novembro 05, 2025

Gaiatos, gatos e gaiolas

GAIATOS, GATOS E GAIOLAS 

Hayton Rocha


Quem nunca acalentou a fantasia oculta de jogar tudo pro alto? Abandonar emprego, família, status e até o cachorro, para embarcar no primeiro navio sem rumo nem passagem de volta. Nessas horas, dois dedos de lucidez sopram ao pé do ouvido: “deixe de estupidez!”. E assim seguimos, firmes e domesticados, olhando o horizonte do convés da rotina, como marinheiros de terra firme que nunca molharam os pés.

Semana passada, com a TV revolvendo lembranças com cheiro de mofo, dei de cara com um documentário sobre os Paralamas do Sucesso. Logo apareceu o velho “Melô do Marinheiro”, hit inocente dos anos 80 que transformou a ideia de conhecer o mundo em piada pronta.

O moleque sonhava desbravar os sete mares e acabou descobrindo que sua função era descascar batatas e esfregar o chão. A cada “Entrei de gaiato no navio (oh!)”, não era difícil perceber o tamanho da cilada. Aventuras? Só no sabão e na vassoura. O sonho dourado virou faxina, como tantos projetos de fuga que prometem liberdade e entregam rotina embrulhada em esforço braçal.

Que atalho curioso entre o sonho e o rodo! É como se a vida dissesse: “Quer voar? Comece esfregando chão!”. E nós, obedientes, seguimos de segunda a sexta, com o fio de esperança de que a liberdade possa estar escondida num feriado prolongado, numa viagem adiada ou até no sábado que nunca chega cedo o bastante.

Foi nesse clima de marinheiro frustrado que, horas depois, li a notícia de que um gato chinês, sem pedir licença, entrou num contêiner e atravessou o mundo. O felino, batizado de Xiao Mao — “gatinho” em mandarim —, saiu da China e aportou em Minnesota após quase 13 mil quilômetros e três semanas trancado entre ferrugem e pó. Parecia Garfield de ressaca — mas vivo o bastante para viralizar nas redes sociais.




Segundo a ONG Pet Haven, ninguém entende como resistiu sem água e comida. Talvez lambendo gotículas de condensação, caçando insetos clandestinos. Uma epopeia darwinista em miniatura. Hoje Xiao Mao participa de um programa de socialização chamado Wallflowers e, para completar o enredo hollywoodiano, se apaixonou por uma oncinha pintada, resgatada numa aldeia indígena, que deixou em pedaços o seu coração, como diria Alceu Valença.

Enquanto lia a história, pensei: nós, humanos, calculamos mil vezes antes de dar um passo fora da linha. Já Xiao Mao, analfabeto de nove vidas, pulou num contêiner errado e acabou conhecendo o outro lado do globo, sem cartão de vacina nem passaporte. Nós desistimos do navio por medo de descascar batatas. Ele entrou sem querer e virou manchete planetária.

Não desejo a ninguém a dieta de ferrugem e insetos que o felino encarou. Mas convenhamos: há algo de invejável nesse acaso que arregaça fronteiras. Quantas vezes deixamos de viver um Singapura ou Xangai particular por temer o balde e a vassoura do convés? Quantos horizontes deixamos para depois, como se o mundo fosse uma vitrine que só podemos olhar de longe? Talvez sejamos nós, não Xiao Mao, os verdadeiros enjaulados. Ele, pelo menos, saiu da gaiola e ganhou uma cara-metade pra chamar de sua.

O curioso é que tanto o marinheiro dos Paralamas quanto o gato chinês embarcaram por engano. Um achou que namoraria sereias e acabou esfregando sujeira. O outro entrou para cochilar e despertou em outro continente. Ambos ilustram, cada um à sua maneira, o abismo entre expectativa e realidade. Só que, enquanto o humano reclama do chão molhado, o bichano sobreviveu ao Pacífico.

Somos menos corajosos que um gato de Guangzhou. Ficamos no porto, cultivando fantasias de liberdade enquanto contamos moedas para a próxima viagem, o próximo celular, o próximo Natal. E, quando arriscamos, é sempre com manual de instruções na mão, para que nada saia do script. Vivemos como se tivéssemos medo de entrar “de gaiato no navio” e, no fundo, é isso que nos condena a nunca sair do cais.

A vida, ironicamente, adora premiar os distraídos. Xiao Mao não sabia para onde ia e justamente por isso chegou tão longe. Nós sabemos demais e, por isso, raramente saímos do lugar.

Seria esse o recado enviesado do destino sobre gaiatos, gatos e gaiolas? Alguns, por descuido ou coragem, rompem as grades e descobrem o mundo. O resto lambe as barras ou afia as garras na própria prisão. Como se a vida fosse apenas batatas por descascar.

28 comentários:

  1. ADEMAR RAFAEL FERREIRA5 de novembro de 2025 às 04:42

    Ler as crônicas de Hayton toda quarta-feira é mais seguro que entrar de "gaiato" no novio e/ou cruzar oceanos sem alimentos. O medo é zero, a coragem mil.

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  2. Dizer a verdade é preciso: quem não lê Hayton, ao menos nas madrugadas de quartas-feiras, pode "entrar de gaiato no navio" da oportunidade de participar das lições que suas crônicas trazem, explícitas ou implícitas, e nos premia garbosamente.
    Aprendi a lê-lo permaneço fiel leitor, mas, acima de tudo, um aluno atencioso, cuidadoso mesmo, para absorver essas lições, por vezes verdadeiras aulas públicas.
    Obrigado, mestre Hayton!
    Fico a "esfregar o chão" das letras, já que "entrei de gaiato no navio" do descobrimento da maestria com que nos permite ter acesso ao que você escreve, aqui e nos livros publicados.
    Por sinal recebi,contem à tardia, seu novo lançamento.
    Ave Palavra!

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  3. Francisco Oitavo P. Fernandes5 de novembro de 2025 às 05:16

    Na "crônica dos Gagás" quem se deu bem foi a onça. Do nada, arranja um gato prá chamar de seu. Nem sereia era e de repente "a litlle cat" aparece na sua vida e na sua aldeia. A vida tem dessas coisas. Ás vezes dá certo quando não se tem planejamento nenhum. Eu, que não sou gato, não sou dado a aventuras não planejadas, não entraria num navio desses nem com mil promessas de uma sereia a bordo. Que o novo casal desfrute das dores e das delícias de viver na América. Que tenha sorte o bichano. Não tá fácil viver ali, notadamente se não se tem lenço e documentos. O rei que comanda a selva por lá não é o rei leão nem é muito chegado a quem desembarca de paraquedas.

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  4. Hayton conseguiu fazer quase um resumo da vida: como conciliar o eu-agora (aquele que tem urgência, quer viver tudo intensamente como se não houvesse amanhã) com o eu-depois (o que é previdente, mede as consequências, se prepara).
    Talvez a dúvida existencial mais importante (viver, a que será que se destina?) seja como harmonizar esses dois eus. Porque talvez um não viva sem o outro; e o outro não sobreviva sem o um.

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  5. Esse relato serve para todos como uma luva.
    Quem nunca sonhou em se aventurar pelo mundo e não se acovardou por ser racional demais, que atire a primeira pedra.

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  6. Bom dia, Hayton! Acordei lendo a sua crônica. Nos faz pensar o quanto nos apegamos à terra firme e, por isso, o quanto talvez tenhamos perdido da vida!

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  7. Estou lendo seu periódico observando os primeiros raios de sol na imensidão do mar. Esse horizonte sempre me provoca e por diversas vezes tentei descrever o mistério do além mar e além sol, mas nas minhas limitações não saio do lugar. Hoje seu texto, rico e genioso como sempre, me tranquilizou, pois há poucos “gatos” que criam coragem e se lançam na aventura de transpor os limites criados. Tanto assim que viram manchete e tão únicos que inspiram geniais escribas. Bom de ler querido amigo.

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  8. Belíssima crônica.
    Além de revelar o passageiro clandestino, ainda fez com maestria o digníssimo papel de alcovitar o amor “proibido” dos felinos.
    Contudo, o que me encantou verdadeiramente, foi a construção que engendrou no meu pensamento, das longas horas que o “velho” Ernest Hemmingway passou no cais mancomunando com os seus neurônios entre ficar ou seguir.
    Vi a sua figura de cabelos grisalhos, barba aparada, boné de marinheiro e acabei reconhecendo a pessoa do meu amigo Hayton no papel de Hemmingway. Só que na varanda do seu apartamento em Maceió, contemplando o belíssimo mar azul e, por prevenção, acorrentado na ferragem da janela. Vai que dá vontade de sair voando 👀

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  9. É sempre um privilégio acordar lendo suas crônicas ,HAYTON . As vezes precisamos nos aventurar nessa vida !!

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  10. É sempre um privilégio acordar lendo suas crônicas ,HAYTON . As vezes precisamos nos aventurar nessa vida !!

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  11. “A vida... o que ela quer da gente é coragem", de Guimarães Rosa
    “O que Deus quer é ver a gente
    aprendendo a ser capaz
    de ficar alegre a mais,
    no meio da alegria,
    e inda mais alegre
    ainda no meio da tristeza!
    A vida inventa!
    A gente principia as coisas,
    no não saber por que,
    e desde aí perde o poder de continuação
    porque a vida é mutirão de todos,
    por todos remexida e temperada.
    O mais importante e bonito, do mundo, é isto:
    que as pessoas não estão sempre iguais,
    ainda não foram terminadas,
    mas que elas vão sempre mudando.
    Afinam ou desafinam. Verdade maior.
    Viver é muito perigoso; e não é não.
    Nem sei explicar estas coisas.
    Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor.”

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  12. Esse termo " gaiato" foi muito utilizado por um certo senhor, muito sério durante toda sua vida, com relação ao seu 2° filho, que entre fugas e travessuras, vivia a soltar as suas " lorotas".

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  13. Crônica maravilhosa, nos leva a uma viagem de reflexões, “ viagem, o próximo celular, o próximo Natal. E, quando arriscamos, é sempre com manual de instruções na mão, para que nada saia do script. Vivemos como se tivéssemos medo de entrar “de gaiato no navio” e, no fundo, é isso que nos condena a nunca sair do cais.“ como precisamos de libertar dos nossos medos, para ganhar o mundo.

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  14. Hayton, é sempre uma alegria, para nós, leitores assíduos de suas crônicas, termos o privilégio de recebê-las logo cedo às quartas-feiras. Hoje você nos brindou com uma reflexão interessantíssima sobre o dilema perene entre o impulso de fuga e a disciplina da rotina.
    A maneira como você desenha o cenário inicial — a fantasia de "jogar tudo pro alto" sendo imediatamente refreada pela "lucidez" que nos impõe a navalha da realidade — estabelece o tom com precisão cirúrgica. Somos, de fato, "marinheiros de terra firme que nunca molharam os pés".
    O recurso à memória afetiva do "Melô do Marinheiro" é fantástico. Na realidade voce transforma o hit dos anos 80, que era uma canção de jovialidade, em uma alegoria do sonho frustrado. A aventura se reduz a "sabão e vassoura", e o mar prometido se torna a pia de descascar batatas. Que ótima metáfora sobre como as grandes promessas de liberdade, não raro, se convertem em trabalho braçal acompanhado de esforço.
    Contudo, o que mais gostei foi o contraponto que você habilmente introduziu: o gato chinês, Xiao Mao. Enquanto o ser humano se imobiliza na encruzilhada da decisão, o felino, de forma totalmente acidental, realiza o ato de abandono total e viagem sem rumo que o homem apenas sonha. O gato, o "gaiato" involuntário, atravessa continentes na clausura de um contêiner, cumprindo o ideal de aventura na mais completa ausência de consciência e status.
    Então, talvez a verdadeira liberdade só seja alcançável quando desprovida de intenção, planejamento ou, até mesmo, de lucidez. Uma excelente crônica, que nos convida a meditar sobre as nossas próprias gaiolas.

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  15. ...Excelente, caro HAYTON! -
    Enfrentar desafios pode ser algo bem complicado mesmo. Mas, é justamente nesses momentos que encontramos forças que nem sabíamos que tínhamos...
    José Luiz.

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  16. Ai ler a sua história lembrei de uma frase de uma música que sempre me intrigou: “o acaso vai nos proteger” eu como sou super distraída tenho diversas histórias fruto do acaso kkkk. Ótimo texto Hayton. Obrigada por me acrescentar a rede. Denise Vianna

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  17. O gato, Xiao Mao, em sua liberdade de escolher acabou fazendo, sem querer, um longa e solitária viagem. Ele simplesmente vive sua realidade, a humanidade complica a sua, trocando a simplicidade da existência pela complexidade de sentimentos negativos e escolhas que resultam em medos, seguindo a jornada cheios de dúvidas e enfrentando o grande dilema entre o ser e o ter, adotando posturas contrárias ao bom viver.
    Simbora, Hayton. Sigamos firmes e fortes, pois a vida é bela para ser vivida na sua plenitude. 🤝

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  18. Se esse gato chinês fosse criado no Brasil, muito provavelmente adaptariam seu nome, em função do seu espirito aventureiro, porque todas as vezes que ele partisse para um novo destino, era mais fácil se despedir com um "Xao Miao".
    Excelente crônica para nos relembrar de quantas vezes tivemos vontade de "desabotoar alguns botões" para nos sentirmos mais leves, mas logo em seguida nos lembramos que eles também servem para nos proteger.

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  19. Quando somos jovens, carregamos dentro de nós " o moleque sonhador" pronto para enfrentar os sete mares e descobrir o mundo. Com o passar dos anos, porém, vamos preferindo um porto seguro — ainda que seja para descascar batatas.

    Hayton, mais uma vez, suas crônicas nos levam a navegar pelo tempo, despertando lembranças, ideias e pensamentos que julgávamos adormecidos. Excelente crônica, parabéns

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  20. A crônica me fez lembrar da única lembrança de sacoleiro que fiz.
    Aos 21 anos saí com um colega da turma de medicina e fui pra Salvador lavar a alma, como se dizia. Sem dinheiro, sem lenço! Logo fomos pro mercado modelo e comprei uma sacola tipo hippie e continuamos a exploração em Salvador.
    Aventura para quem nunca tinha abandonado o navio. Valeu a experiência!

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  21. Essa é daquelas q nos faz pensar. Sensacional. Quantas vezes entramos de gaiato no navio. A primeira escola, o primeiro amor, o trabalho, as mudanças de cidade, de departamento, de diretoria e a aposentadoria. Quantos pisos tivemos q limpar. No final nem a vassoura restou. Luis Antonio

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  22. Maravilha de crônica. Parabéns.

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  23. Em tempos de guerra, esse GAiaTO chinês viaja de graça, entra nos USA sonegando as sobretaxas, arruma logo uma parceira nativa para ter Green Card e conquista seguidores sociais. Com esse roteiro do Hayton, logo estará na Netflix estrelando Aventuras sem fronteiras.

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  24. Navegar numa nau sem rumo, clandestinamente, sem destino, não sei se por fuga ou busca do novo, somente tendo sete vidas para a travessia dos sete mares. Agora vamos aguardar as crônicas de Xiao relatando o espírito aventureiro e o "clima" que pintou com a oncinha no balanço das marés.

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  25. Ter o privilégio em receber, ler suas crônicas, traz sempre uma ótima reflexão para a vida que queremos ter. Um texto envolvente, da melhor qualidade.

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  26. Ao ler esta crônica lembrei de um novo amigo que hj mora embarcado, já entrou de gaiato algumas vezes mas conseguiu o seu sonho de liberdade. Acabou de kançar seu livro: A velejada na Kabbalá/Honaj J Caticci.

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  27. Gostei de seu comentário e me deu saudades deste tempo. Abração carinhoso. Dayse lanzac

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