadora. O kit inclui broncas embrulhadas em papel celofane, receitas de molhos seculares e aquele olhar que já viu o mundo desmoronar algumas vezes e, ainda assim, achou forças para varrer os cacos.


A agência anuncia uma centena de senhoras, entre 60 e 94 anos, como se fossem modelos de catálogo: “ideal para ajudar nas tarefas de casa, ensinar a costurar, reconciliar-se com a sogra ou apenas preencher o vazio deixado por uma pessoa querida que partiu”. A promessa é sabedoria, mas o que realmente se aluga é o antídoto contra a solidão.


 

Ilustração: Uilson Morais (Umor)

Nesse contrato tácito, os netos terceirizados nada têm a perder: aprendem truques domésticos, recebem lições de sobrevivência conjugal e ainda podem ser embalados por histórias que misturam samurais heroicos com gueixas enigmáticas. Já as avós, protagonistas desse teatro doméstico, recebem o que mais lhes falta: olhos de ver, ouvidos de ouvir. Afinal, ninguém quer morrer sem testemunhas de suas versões, ainda que repetidas pela enésima vez.

 

A comédia, porém, flerta com a tragédia. Milhões de japoneses vivem sozinhos, destinados a morrer na invisibilidade. A solidão lá já tem até nome próprio: kodokushi, “morte solitária”. Uma epidemia traiçoeira, dessas que não pedem máscara nem respiradores, mas exigem coragem e resignação. Apartamentos trancados, celulares mudos, mensagens sem resposta. A nação que inventou robôs para servir água agora tenta preencher o vazio existencial com avós terceirizadas e cafunés tarifados.

 

As estatísticas, frias como sempre, sustentam o pano de fundo: daqui a pouco, um terço da população japonesa terá mais de 65 anos, a maioria mulheres. Vidas prolongadas pela medicina, mas encurtadas pelo deserto das relações. O que era bênção virou sentença: viver muito, por lá, é quase sinônimo de viver só.

 

E não se engane: o bilhete é de ida e já tem data marcada para o Brasil. Ainda temos avós no fogão a lenha, sustentando famílias com pensões minguadas. Mas o mesmo país que exalta a sabedoria popular de uma avó em propaganda de presunto é o que fecha a porta para quem tem mais rugas que curtidas nas redes sociais. Aqui, cabelos brancos assustam mais que juros de cartão de crédito em atraso.

 

Chamam de “autoetarismo” a praga que corrói por dentro: gente que se convence de que já está velha demais para aprender ou recomeçar. Como se a idade fosse sentença de morte civil. Esquecem que a velhice, quando bem vivida, é o único diploma que não se compra na internet. Maturidade e paciência são artigos de luxo, mas o mercado insiste em preferir um jovem ansioso que enfeita PowerPoint a um idoso sereno, vertendo sabedoria por todos os poros.

 

Daqui a pouco, seremos nós a adotar o aluguel de avós. Não para ensinar etiqueta social, mas para destrinchar manobras do submundo político, temperar o feijão no ponto ou explicar por que descobrimos rugas em lugares que nem sabíamos que existia. O risco é o mercado transformar essas mulheres em “influencers da saudade”, cobrando por hora de colo e minuto de cafuné. Carinho tabelado em Excel, com desconto progressivo para pacotes semanais.

 

E o problema não é cobrar pelo afeto — já fazemos isso com babás eletrônicas e lares de idosos. O problema é acreditar que esse simulacro resolve a orfandade social que nós mesmos fabricamos. A mesma sociedade que chama aposentado de peso é a que depois corre para alugá-lo quando percebe que, sem ele, a vida perde cheiro, sabor e até os macetes da língua pátria.

 

Se a humanidade precisa terceirizar até o amor que só uma avó sabe dar, o problema não está na falta de netos, mas no excesso de órfãos de convivência. Gente aparentemente viva, mas desconectada, perdida entre compromissos virtuais. Num mundo em que até dividir a senha do Wi-Fi virou sacrifício, talvez o maior luxo seja ter alguém que bata à porta sem mandar antes mensagem. Porque não há algoritmo que ensine a receita de sopa que cure mágoas, nem que borde ternura nas frestas do dia a dia. Isso só avó sabe fazer.

 

Nessa toada, um dia não restará avó nem para alugar. E quando estivermos sozinhos, com nossos celulares mudos, talvez notemos tarde demais que o verdadeiro luxo nunca foi o carro elétrico ou o último smartphone lançado no mercado, mas alguém que nos chamasse pelo apelido de infância enquanto nos fazia um cafuné.





Nenhum comentário:

Postar um comentário

A insustentável leveza de um cafuné

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DE UM CAFUNÉ Hayton Rocha   No Japão, onde o tempo parece andar de quimono e sandálias de palha, já é possível alug...