quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Santo remédio

De cara fechada, sem batom, uma das ascensoristas do templo bancário da Cidade Baixa, onde trabalhavam mais de 500 pessoas, pilotava o seu elevador com a preguiça das segundas-feiras quando Rivaldo meteu a mão no bolso do paletó e lhe ofereceu um punhado de confeitos:
— Pegue, moça, chupe!
— Por quê?
— É um santo remédio. Nunca vi ninguém triste chupando confeitos.

Ele chegara à Bahia em junho de 1992, vindo do Recife. Voltava ao Banco do Brasil depois de um período cedido ao governo de Pernambuco em que ocupou a diretoria de RH do extinto Bandepe. Casado com Bárbara, analista de projetos da Sudene, formavam um casal bem humorado e carinhoso com filhos e amigos.

Na semana anterior, um puxa-saco escolado que havia na área, ao saber de sua origem sergipana e por ser freguês de um restaurante no Dique do Tororó que servia um cabrito guisado com aipim e farofa d'água de comer com os olhos a meio pau, alisava as pontas do bigodão ao indagar: 
— Chefe, você gosta de comer bode?
Rivaldo, que não perdia bola alçada por nada nesse mundo, sorriu e rebateu de primeira:
— Gostar eu gosto, mas é um bicho agoniado pra danar! 

Meses depois, quando soube que eu estava de partida, transferido para a agência Tabuleiro, em Maceió, veio conversar comigo como só ele sabia fazer:
— Por que você vai nos deixar? O que mais tem aqui na Bahia é tabuleiro!

Nos reencontramos no ano seguinte, designados, por 100 dias, para participar do Programa de Melhoria do Atendimento do Distrito FederalComo Bárbara não pôde acompanhá-lo, vi Rivaldo algumas vezes, apesar do conforto do apart-hotel em que se hospedava, queixando-se da saudade de casa. Eu havia alugado um quarto-e-sala no final da Asa Norte, próximo ao restaurante Nosso Mar, onde fiquei com minha mulher e nossa caçula. 

Bárbara viajava de Salvador para Brasília quase todo fim-de-semana. Numa segunda-feira como outra qualquer, ao telefone, ele comentou comigo:
— Minha mulher anda desconfiada de mim.
— É mesmo? O que você está aprontando? 
— Nada do que cê tá pensando, seu sacana! 
— O que seria?
— Ela não acha que sou acionista da Varig. Ela tem certeza!


De volta a Salvador, Rivaldo se aposentaria no começo de 1994 e, logo após doar as gravatas, tornou real uma antiga fantasia: comprar um "brinquedo" para navegar na Baía de Todos-os-santos. E quando, pela primeira vez, saiu do píer num pequeno bote até a embarcação, um amigo que lhe visitava, de Brasília, quis saber:
— Como é que você compra um barco sem saber nadar?
— Peraí, e você, que vive dentro de um avião pra lá e pra cá, por acaso sabe voar? 

Quando, mais adiante, me chamou para conhecer a Queridoca, quase acontece uma tragédia. O destino seria a Ilha dos Frades, nome inspirado no grupo de religiosos que sobreviveu a um naufrágio e encontrou abrigo na ilha que possui exuberante floresta atlântica, com árvores nativas, inclusive pau-brasil. 

Depois de vários goles de cerveja, camarões no alho e óleo e mergulhos em alto-mar, eu voltava à proa quando notei Rivaldo trêmulo, com a voz grave, pastosa:
— Diga nada não... Bárbara vai ficar aperreada...
— O que foi?
— Acho que é derrame — disse, a enxugar o suor da testa — Me leve pro hospital.
— Calma... — preocupei-me, imaginando como socorrê-lo sem que nossas mulheres notassem — O que você tá sentindo?
— A vista embaçou, a mão tá gelada...

Não sou médico, mas, antes de pedir ao barqueiro para voltar ao cais, cuidei de observá-lo com mais atenção e, com a ajuda de todos os santos de plantão nos céus da Bahia, fiz diagnóstico rápido e certeiro, além de propor o adequado tratamento, sem intercorrências:
— Rapaz, você tá com meus óculos e eu tô com os seus!
— Eita! Agora é que você não vai contar nada pra ninguém. Minha mulher vai me interditar...
— Pode deixar! Também não vou cobrar pela consulta.

A “cura” instantânea, sem sequelas nem efeitos colaterais, nos fez olhar com menos indiferença a fartura de céu, sal e sol que tínhamos diante de nós, santo remédio para quase todos os males.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Chance, martírio e toalha

Logo após a Copa do Mundo de 1970, no México, quando o Brasil conquistou em definitivo a taça Jules Rimet, surgiu no Centro Sportivo Alagoano (CSA) um ponta-esquerda driblador, raçudo e veloz, um verdadeiro azougue para seus adversários. Chamava-se Ricardo.

Na época, um cartola do Esporte Clube Bahia conseguiu convencer a diretoria do clube alagoano a levar o garoto para realizar testes em Salvador antes de decidir por sua contratação.

No primeiro treino na Fazendinha – antigo centro de treinamentos no bairro da Pituba, em Salvador –, Ricardo, aos 18 anos, rendeu bem acima do esperado contra os titulares do Tricolor de Aço, que contava com estrelas regionais como Picasso, Aguiar, Sapatão, Roberto Rebouças, Baiaco, entre outras.

A conversa então se deu ali mesmo, à beira do campo:
– Bom, Ricardo, você tem futuro – disse o cartola, tentando mascarar o entusiasmo para não comprometer a proposta salarial a ser feita –, mas ainda é muito verde para jogar num clube grande como o Bahia.
– Tudo bem, vou voltar pra casa. Quando fizer 30 anos, apareço de novo por aqui. 
O acordo com o CSA e o contrato foram fechados no dia seguinte.

Mas o menino nunca se firmou como atleta profissional do Bahia. Encurralado nas cordas pelos golpes das tardes em Itapuã e das noites no Rio Vermelho, Ricardo logo viveria um martírio (sobrepeso e lesões) até jogar a toalha e retornar para Alagoas, onde pouco tempo depois largaria o futebol sem nada digno de nota. 

Chance, martírio e jogar a toalha me remetem a outro caso interessante. Envolveu o falecido Geraldo Bulhões (Gebê), eleito cinco vezes deputado federal por Alagoas, com mandatos consecutivos ao longo de 20 anos (de 1971 a 1991) até virar governador. No exercício desse último cargo, ele também ocupou a presidência do Conselho Deliberativo do CSA, sua paixão desde criança. 

Aqui um parêntesis: Gebê, aliado do então presidente Fernando Collor, virou notícia nacional após a divulgação de brigas com a esposa, Denilma Bulhões. Jornais e revistas revelaram que ele havia sofrido uma surra de toalha molhada da primeira dama nos aposentos do palácio dos Martírios. 

O episódio teve grande repercussão midiática e ele nunca o desmentiu, nem mesmo após o divórcio. Denilma, inclusive, era chamada de “governadora” e, dizem, inspirou a personagem Rubra Rosa, de Fera Ferida, novela da Rede Globo

Gebê, que sofria sérios problemas nos olhos e evitava viajar por isso mesmo, no começo de 1993 designou representante para que fosse ao Rio em busca de reforços para o Azulão.  Além do Fluminense, o São Cristóvão seria outro clube a ser visitado.

Ao desembarcar, primeiro o emissário procurou o pequeno clube carioca, cujos cartolas pediram quantia irrisória pela liberação de um atleta de seu time juvenil. Antes de bater o martelo, porém, o procurador resolveu ouvir Gebê:
– Governador, o pessoal tá nos oferecendo um menino bom de bola, bem baratinho...
– Quem é?
– Vi um treino dele e gostei. Tem só 16 anos. Mesmo magrinho, é ligeiro, dribla bem. O menino é bom!
– Menino a gente já tem de monte aqui em Maceió. O CSA precisa de jogador maduro, pronto.
– Tá bom... Então vou levar Catanha, que já tem 21.

Nada contra Catanha, que virou ídolo azulino e depois teria passagem marcante pela Europa, sendo vice-artilheiro do Campeonato Espanhol 1999/2000, com atuações que lhe garantiram inclusive a naturalização e uma vaga na Seleção da Espanha. 

Acontece que o menino rejeitado por Gebê logo depois seria cedido ao Cruzeiro, de Minas, e no ano seguinte faria parte da Seleção Brasileira tetracampeã mundial nos Estados Unidos. Era um certo Ronaldo, que viraria fenômeno e mais tarde ainda seria pentacampeão na Copa de 2002, na Ásia, assinalando dois gols na partida final contra a poderosa Alemanha. 

Azulão, assim, perdeu a grande chance de ser reconhecido no mundo inteiro como clube formador de uma lenda do esporte mundial, com todas as vantagens disso decorrentes.

Há quem diga que a falta de visão de Gebê (perspectiva, no caso) pode ter motivado a famosa surra de toalha molhada no palácio dos Martírios. Não creio nisso, mas, reconheço, entre quatro paredes, nunca se sabe o que pode acontecer. 

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

A sacanagem de Jobim com João

Nada de maestro, compositor, pianista, cantor ou arranjador musical. Nem um dos criadores da Bossa Nova. O Jobim a quem me refiro era caixa do Banco do Brasil nos anos 70, na agência de Maceió.

Cara de areia mijada, óculos na ponta do nariz, timbre de voz grave, ele contava cédulas mordendo a língua. Vivia a pregar peças e a perturbar o juízo das mais variadas pessoas e ninguém sabia ao certo quando falava sério ou de brincadeira.

Certa vez, ao atender a um cliente que sacava alta quantia em dinheiro, de propósito ele trouxe um dos pacotes cintados de 100 cédulas com duas notas a menos e aproximou-se com o maço desfalcado na palma da mão, balançando, como se estivesse “pesando a mercadoria”:
— Sei não... Deve tá faltando duas cédulas...
— Então, conte o dinheiro, rapaz! — propôs o cliente.

Jobim simulou contar, recontar e, confirmada a falta, completou o pacote com duas cédulas retiradas da gaveta do caixa. O cliente arregalou os olhos e saiu dali impressionado, a ponto de comentar com os vigilantes na saída:
— Esse rapaz é bom mesmo. Conhece dinheiro até pelo peso.

Diferente de Jobim era João, que nunca tocou violão nem cantou porque era desafinado até para assoviar. Chefiava um setor em outro pavimento, onde seus colegas o viam como alguém carrancudo, inflexível, que se jactava de ser professor de Física e profundo estudioso de objetos voadores não identificados.

Com ar de sabe-tudo, João contava que o astrofísico francês Jacques Vallee, em seu livro Anatomy of a Phenomenon, de 1965, teria sido o autor da primeira definição de OVNI. Em linguagem empolada, dizia que "eram manifestações de relatos de uma imagem visual percebida pela testemunha como a de um objeto voador material, que possuiria pelo menos umas das seguintes características: aparência ou comportamento incomum". 

Ao saber disso, Jobim pediu a um fofoqueiro — toda empresa possui os seus — para espalhar pelos treze andares da agência que tivera no passado uma experiência misteriosa com seres extraterrestres.

       Fez isso convicto de que seria procurado por João, a quem passou a evitar. Toda vez que João se aproximava dizendo que precisava conversar, Jobim arranjava uma desculpa qualquer e escapulia, atiçando ainda mais a curiosidade "científica" do colega.

Era esperado que o encontro acontecesse. Um dia, João ficou de tocaia na porta da agência, minutos antes do final do expediente:
— Oi, Jobim, eu soube que você viveu uma experiência com OVNI e queria conversar sobre isso.
— Olhe, João, eu prefiro não tocar nesse assunto. Ninguém acredita no que eu digo. 
— Por quê? Você sabe que sou estudioso...
— Melhor deixar isso pra lá.
— Peraí, Jobim, você vai ter que me contar como foi.
— Pois bem, eu era fiscal de operações em Santana do Ipanema, no Sertão. Fui vistoriar umas lavouras de milho num baixio e como não conseguia chegar de carro lá embaixo, tive que descer o morro no lombo de um jumento.
— Sim, e daí?
— Não sei bem o que aconteceu. De repente, o tempo esfriou, mesmo com o solzão de rachar. Aí surgiu uma sombra danada de grande e desceu um troço cinza, parecia dois pratos emborcados.
— E você, fez o quê?
— Tá doido?! Pulei do jumento na hora e me escondi detrás de uma touceira de capim. Deu até vontade... Dor de barriga.
— Sei...
— Não demorou dois minutos saíram dois baixinhos olhudos, da cabeça grande, de dentro dos pratões e caminharam na direção do jumento.
— E você, quietinho...
— Claro! 
— E aí?
— Um deles olhou pro jumento e perguntou: “uba-tatuba?”  O jumento deu uma gargalhada e respondeu: “tatuba-uba!”

A turma do “deixa-disso” teve que entrar em cena. João queria estrangular Jobim:
— Você é moleque mesmo! Me fazer perder tempo com uma sacanagem dessas?
— Eu bem que lhe avisei. Ninguém acredita no que eu digo!

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Catita

Quinze anos atrás conheci Catita, copeiro vinculado a uma firma terceirizada, para mim um sábio na arte de arejar ambientes corporativos. 

Aos 35 anos, 1,65 m de altura, queimado feito um boi de barro ou O lavrador de café de Portinari, seu charme, segundo ele mesmo, estava nas sobrancelhas de taturanas e na gravata borboleta a lhe adornar os três dedos de pescoço.

Quando cheguei, já estava no local em que trabalhamos juntos por dois anos. Soube que um antecessor meu, que se queixava do excesso de pretendentes a determinado cargo, teria recebido de Catita uma ajuda importante para pré-selecionar os candidatos. 

No dia da entrevista, Catita entrou sorridente na sala de espera, com bandeja, bule, xícaras e copos, a perguntar em voz alta, repetindo o que havia decorado de véspera:
— Would you like some coffee? Do you like sugar?

Logo depois voltaria à área interna a espalhar que metade dos interessados desistiu porque seria complicado trabalhar num lugar onde até o cafezinho era servido em inglês. “A outra metade preferiu um copo d’água gelada”, dizia ele, lacrimejando de tanto rir.

Flamenguista abusado (pleonasmo?), Catita mexia com meio mundo de gente quando chegava eufórico com mais uma vitória de seu time. Perdia a noção do perigo a rebolar pelos corredores imitando Tetê Espíndola, querendo alcançar o timbre e a extensão vocal da cantora: Você pra mim foi o sol de uma noite sem fim...

De Brazlândia (cidade-satélite onde morava) ao Plano Piloto, eram quase duas horas de ônibus para chegar ao trabalho, mas nunca aparecia triste, calado. Numa quinta-feira em que chegou espirrando, a reclamar de dor de cabeça e coriza, fiz o que qualquer um faria: aconselhei-o a voltar para casa. E quando liguei no domingo para saber se estava melhor, antes de responder comentou com alguém que devia estar a seu lado:
— Cê pensa que só tenho amigo “urêa” seca, é? Fale aqui com meu chefe!
Foi como Catita, por telefone, me apresentou a seu sogro, com quem bebia uma cerveja no quintal de casa, a curtir o domingo em família.

Por falar no sogro, Catita morria de medo da esposa, por quem sempre teve o maior carinho e respeito. Mesmo assim, um dia, dando a entender que fora casado outras vezes, falou sério:
— Tô doido pra arranjar mais uma P.A.
— Que diabo é isso, Catita? — indagou uma inocente recepcionista.
— Pensão alimentícia! — disse com a cara mais cínica do mundo, a imitar Amelinha com a voz em falsete: Mulher nova, bonita e carinhosa, faz o homem gemer sem sentir dor

Catita não tinha pressa. Levava mais de hora para servir uma rodada de café num salão interno com menos de 40 pessoas, parando aqui e ali para contar a última novidade, mexer com alguém mais carrancudo, comentar um lance do futebol ou arremedar alguma figura pública. 

Já perto de minha transferência para outro local de trabalho, aconteceu outro lance memorável. Eu saía para almoçar num rodízio de carnes que havia em Brasília quando nos encontramos no hall dos elevadores:
— Chefe, também tô indo almoçar no Porcão.
— Quer carona? — perguntei, sem entender como ele sabia do meu itinerário. 
— Precisa não! O Porcão é aqui perto.
— Que Porcão tem aqui perto, Catita? 
— É um branquelo, chefe, buchudo — disse sorrindo — E faz um PF, ó, de primeira. Bem aqui na Rodoviária.

Andei noutros lugares, depois me aposentei, mudei de  cidade e há mais de 15 anos não via Catita. Outro dia descobri o seu paradeiro e fiquei feliz por vê-lo em paz. Mora agora na cidade-satélite de Santa Maria (a 26 km do Plano Piloto) e trabalha como recepcionista de um centro médico na Asa Norte. 

Quis saber dele como estavam seus filhos e vi que a língua continua afiada como lâmina de barbear:
— Chefe, meu moleque tá a cara do Gabigol, mas não joga nada! Desse jeito não vai jogar nem no Vasco! — respondeu, dobrando-se de gargalhar.

Sinto, não nego, uma falta danada dessas catitices depois que me aposentei.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Ernesto e seu magote de cornos

Passava das dez da noite de sexta-feira quando Ernesto chegou em casa. Largara às seis. Com cuidado para não fazer barulho, abriu a porta bem devagar, descalçou os sapatos e seguia em direção ao quarto quando da escuridão fez-se a luz. Sua mulher, de origem germânica, forte e brava feito onça da pata torta, sentada no sofá, acionou o quebra-luz:
— Bonito! Isso é hora de pai de família chegar em casa? Que exemplo dá para os filhos, hein?
— Peraí... Quem disse que eu cheguei? Vim só buscar o violão.
— Como é? Quando é que cê vai parar com essa vida?
Minutos depois lá estava ele a fechar o ferrolho do portão do jardim, ganhando a calçada onde os amigos o aguardavam na esquina.

Alto, elegante, cara de cacique apache, na casa dos 45 anos, Ernesto era motorista do gerente de um banco na capital alagoana, ali na metade dos anos 70. Guiava um Chevrolet Opala SS 1974, 6cc, preto, das 8h às 18h de segunda a sexta-feira, vestido num impecável terno azul marinho, sempre bem barbeado e com todos os fios da cabeleira no lugar, retrato dos tempos da brilhantina. 

Quando o conheci, já não bebia uma gota de álcool sequer. “Tomei tudo o que tinha direito na mocidade”, dizia. Lembro-me dele no clube, numa mesa próxima da piscina, o cigarro no canto da boca e as mãos com os dedos compridos a extraírem acordes de violão ou cavaquinho. A seu lado, o copo de soda limonada com gelo e o tira-gosto. 

Numa segunda-feira, era tanta a ressaca decorrente de noites mal dormidas e de petiscos gordurosos que Ernesto, a derreter no vaso sanitário em náuseas e cólicas, assustou-se quando lhe avisaram que o chefe estava de saída para um compromisso externo. Na pressa de vestir as calças, as chaves do carro caíram dentro do vaso e veio o desespero. “Achei que o chaveiro ia descer com tudo para a fossa”, contava.

Não lhe restou alternativa: prendeu a respiração, meteu a mão na massa e conseguiu resgatar o chaveiro com as pontas dos dedos antes de a descarga concluir o seu carrossel sonoro. Demoraria mais uns cinco minutos a lavar bem as mãos antes de encontrar na garagem o chefe, a quem se justificou: “Ontem à noite comi alguma porcaria que me fez mal”. O suadouro não deixava dúvidas quanto à veracidade do fato. 

A mulher de Ernesto, adepta da Igreja Adventista do Sétimo Dia, levava uma vida devotada a Deus nos aspectos físico, psicológico e espiritual. Queria a todo custo, por isso mesmo, convencer marido e filhos a adotarem estilo de vida parecido, com base em oito remédios para ela santificados: fé em Deus, água, alimentação saudável, ar puro, comedimento, exercício físico, luz solar e repouso. 

Demônios da Garoa
Nunca conseguiu, pelo menos em relação ao marido. Por conta das restrições do seu credo religioso, a esposa guardava o sábado sobre todas as coisas. Ernesto acabou se juntando a alguns colegas de trabalho (Nelsinho, no violão; Paulo Neto, no tantã; Alvacyr, no pandeiro; entre outros) e criaram um grupo musical inspirado no famoso Demônios da Garoa.  Sem fins lucrativos e apenas para animar as "reuniões", o nome escolhido era injusto com as respectivas caras-metades: Ernesto e seu Magote de Cornos.

Numa manhã de sábado, um espírito de porco qualquer deve ter telefonado para a casa de Ernesto para dedurar que o grupo musical estaria se exibindo numa farra em Santa Luzia do Norte, pequeno município da região metropolitana de Maceió. Pouco depois, sua esposa chegou num táxi e foi logo armando o maior escarcéu. 

Quase todos os frequentadores do bar se assustaram com a repentina aparição daquela senhora exaltada, de dedo em riste, dirigindo-se ao líder do grupo musical.  Menos Ernesto. Calmamente, ele largou por um instante o cavaquinho, levantou-se do tamborete, pegou uma canoinha de palha de coqueiro, fez um risco no chão com o bico e disparou:
— Volte para casa, agora! Se você passar deste risco, não me responsabilizo por mim.
— Como? Eu não tenho dinheiro para pegar outro táxi — retrucou a esposa.
— Você não veio sozinha me desmoralizar na frente de meus amigos? Então, se vire.
E puxou um longo trago no cigarro, antes de voltar a dedilhar o cavaquinho.

Na segunda-feira, Ernesto apareceu no trabalho com o semblante sereno de sempre, mesmo com escoriações generalizadas no pescoço e nos braços. Parecia que tentara capar um gato com um bisturi cego. Disse que sofrera uma queda ao consertar goteiras no telhado.  

Nenhum dos colegas ousou duvidar do líder. Afinal, o importante era que o grupo Ernesto e seu Magote de Cornos, com chuva ou sol no próximo final de semana, animaria nova farra num boteco qualquer. 

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

À beira do açude de Quixeramobim

Sentado à beira do açude de Quixeramobim, no Sertão cearense  terra natal de Antonio Tertulino, meu sogro , vimos alguns meninos pulando do sangradouro:
– Por que não eu? – pensei alto, seguro de que minha mulher me demoveria da bravata, coisa de rapaz novo e encantado, com vinte e um anos de amor.
– Por que não? – ela me devolveu, já pronta para o clique com sua velha Kodak Instamatic.


Demorou uma semana o tempo entre o parapeito da barragem e a pancada na água da planta de meus pés. Não seria o disparo do coração ou a secura da boca que me fariam desistir do salto e de nadar até a margem para recuperar o fôlego.  

Quarenta anos depois, continua bem fresquinha em minha memória a overdose de endorfina (o hormônio do prazer) que tomou conta de meu corpo naquela manhã de sol, cerveja e piabas crocantes, temperadas com limão, sal e pimenta.

Todo prazer vicia e tudo aquilo que qualquer ser humano mais deseja é poder prová-lo de novo, se possível  elevando o sarrafo. Poderia, portanto, tentar adiante algo mais radical como o bungee jump, esporte onde se salta de um barranco, uma ponte ou coisa parecida, amarrado por um elástico. Ao ser alongado até o seu ponto máximo, tal elástico puxa o corajoso para cima.  

Acontece que não havia de onde retirar tanta coragem. Tratei logo de arranjar para mim mesmo a desculpa esfarrapada (Freud explicaria fácil!) de que não valeria à pena investir tanto em tão poucos minutos de gozo e pânico. 

Com o correr dos anos, esses rompantes passaram. No começo de 2012, porém, recebi de João Comaru,  à época aposentado havia mais de 10 anos, sua imagem sobrevoando de asa delta a cidade do Rio de Janeiro. Me contou que saltara da rampa do Morro da Pedra Bonita, pousando na praia do Pepino, em São Conrado. 

A asa delta, que usa como fonte de energia apenas as correntes de ar, está na imaginação de muita gente e era sonho relativamente fácil de realizar. Claro, na opção pelo chamado voo duplo, onde um piloto experiente conduz o "pássaro" novato pelo céu, diminuindo os riscos da aventura.
Se a experiência vivenciada à beira do açude de Quixeramobim me deixara tão grata lembrança, imaginei como me sentiria após uma experiência dessa envergadura, com direito a imagens de vídeo para ilustrar as histórias que contaria a netinhos orgulhosos da façanha do avô.

Li o que pude a respeito desses voos e descobri que havia boas empresas especializadas no assunto. Escolheria uma das melhores em termos de segurança, ainda que não exista prazer que não diminua quando livre do perigo. 

Com tudo sob controle, inclusive o checkup médico anual e a grana no bolso para a estrepolia num final de semana no Rio, de repente as duas partes de mim – a que pesa, pondera, almoça e janta; e a que delira, se espanta e só se sabe de repente, como diria um certo poeta conterrâneo de meu pai –, entraram em rota de colisão e quase trocam tapas:
– Faz sentido? – perguntava a primeira. 
– Se não vai me ajudar a voar, libere o céu – rebatia a outra.
– Saltar ou não, o que muda? 
– Só se sabe depois.
– E se não saltar, a frustração será grande?
– Talvez sim, talvez não.
– Tá bom. Então, vamos lá?
– Não sei... Faz sentido mesmo?

Depois que passar a pandemia que estamos vivendo, quero voltar à beira do açude de Quixeramobim para ver a molecada de hoje pulando do sangradouro. Quem sabe encontre de novo por lá o que havia de melhor dentro de mim.

Difícil será encontrar resposta para algo mais ligado ao céu de Ícaro do que ao de Galileu: para onde foram as coisas que poderiam ter acontecido em minha vida e não aconteceram?

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Bigodes nunca mais!


Berço do ex-senador Teotônio Vilela  o menestrel das Alagoas  e de seu irmão cardeal primaz do Brasil, Dom Avelar Brandão, a alagoana Viçosa, com pouco mais de 25 mil habitantes, está encravada no Vale do Rio Paraíba do Meio, a 86 km da capital.

Lá o escritor Graciliano Ramos viveu e inspirou-se para escrever São Bernardo, obra-prima publicada em 1934 em que o personagem Paulo Honório faz reflexões sobre sua vida, de guia de cego no interior até se tornar um grande e inescrupuloso latifundiário. 

Lá também viveu Seu Vilaça, caminhoneiro trabalhador como poucos, olhos apertados, sobrancelhas grossas, bigodinho bem aparado, casado com Lourdes, paixão antiga com quem trouxe ao mundo 15 filhos, metade meninas.

O sustento da prole dependia de um caminhão Ford 46 de dois eixos carinhosamente apelidado de "Bigode", cuja partida dependia de uma manivela conectada ao virabrequim. Até que fossem criadas as primeiras baterias, o motorista desse tipo de veículo toda manhã rezava e ensopava de suor girando a tal manivela para fazer pegar o motor. 

De setembro a abril do ano seguinte  período de moagem da safra canavieira no Nordeste —,  Seu Vilaça transportava a produção de pequenos fornecedores de cana-de-açúcar das redondezas para a Usina Boa Sorte, pertencente ao então senador Teotônio Vilela.

O sábado era dedicado ao “descanso”, isto é, a lavar o veículo e a fazer pequenos reparos. E já a partir das três da madrugada do domingo, reunia vendedores ambulantes na periferia de Viçosa para transportá-los à feira livre da vizinha cidade de Capela.

Com a família numerosa e a necessidade cada vez maior de fazer carretos para que nada faltasse “às meninas”  Seu Vilaça não ligava muito para os meninos porque, dizia ele, “quem tem filho de bigode é gato” —,  essa rotina não poderia ser quebrada. 

Mas foi. Numa manhã de domingo, Zé Alves, político e grande fazendeiro na região, bem cedinho deslocava-se para suas terras a fim de vistoriar lavouras e rebanhos quando avistou Seu Vilaça, no meio da neblina que cobria a rua, a soltar labaredas pelas narinas peludas. 

Com o capô aberto, mexendo em tudo que era peça do "Bigode", tentava em vão dar partida no motor girando a manivela:
 Oh, meu Bom Jesus do Bonfim, a bobina tá bobinando, o carburador tá carburando, o relê tá relando, todo domingo eu vou à missa com Lourdes e este caminhão não quer pegar!
 Calma, Seu Vilaça...  quis desanuviar Zé Alves.
 Eu tô calmo! Não é você que tem um magote de mangaieiros pra levar pra feira de Capela!
 Tô vendo a calma... Tenha cuidado com o coração!
 Que coração coisa nenhuma! Ninguém merece uma vida de aperreio dessas.
Pouco tempo depois o motor do caminhão pegaria e ele pôde, mais uma vez, cumprir sua rotina semanal junto aos pequenos feirantes. 

De noite, ajoelhado na igreja, ao lado da mulher, diante da imagem do santo padroeiro, suplicou perdão pelos impropérios ditos pela manhã:
 Pelo amor de Deus, meu santo, fazei com que nenhuma de nossas filhas se apegue a um homem com um "Bigode" velho feito o meu... 

Mal acabou a oração, virou-se de lado e deu de cara com um bancário recém-chegado na cidade, do bigodão preto, com um olhar de luxúria para uma de suas filhas. Quis esconder sua satisfação com a rapidez do santo padroeiro  já ouvira falar daquele cidadão respeitável , mas ao notar que ali o motor da paixão já faiscara mesmo sem ajuda de manivela, chamou o moço na porta da igreja e puxou conversa: 
 Só trisque o dedo nela se for pra casar, ouviu bem?!
 Claro, Seu Vilaça.
 Me disseram que você tem medo de sapo cururu. É verdade?
 Nao é medo... é nojo. Coisa de menino criado em beira de rio. 
 Sei... Me diga outra coisa: um passarinho me contou que, além de trabalhar no banco, cê toca uma sanfona arretada. 
 Tô parado. Tive que me dedicar aos estudos para o concurso. Mas um dia eu volto...

Nunca voltou. Poucos meses depois, Seu Vilaça levaria a filha até o altar onde o bancário do bigodão preto a esperava. O casal foi passar a lua de mel na Bahia e gostou tanto do dique do Tororó, do acarajé de Amaralina, do afoxé Filhos de Gandhy, do caranguejo da Pituba, da ladeira do Pelô e do pôr do sol no Farol da Barra, que resolveu não voltar ao interior de Alagoas. 

Morto de saudade da filha que deixara a casa paterna e o torrão natal, Seu Vilaça espairecia na boleia do "Bigode" assobiando coisas como o baião Boiadeiro, de Gonzagão: 

"(...) De tardezinha quando venho pela estrada 
A fiarada tá todinha a me esperá 
São dez fiinho é muito pouco é quase nada 
Mas num tem outros mai bonito no lugá (...)"

Algum tempo depois, num dia útil qualquer, o “Bigode" foi nocauteado, com manivela e tudo, por falência de múltiplas peças corroídas pela ferrugem. Seu Vilaça, de faróis baixos para seguir adiante na escuridão do futuro, com os filhos crescidos e os olhos embotados de poeira e lágrima, raspou o bigodinho já grisalho e sentou de vez para descansar como se fosse sábado. 

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Tom Zé e o jogo da mãe de Amaro

Chuviscava na tarde em que Tom Zé e seu amigo Catatau foram ao Maracanã assistir a Vasco e Bangu, na abertura do 2º turno do Campeonato Carioca de 1969. Mesmo com o aguaceiro, passaram antes na casa de Amaro, em Irajá, para apanhá-lo. 

Ao chegarem lá, a mãe de Amaro recebia algumas amigas, com quem praticava o jogo do copo, que lembra o Tabuleiro Ouija, criado pelo espiritualismo, um movimento que varreu a Europa no século 19 conhecido pela visão otimista sobre o futuro e a vida após a morte.  

Era novidade para Tom Zé e Catatau aquele círculo de pessoas em torno da mesa da sala de jantar, com um copo emborcado no centro e as letras do alfabeto dispostas ao redor. De olhos semicerrados, sob a luz de velas, as mulheres colocavam as mãos sobre o copo, que deslizava em direção às letras, formando palavras ou frases curtas. 

Ao ver que o filho Amaro amarrou os cadarços e dava os últimos retoques no topete antes de sair com os amigos — todos eles na casa dos 15 anos de idade , a mãe cuidou de “ouvir o espírito” sobre o programa da rapaziada. O copo, então, apontou quatro consoantes: C, G, R e V. 

Ninguém entendeu nada. Tom Zé, contudo, vascaíno crônico, deduziu que o “espírito” estaria profetizando a vitória do Clube de Regatas Vasco da Gama. Ficou cismado porque aquelas mulheres não tinham a menor intimidade com o mundo do futebol

Os rapazes deveriam pegar o ônibus na avenida Brasil em direção ao centro da cidade, onde saltariam em frente à estação da Leopoldina e seguiriam a pé até o estádio. Com o chuvisco intermitente, optaram pela linha Irajá/Cascadura até Madureira e, de lá, foram de trem para a estação Derby Club, em frente ao Maracanã.

Chegaram cedo, no momento em que começava a segunda etapa da partida preliminar entre os times juvenis de Vasco e Bangu. Nem prestavam tanta atenção no desenrolar do jogo até que, de repente, na área banguense, um moleque espigado driblou dois defensores adversários e arrematou forte no canto do goleiro, fechando o placar em 3 a 0 para o Vasco.

No mesmo instante, Tom Zé sentiu um calafrio no espinhaço e achou que fosse febre, sintoma de resfriado. Mas logo depois desconfiaria de algo sobrenatural, por conta do jogo do copo da mãe de Amaro. Ficou quieto, entretanto. Não era chegado a superstições ou crendices populares. 

Além de futebol, Tom Zé gostava mesmo de música, cinema e leitura, sobretudo de Drummond, que deu voz a muita gente boa ao confessar: "Não digo que sou vascaíno doente, pois doente é quem não é vascaíno". Gente do naipe de Aldir Blanc, Camila Pitanga, Danuza Leão, Edu Lobo, Francis Hime, Gonzaguinha, João Ubaldo Ribeiro, Luís Melodia, Martinho da Vila, Pixinguinha, Sonia Braga e outros.

Vida que segue, naquele dia no Maracanã a partida principal acabou sendo desastrosa para o Vasco, que perdeu por 1x2, com o desempate no último minuto, através de um obscuro ponta-direita banguense, chamado Mário. E na volta para Irajá, os vascaínos tiveram que engolir a zoação de Catatau, que não perdoou nem mesmo a profecia furada do jogo do copo da mãe de Amaro.   

Para Tom Zé, no entanto, só depois de dois anos cairia a ficha sobre a premonição do "espírito". Em 24 de novembro de 1971, véspera de uma partida entre Vasco e Internacional, pelo Campeonato Brasileiro, um jornalista que trabalhava no Jornal dos Sports buscava inspiração para a manchete de capa. Ao saber que um juvenil de 17 anos, que tinha uma “bomba nos pés”, poderia sair jogando, arriscou: “Vasco escala o Garoto-dinamite”.

No dia seguinte, o novato justificaria a chamada promocional. O Vasco já vencia por 1 a 0 (gol de Buglê) quando ele entrou em campo, substituindo Gilson Nunes. Na primeira bola que recebeu, livrou-se do zagueiro gaúcho Pontes e, da entrada da grande área, acertou um chutaço na gaveta esquerda do goleiro Gainete, provocando nova manchete, agora em letras garrafais: “Garoto-dinamite explodiu!” 

Tom Zé — Antônio José Santos Fonseca, meu velho amigo Fonseca estava no Maracanã e viu de perto o alvorecer de uma lenda chamada Roberto Dinamite (clique e veja aqui), que marcaria ao longo da carreira 708 gols em 1.110 partidas. O primeiro deles, um golaço no jogo do copo da mãe de Amaro.

Foi só começar...

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