novembro 19, 2025

Uma calcinha preta na novela

UMA CALCINHA PRETA NA NOVELA 
Hayton Rocha


Semana passada, fui provocado por um sábio amigo, desses que citam o Código Penal de cabeça e ainda arrumam tempo para escrever textos fabulosos ou dedilhar o violão sentimental aos sábados. Pedia que eu comentasse o mais novo mexerico jurídico-amoroso do Fórum de Cachoeiro de Itapemirim, cidade onde as dores humanas chegam com firma reconhecida desde que suas águas batizaram Rubem Braga e Roberto Carlos.

É que, na virada do mês, a Justiça capixaba amanheceu diante de um enigma capaz de eclipsar habeas corpus, operações sigilosas e delações premiadas. Acredite: uma calcinha preta usada, abandonada no chão do Núcleo de Audiências de Custódia, área de acesso restrito e aura solene, onde normalmente só transitam algemas, angústias e autos cuidadosamente numerados.


Ilustração: Uilson Morais (Umor)


O burburinho correu mais rápido que intimação de magistrado com enxaqueca por conta de noite mal dormida. Virou meme de bacharel desempregado, piada em grupo de WhatsApp e pauta para ouvinte de rádio na madrugada. Teve até juiz que classificou o episódio como “grave”.

Eu, na minha ignorância jurídica, discordo. Grave, para mim, é gente preta continuar morrendo antes de viver com decência. Grave é criança negra estudar em escola sem muro, sem livros e sem futuro. Grave é o Brasil fingir que racismo é só questão de opinião. Grave é a desigualdade seguir escancarada, recebendo férias, décimo terceiro e estabilidade por conta da nossa indiferença.

Calcinha preta no Fórum é só uma extravagância burocrática. Uma nota de rodapé na monotonia dos despachos. Talvez até lembrete involuntário de que, apesar de toda liturgia, o corpo humano insiste em dar as caras onde menos se espera — assim como o amor, as canções e as palavras, como cantava Ângela Ro Ro.

Mas meu amigo insistiu. Contou até que o Tribunal determinou revisão minuciosa das câmeras de segurança. Imaginem a cena: servidores bebendo café requentado, olhos vermelhos, procuram não um criminoso, não um flagrante, não um fugitivo. Procuram uma alma que ousou amar na contramão do expediente.

E o povo, em sua ansiedade de costume, já quer pular capítulos da novela da vez. A pergunta deixou de ser “como foi parar ali?” e virou: “de quem será?”.

Meu amigo, romântico incurável, pinta o cenário com tintas fortes: final do expediente, corredor vazio, duas pessoas que passam o dia julgando culpas alheias resolvem aliviar as próprias. Uma advogada insinuante, talvez. Quem sabe um estagiário de olhar carente, “moreno alto, bonito e sensual”, como sugeria antigamente a banda Herva Doce. Cochichos e risos. Toques que viram endosso. O desejo que arde sem pedir autorização judicial.

Quando o impulso lateja, ninguém protocola requerimento.

Mas paixão é bicho arisco. Basta um ranger de porta, um passo no corredor, e o coração dispara feito réu ao ouvir sentença. As roupas voltam ao corpo como podem, às pressas, um tanto desalinhadas. Cada um foge para um lado, salvando o pouco de pudor que resta. Só a calcinha preta fica — testemunha muda, porém eloquente, estendida no chão como poema inacabado.

Agora falam em perícia. Luvas, microscópio, pinças. Como se estivéssemos diante de um capítulo inédito de Dostoiévski, Jorge Amado ou Nelson Rodrigues. Como se da investigação dependesse o destino moral e cívico do Espírito Santo. Do Brasil de todos os santos.

Circularam memorandos, organizaram diligências, reuniram servidores para revisar horas de gravação. Tudo muito certinho, tudo muito sério, para que ninguém diga que faltou rigor na apuração dos fatos.

E enquanto o aparato se mobiliza, o calendário nos lembra: é novembro. Mês em que morreu Zumbi dos Palmares. Mês dedicado à Consciência Negra. E o país, fiel à sua vocação para o desvio de foco, prefere debater o mistério de uma peça íntima preta.

Lá fora, na calçada do Fórum, seguem as mesmas filas de corpos cansados, vidas que aguardam sentença desde o berço.

Gente que nasce ré, cresce ré e morre antes do alvará de soltura.

A peça esquecida no chão virou assunto. A outra peça — a que falta desde sempre — continua invisível: o reconhecimento de que não é a calcinha que importa, é a textura da pele de quem espera do lado de fora, segurando documentos, crianças e esperanças frágeis.

Agora falam em laudo técnico de DNA. Como se buscassem as tais “marcas do amor nos nossos lençóis”, como canta Chico Buarque.

A calcinha preta vai ser embalada, catalogada, arquivada. A novela de quem chega algemado, ou limpa o banheiro, ou serve o café, ou varre o corredor, não. Essa ninguém coleta.

Por isso, continua no ar — em reprise diária, no Brasil inteiro.



LOGO MAIS, NA AABB RECIFE...

 




16 comentários:

  1. Realmente tem muita coisa para nos distrair, tirar o foco do que realmente importa.

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  2. O Fascínio Elegante de um Detalhe Esquecido
    Esta crônica é um deleite de inteligência e sensibilidade! Hayton, desta vez você teceu um comentário social perspicaz utilizando um episódio inusitado — uma calcinha preta esquecida no Fórum — como um ponto de partida brilhante. É uma celebração da vida que irrompe, festiva e irreverente, no meio da sisudez burocrática do mundo de um dos Poderes Constituídos da República.
    O que se destaca é a forma como a peça íntima, de um preto sempre envolto em mistério e desejo, é elevada a um símbolo. Essa cor, que há tanto tempo povoa o imaginário masculino com seu charme e sua aura de transgressão, transforma-se aqui numa testemunha silenciosa, mas poderosíssima, de um momento de paixão.
    A crônica captou com leveza a comédia do contraste: a seriedade de um Tribunal paralisado pela investigação de um pequeno, mas saboroso, ato de impulso e afeto. O gracejo contido na descrição dos servidores, "bebendo café requentado", em busca não de um criminoso, mas de uma "alma que ousou amar na contramão do expediente" foi sensacional.
    A crônica descreveu com perfeição, e de forma muito divertida, o retrato da paixão como uma força indomável: "Quando o impulso lateja, ninguém protocola requerimento." A calcinha, deixada para trás, torna-se um "poema inacabado," um troféu da pressa deliciosa de um encontro proibido.
    Acima de tudo, caro amigo, sua crônica demonstra uma destreza em desviar o olhar do superficial (a peça de roupa) para o essencial (as urgências humanas e sociais). Consegui produzir um texto alegremente sagaz, que nos lembra que a vida, com seus arroubos de romance e suas grandes injustiças, é muito mais vibrante e complexa do que qualquer memorando de repartição. Uma verdadeira joia que une o divertido e o profundo com rara elegância.

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    1. Seu brilhante comentário deixa bastante claro pros demais leitores do blog quem teria sido o provocador da crônica de hoje, véspera do Dia da Consciência Negra. Obrigado, meu sábio amigo!

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  3. Não duvide, há em curso uma investigação calcinhática! Não fora aquela peça cobridora de partes íntimas jogada ao chão, tudo estaria "como dantes no quartel de abrantes" e a sociedade brasileira em letargia de interesse pelo que se passa, no dia-a-dia das antes periferias hoje alcançando lugares inimagináveis das grandes e pequenas urbis.
    Com efeito, uma peça de uso íntimo - antigamente só por mulheres - caída ao chão num ambiente de operacionalidade jurisdicional é deveras preocupante, para não dizer desafiante, mesmo. Digno de mote para um romance de quingentésimos folhear de páginas ou de uma novela de infindos capítulos, com direito a escolher meia dúzia ou mais de finais, a depender da torcida do público noveleiro.
    Mas, como bem vem de sugerir o fecho desta seríssima crônica do Hayton, as lamúrias diuturnas da sociedade, esta desvalida da proteção obrigacional do Estado, tendem a persistir na mesma letargia - para não dizer abandono ou irresponsabilidade -, sem um olhar mais sério e/ou determinado com vistas a abrigar e proteger o direito do cidadão, seja ele quem for e em que classe social esteja classificado pelos organismos de economia, geografia e estatísticas.
    "Calcinhas" triunfarão. Até quando só o tempo de Deus nos há de dizer e, com nossas orações, nos remediar!
    Este país precisa de nós. "O que podemos fazer por nosso país"?!
    2026 é logo ali: despertemos nossas consciências e participemos das decisões maiores, a vontade popular é maior que a vontade pessoal.
    Obrigado mestre Hayton
    tonhodopaiaia.org

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  4. Hayton,
    No afã de ser um dos primeiros a comentar a crônica, acabei por olvidar o aspecto mais relevante dela. Coisas da idade. A questão relevantíssima não abordada foi que a crônica transcende o humor da situação para questionar o que a sociedade e o aparato estatal consideram "grave". Com sabedoria invulgar inverte o conceito de seriedade, apontando que a verdadeira gravidade não está na peça íntima, mas sim na violência e falta de oportunidades que atingem a população negra, transformando o objeto esquecido em um catalisador para uma discussão social urgente.
    A maestria do texto reside na forma como ele conecta a cor da peça com o Dia da Consciência Negra, celebrado em novembro, mês da morte de Zumbi dos Palmares. A crítica se torna explícita e contundente ao demonstrar o "desvio de foco" nacional: enquanto o país mobiliza recursos e pessoal para uma investigação fútil sobre a calcinha, ele ignora a tragédia diária do racismo. O autor contrasta a diligência para encontrar a dona da peça com a invisibilidade e a falta de investigação sobre a condição de quem "nasce ré" e espera "do lado de fora" do Fórum.
    Finalmente, a crônica conclui que a calcinha preta não é o que realmente importa; é apenas um símbolo de distração. A verdadeira "peça que falta" é o reconhecimento e a justiça para a população negra. O cronista transforma o item íntimo em um espelho da cegueira seletiva do Brasil, que prefere debater um mistério trivial a enfrentar a "reprise diária" da desigualdade e do preconceito, elevando o texto de mera crônica de costumes a um ato de reflexão social profunda e necessária.
    Então, está explicado porque tive que fazer este comentário adicional. Excelente crônica como sempre, parabéns.

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  5. Excelente crônica! Quando se imagina que viu de tudo, apat

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  6. Excelente crônica e provocativa reflexão.

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  7. Excelente crônica ,HAYTON !Provocativa e enigmática .Qdo descobrir a dona da calcinha nos comunique !!

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  8. O poder de mobilização de uma calcinha preta nos deixa perplexos. Talvez, dependendo do desenrolar das investigações, venha a se tornar inspiração para a produção de um filme ou novela. Show de crônica, Hayton!

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  9. Hayton, este fato da calcinha preta do fórum de Cahoeiro de Itapemirim vai render uma bela música, assim como rendeu esta extraordinária crônica.
    Enquanto rola a apuração que rolou outras coisas, os graves problemas sociais com o racismo estrutural abarrotam os tribunais pais afora com resultados, muitas vezes pífios, gerando injustiça onde deveria sair justiça.
    Creio que se chegar à conclusão de que um poderoso(a) fez uso do recanto para um belo momento de prazer, tudo terminará em pizza e com bons vinhos partilhado entre os pares.
    Fiquemos, no imaginário, com as cenas do próximo capítulo.
    Em tempo: o Umor abrilhantou ainda mais sua crônica com as pitadas de bom humor ali registradas.🎯🎯

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  10. Adorei, mostra o quão simbólicos, lúdicos e irracionais podemos ser, quando tomados por situações que operam no limite do que consideramos normal. A burla, o que foge da curva, a não previsibilidade ofuscam a retina dos pensamentos e nos colocam em posições de total bestificação. Porque precisamos de respostas, para explicar tudo, e se não achamos, inventamos, tal qual os antigos para as estrelas. O arremate social, que a crônica produziu, é divino. Daquela peixeira que entra sem pedir licença e arregaça vidas dormentes. Chamando-as à reflexão e ação. Quantas "calcinhas pretas" tiram energia, foco e produtividade dos serviços públicos brasileiros, sobrando pra o cidadão.

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  11. Quem diria que um objeto íntimo fosse causar tanto "frisson" na área da justiça. Pelo visto, se fosse uma "vermelha", então, teria despertado paixões ainda mais avassaladoras. Mas, talvez não fosse o estopim para uma crônica tão pertinente quanto a aqui apresentada, escancarando o que é visto a olhos nus, porém tantas vezes se faz vista grossa. Excelente a reflexão do texto desenvolvido.

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  12. ADEMAR RAFAEL FERREIRA19 de novembro de 2025 às 07:21

    Eu não tenho dúvidas que a cor da peça encontrada em lugar "impróprio" será decisiva para lavratura da sentença: "A "calcinha" é culpada."

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  13. Foi surpreendente a conexão feita entre o preto da calcinha e a pele preta, na Semana da Consciência Negra.

    Suas crônicas têm essa capacidade de alinhavarem temas, aparentemente, díspares, dissemelhantes, e no final, você dá um nó arrematando aquelas pontas de linha e tudo faz sentido.

    A crônica traz uma ilação, transvestida de fantasia erótica, sobre o que pode ter acontecido com a peça íntima e na cor preta, símbolo de poder e sedução, ter aparecido numa sala de tribunal, mas que poderia simplesmente ter caído de uma bolsa, de um bolso ou sabe-se lá como ali chegou. Mas o pensamento viaja sobre possibilidades mais sensuais e cada um direciona suas teorias para o quê melhor alimenta fetiches no imaginário coletivo

    Por outro lado, o achado tão inusitado, faz um contraponto muito interessante com o ambiente austero e sisudo de um tribunal e sai-se do "como" surgiu para o "quem" a perdeu. Se seria vítima, ré ou cúmplice.

    A forma como uma calcinha distrai e desfoca ternos e togas lembrou-me a lenda da perna cabeluda, que se espalhou no Recife, nos anos 70, durante a ditadura militar para desviar a atenção de outras questões que muito bem soube aproveitar Kleber Mendonça Filho, no filme O AGENTE SECRETO.

    Da mesma forma, a cor preta da calcinha se associa diretamente a cor da carne preta, a mais barata, como canta Elza Soares, que se reveza entre filas, grades e bancos de réus, quando não em pedras frias em necrotérios.

    Parabéns, Hayton. Nessa colcha de retalhos de pano e renda preta, você fez um trabalho maravilhoso

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  14. No Brasil, na nossa cultura, o balão de ensaio, a mentira escandalosa ou a fofoca são armas poderosas p desviar foco do que realmente é essencial em nossas vidas. Tem muita calcinha preta ocultando os movimentos dos Donos do Poder analisados pelo Faoro.

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  15. É assim mesmo aqui neste País, caro Hayton: o importante não importa.

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Uma calcinha preta na novela

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