quarta-feira, 22 de julho de 2020

O mutante

Ele mantinha uma conversa esfumaçada consigo mesmo toda sexta-feira à noite na esquina onde fica um boteco próximo de sua casa, na Gruta de Lourdes, em Maceió. Com um cigarro numa mão e um copo de cerveja na outra, tinha virado rotina, de hora em hora, o isolamento voluntário  para fazer uma “inalação reflexiva”, como dizia, longe dos demais frequentadores.

Enquanto isso, a mulher, cantora de uma dupla “voz e violão”, em tom resignado soltava o vozeirão na mesma toada de Alcione: “Sabe, meu menino, sem juízo, eu já aprendi a te aceitar assim” .

O boteco, como todos os bares e restaurantes da cidade, baixou as portas há mais de 100 dias.
  
Aos 61 anos, com 1,69 metro e 68 kg, se alimentava na base do trivial arroz, feijão e bife. Dormia feito criança, de sete a oito horas todo dia. Mas, além de sedentário, fumava e bebia desde os 13 anos. 

Tal como seus irmãos, nos anos 60 contraiu e escapou sem sequelas de todas as doenças típicas da criançada: gripe, catapora, tosse comprida, sarampo e papeira.

Quase aposentado – bancário e professor de Finanças –, amigos e familiares viviam a lhe cobrar mais assiduidade de consulta a médicos. O aperto era tanto que, mesmo a contragosto, chegou a fazer uma série de exames no final do ano passado.

Os resultados, felizmente, não surpreenderam ninguém. Apenas confirmaram o que já se imaginava: tudo absolutamente normal. Sua cunhada, médica, bem resumiu o quadro: "É caso a ser esmiuçado pela comunidade científica internacional”.

Tratava-se de um raro sessentão desinteressante para a indústria farmacêutica. Nada de diabetes ou problemas cardiovasculares e respiratórios. Nem enxaqueca, dores de barriga ou de dente. Tampouco unha encravada. 

Parecia mais um daqueles machos-jurubeba descritos nas crônicas de Xico Sá. Dos que respeitam o valor do dinheiro, mas nunca deu valor para ele. Até pouco tempo usava capanga, pente, espelho, palito e cuspia no chão. Garantia que “paraibano criado em Alagoas, nem vírus e bactérias chegam perto”.

Mesmo assim, andava preocupado com a chegada da pandemia. Por reconhecer que os idosos são mais vulneráveis, adotou o isolamento social, o trabalho em casa, além do uso de máscara nas raras vezes em que saía de casa para ir ao supermercado ou à padaria. Seu temor, na verdade, era mais com a saúde da esposa, portadora de doenças crônicas. 

Sua mulher, depois de breves contatos “mascarados” com uma vizinha, assustou-se ao não sentir o perfume usado após o banho, ainda que não apresentasse febre, cansaço ou tosse seca, indícios clássicos do mal do século 21.
– Meu Deus, eu não tô sentindo cheiro de nada...
– Calma, minha filha! 
– Acho que o miserável me pegou. Nem chegue perto de mim!
– Como?! Vou pra onde?!
Casados há mais de 40 anos – filhos distantes, cuidando de suas respectivas vidas –, o espanto era compreensível. 

Para completar o drama, minutos depois apareceu no quintal um escorpião, e o macho-jurubeba da casa partiu com tudo para pisotear o bicho, como já fizera noutras oportunidades. Mas a sandália derrapou e veio a picada no dedão do pé.

Era o tal do Tityus serrulatus, conhecido como escorpião-amarelo, espécie que causa acidentes graves na região, responsável por amplo registro de óbitos, principalmente em crianças. 

A primeira providência seria procurar socorro para neutralizar o veneno, mas não se sabia o que era pior: o risco dos efeitos da peçonha ou de contrair (ou transmitir) o novo coronavírus na emergência hospitalar. 

Por teleconsulta, um médico decidiu acompanhar à distância a evolução do caso, prescrevendo analgésicos para diminuir o tormento do acidentado. Em 24 horas, desapareceram a vermelhidão e as dores da picada, sem intercorrências.

Nessa altura, a esposa acabou testando positivo para covid-19 e teria que iniciar imediatamente o tratamento. Optou-se então por tratar também o marido, preventivamente, mesmo sem sintomas.

Sete dias depois, ao fazer o teste para saber se de fato o casal teve a infecção (no caso dele, assintomático) e se já estava imunizado com a presença dos chamados anticorpos IgG, deu o que já era esperado: o mutante estava livre da peste invisível que continua a atormentar a maioria dos mortais. A mulher dele, coitada, ainda não. Só mais adiante viria a boa notícia para ela.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) listou recentemente 23 vacinas que estão sendo avaliadas em ensaios clínicos com seres humanos. Um terço desses testes está sendo realizado na China. O país – onde surgiram os primeiros casos da doença –  quer ser o primeiro a oferecer uma vacina e não hesita em ampliar suas pesquisas. 

Não tenho dúvidas de que daqui a pouco uma delegação chinesa chegará a Maceió para contratar a peso de ouro o mutante do meu irmão –  que já voltou a beber sua cervejinha no terraço de casa, ao som de Alcione e Emílio Santiago – para acelerar os trabalhos. Certamente – nunca se sabe! – levarão também alguns escorpiões-amarelos.
  

Difícil será convencer essa mutação da espécie humana de que os tempos mudaram e de que terá que suportar mais de 20 horas dentro de um avião, a caminho da Ásia, sem a “inalação reflexiva” de um maço de cigarros.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Pecados veniais


Já pesquei, mas hoje não pesco mais e tenho meus motivos. Coisa de criança que, aos 10 anos de idade, do nada começou a ter pena dos carás, dos jundiás (bagres) e das piabas (lambaris, manjubas ou piaus) que fisgava no rio Mundaú, na Zona da Mata alagoana, porque em minutos morriam asfixiados com as guelras secas.

Não vi mais graça alguma em acordar bem cedinho para procurar minhocas no jardim e juntá-las numa lata vazia de leite em pó, armar-se de caniço, linha, chumbada e anzol, seguir com os colegas da rua para beira do rio e disputar com eles quem faria a maior fieira de peixes. 

Também nunca fui de caçar, apesar da origem cabocla. Quando menino, até me orgulhava da pontaria com uma peteca (chamada assim somente em Alagoas; noutros lugares, é estilingue, atiradeira, balinheira, baladeira, badoque ou bodoque), a acertar calangos e lagartixas que tentavam fugir do predador nos monturos do Beco do Coité, em União dos Palmares. 

Desisti depois que matei por matar, numa poça d’água  no Beco do Coité, uma lavandeira (ou lavadeira-mascarada, noivinha), espécie de pássaro dócil que vive junto a rios e lagoas e vem com inocente frequência ao chão em busca de comida. 

Testemunha da crueldade, Pitôta, empregada doméstica lá em casa, foi juíza e educadora ao mesmo tempo. Quase me sufoca de remorso ao dizer que “a bichinha lavava a roupa de Nosso Senhor”. Chorei feito gente grande. No mesmo dia, joguei fora duas gaiolas e o alçapão com que pegava canário, galo-de-campina e papa-capim nos sítios que haviam no caminho da Ilhota e da Terra Cavada.

Pecados veniais. Menino tem o coração do tamanho do mundo, mas às vezes é bicho desalmado, “nação do desassossego”, como diz o poeta Jessier Quirino.

Talvez por saber que passei boa parte de minha vida morando próximo a rio e mar, semana passada meu amigo Blóton me questionou por nunca escrever sobre pescarias, paixão de outros amigos meus como Eilton, Ligabue, Rorato e Zé Ângelo. 

Página virada em minha vida, devo reconhecer que pescar até voltaria a fazer sentido para mim depois que li “O velho e o mar”, de Ernest Hemingway (1899 – 1961). 

O livro conta a história de um velho pescador com quase três meses sem fisgar nenhum peixe que resolve provar aos amigos que ainda é bom no ofício. Então se lança ao mar com pouca água para beber, quase nada para comer, aguenta firme o sol implacável, o vento noturno e a solidão dos desacreditados.

Conhecer de marés, mudanças climáticas, localização dos cardumes e do comportamento dos peixes dera a ele um passado de vitórias. No entanto, não lhe impediu de sofrer privações de toda ordem, a ponto de morar num casebre e dormir sobre uma cama de jornais velhos. 

Quando já perdia a esperança, o velho pescador consegue capturar o maior peixe que já havia visto na vida, com cerca de cinco metros de comprimento. Mas todo pescador sabe que fisgar é uma coisa, embarcar o animal é outra.

Foram dias e noites de luta, tentando vencer a força bruta e a resistência do peixe. Quase fica cego por conta da luz solar e sem o movimento de uma das mãos, cortada por conta do esforço feito para segurar o bicho pela linha. 

Depois de amarrá-lo ao barco, o velho é perseguido por tubarões até próximo da praia. Livra-se deles como pode, mesmo a todo instante correndo o risco de ser engolido vivo junto com a carcaça do peixão que havia capturado.

Chega em terra firme só o bagaço, esgotado, com fome, sede e sono. Ainda assim, aguarda medirem o que resta do esqueleto do peixe e então volta a ser admirado no meio dos pescadores. Mais do que a peleja no mar, vencera, no outono da vida, uma grande luta consigo mesmo. 

Eu até voltaria a pescar se fosse sempre desse jeito. Não é. Livros, assim como filmes, costumam mexer com quem já está sossegado, só apreciando a correnteza, à beira do rio que passou em sua vida e seu coração se deixou levar.  

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Era o amor, Margot!

Juro pelo cachimbo da velha parteira que cortou o meu umbigo que este caso é real. Pode ter uma coisinha a mais aqui, outra ali, mas Salomão, meu vizinho à época, me contou em detalhes o que lhe aconteceu quando morou na Quadra 114 Sul, em Brasília, na virada do milênio.

Margot, síndica do prédio, quase o levou à loucura. Criava confusão com os moradores por qualquer bobagem e fazia da vida de todos eles um inferno, inclusive dos prestadores de serviços, a reclamar do desodorante vencido de um, do cheiro de cigarro de outro e até do flerte inocente de uma babá com o porteiro da noite. 

A síndica era de morte! Um dia, mesmo percebendo pelo retrovisor que Salomão descia a rampa da garagem logo atrás do carro que ela guiava, fez-se de distraída e acionou o controle remoto para fechar o portão, espatifando o para-brisa do coitado. Irritado, ele quis dizer o que qualquer um diria, mas respirou fundo, contou até nove e percebeu a tempo a intenção dela: tornar-se vítima.

Certamente Margot diria que apenas cumpriu o regulamento da convenção de condomínio, que responsabilizava os moradores pelo fechamento do portão nas entradas e saídas da garagem. Salomão então teve que catar cacos de vidro espalhados do painel frontal até o porta-malas do carro durante horas, além de aturar a demora da oficina para repor a peça danificada e arcar com o custo da franquia do seguro. 

Ela tinha seus motivos
 para se sentir infeliz. Havia sido rejeitada pelo ex-marido, não conseguiu ser mãe nem contava com um cobertor de orelhas e braços para aquecê-la nas noites frias e secas do Planalto Central. Servidora pública, aposentou-se sem nada digno de orgulho em termos profissionais. Nem festinha de despedida fez por merecer de seus colegas de trabalho.

Caneta e prancheta nas mãos o dia todo, ela se portava como alguém acima do bem e do mal, a distribuir ordens e fazer ameaças até a Zezé, um caboclo magricela nascido na goiana Pirenópolis que vendia “frutos” do Cerrado  queijos, ovos, mel, linguiças, doces, broas e sequilhos — numa kombi enferrujada, de pneus arriados, havia anos parada no estacionamento público.

Ilustração: UMOR
Brasília continuava a mesma: quanto maior o poder, maior o abuso de autoridade. Quando tomava conhecimento dos chiliques de Margot, Salomão balançava a cabeça. Não entendia o porquê de tanta empáfia e rispidez no trato com as pessoas, principalmente as mais humildes. Apesar disso, não se encorajava a discutir o assunto nas reuniões de condomínio e tocava sua vida a fazer de conta que a síndica não existia, até que a danada pisou de novo no seu calo. 

Certa manhã, a filha de Salomão deixou o carro por alguns minutos próximo à guarita da portaria
 — na falta de vagas em frente ao prédio e sem tempo para descer à garagem no subsolo , enquanto pegava algo na geladeira para atenuar a fome. Foi o bastante para Margot acionar a fiscalização de trânsito, denunciar a infração e exigir que o agente público cumprisse o seu papel: aplicar a multa.

Salomão não se conformava. Naquele dia, abriu a caixa de ferramentas, soltou o verbo e falou alto para quem quisesse ouvir: “Por que comigo, minha Nossa Senhora Aparecida, que todo sábado vou à missa? Quanto mais rezo, mais assombrações me aparecem!" 

Talvez Margot ainda estivesse cabreira por ele tê-la flagrado no elevador, às três da madrugada de uma sexta-feira, bocejando com os dentes arroxeados pelo excesso de vinho, a carregar uma sacola que se rasgou, derrubando alguns apetrechos íntimos. Muito íntimos, diga-se de passagem. Tanto que Salomão esquivou-se de ajudá-la para evitar maior constrangimento. 

Mas agora ela passara dos limites. Como diria tempos depois um certo deputado federal a outro parlamentar, ao vê-la mais uma vez criticando de modo grosseiro o trabalho das faxineiras, Salomão comentou com o porteiro: “Esta senhora desperta em mim os instintos mais primitivos!"
 

Foi quando ele decidiu colocar em ação um plano que já vinha arquitetando em suas noites insones: publicar um anúncio no Correio Braziliense mais ou menos assim: “Mulher madura, enxuta, bem de vida, procura alguém para relacionamento sem compromisso, solteiro ou casado. Guarda-se sigilo. Ligar para...”  

Claro que Margot iria cuspir escorpiões e desconfiaria de que a molecagem partira de Salomão, mas dificilmente conseguiria provar. Ele, ao planejar a ação em seus sórdidos detalhes, terceirizaria o anúncio no jornal através de uma amiga mineira de passagem por Brasília. E saberia ser cínico o bastante 
— em público, claro , para lamentar o ocorrido, inclusive colocando-se à disposição dela para auxiliar na identificação da origem daquela crueldade inaceitável, sem precedentes na história do prédio. 

Mas Salomão — como o personagem bíblico filho de Davi, fiel à origem de seu nome na palavra hebraica Shelomon, de Shalom, que significa paz — era homem de índole pacífica, ainda que à base de ansiolíticos, custou a pegar no sono naquela noite, a ruminar sobre os possíveis desdobramentos de seu audacioso plano. 

Pensava: e se Margot, carente como andava, caísse na conversa mole de um serial killer? E se mais adiante, no curso das investigações policiais, encontrassem a responsável pela publicação do anúncio a partir das imagens das câmeras de segurança do jornal? 

Na manhã seguinte, seu mundo mudara completamente. Salomão recebeu a notícia de que a nora estava grávida, o que fez seu coração pulsar noutra cadência, levando-o a abortar o plano e a desistir da vingança. Não pegaria bem para um avô de primeira investidura conhecer o neto apenas depois de uma temporada na Papuda, cumprindo sentença condenatória como mentor intelectual, por exemplo, de estrangulamento ou coisa parecida. 

Ocorreu que meia hora depois lá estava ele de novo pensativo, oscilante, insatisfeito com a possibilidade de ter que desistir do plano meticulosamente arquitetado como se nada lhe tivesse acontecido.
 “Ninguém sabe do que aquela mulher é capaz! Eu estou prestando atenção há muito tempo...”  comentou comigo.  

Se temia o que pudesse acontecer com Margot, por outro lado imaginava: a danada é tão ardilosa que será capaz de se deixar seduzir inicialmente para no primeiro vacilo do serial killer morder o seu pescoço, sugar o sangue, esquartejá-lo e embalar os pedaços em maletas. E na calada da noite, jogar tudo no Lixão da Estrutural ou no fundo do Lago Paranoá. 

Porém Salomão, definitivamente, não era de guardar raiva por mais de três dias. Acabou mais uma vez perdoando a infeliz.  Optou por mudar dali e, em duas semanas, foi morar no final da Asa Norte, próximo do filho e da nora que lhe dariam o primeiro netinho.

Só voltava à antiga morada para apanhar a correspondência na portaria e bater papo comigo. Foi o porteiro, inclusive, quem lhe contou que a síndica, dois meses após a saída dele, também foi embora sem deixar nem uma nota de duas linhas no quadro de avisos. Disse que iria visitar um tio adoentado no interior goiano, que fechara as contas do condomínio com o subsíndico na noite anterior e partiu com destino ignorado. 

Veio à tona então o que já se desconfiava da garagem à cobertura do bloco: Margot, no calorão da menopausa, resistiu o quanto pôde, mas acabou juntando as escovas de dentes e os trapos encardidos com o menino Zezé, que deixou de vender “frutos” do Cerrado para se dedicar de corpo e alma ao consumo do estoque de afetos represados da criatura.

O casal foi visto pela última vez na boca da noite de uma quinta-feira qualquer, no parque Dona Sarah Kubitschek, ela com os olhos fechados a alisar a barba rala de Zezé, que guiava um Chevette SL seminovo com o toca fitas a reproduzir É o amor,  canção de um xará e conterrâneo:

“(...) Eu não vou negar 
Você é meu doce mel
Meu pedacinho de céu
Eu não vou negar (...)”

Pois bem! Só agora, depois que resolvi contar essa história, minha mãe vem me dizer que a velha parteira que cortou o meu umbigo nunca fumou. Mas isso é o de menos nesse caso.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Coração de criança

Era filho de um fisioterapeuta da Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR), no Rio de Janeiro, instituição que cuida de pacientes neurológicos. Nos anos 70, entre sete e oito anos de idade, várias vezes o menino acompanhou o pai no trabalho e vibrava muito a cada recuperação, convencido de que aquilo também era obra de seu pensamento positivo. Nasceu para ser médico, diziam. 

Houve uma festa junina na ABBR e seu pai o levou de novo. Lá encontrou o famoso jogador de futebol Francisco das Chagas Marinho, ou simplesmente Marinho, o lateral-esquerdo da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1974, na Alemanha, a distribuir abraços e sorrisos, vestindo a camisa de seu clube, o Botafogo.


Depois de conseguir o autógrafo do jogador, a criança deixou de lado a timidez, puxou-o pelo braço e cochichou:
– Por que você não vai jogar no Fluzão?
  Vamos ver... 
– Jura?
– Vou pensar.
– Vai mesmo?
– Prometo. Me dê um abraço...

O menino sonhava ver o craque no clube de coração de seu pai. Dele também, claro, ambos obcecados pelo Fluminense, que já contava com um dos melhores elencos do futebol brasileiro, com astros da grandeza de Rivellino, Paulo César Caju, Carlos Alberto Torres, Doval e Dirceu.

A paixão pelo tricolor do bairro de Laranjeiras vinha de longe. Enganchado nas costas do pai, o filho subiu e desceu muitas vezes a rampa de acesso às arquibancadas do Maracanã no mormaço das tardes de domingo, vestido a caráter: boné, camiseta, calção, meiões e chuteiras. 

Era como se em nome do pai, do filho e do espírito nada santo de Nélson Rodrigues, os deuses do futebol atestassem de papel passado, com firma reconhecida, que “ser tricolor não é uma questão de gosto ou opção, mas um acontecimento de fundo metafísico, um arranjo cósmico do qual não se pode – e nem se deseja – fugir". 

Na época, Marinho também não passava de um  meninão. Certo dia, ao encontrar num boteco em Copacabana, por acaso, um conhecido tricolor, ingenuamente achou de pedir ao cantor e compositor para tocar alguma coisa. Chico Buarque, gozador, mexeu com a fera: "só toco se você fizer 200 embaixadinhas". Com uma laranja nos pés, o craque botafoguense fez bem mais e, ressentido com a troça do poeta, fez biquinho: "precisa cantar mais não. Você canta mal pra...”. 

No auge da carreira, Marinho, com seus petardos de fora da área, fazia por merecer a cintilante metáfora do lendário locutor de rádio Waldir Amaral ao narrar gols do alvinegro: “...brilha no céu da Guanabara a estrela solitária do Botafogo!”. 

Virou pop star. Chegou a gravar um clip para o Fantástico, da TV Globo, cantando Eu sou assim. Também participou de O Homem de Seis Milhões de Cruzeiros Contra as Panteras, filme cujo enredo era o seu sequestro às vésperas de uma partida de futebol. Libertado, o herói chegaria ao Maracanã a tempo de jogar a segunda etapa e marcar o gol da vitória.

No final de 1976, Francisco Horta, o então presidente do Fluminense, que também queria a todo custo vê-lo atuando com a camisa tricolor, pagou caro mas conseguiu. Entretanto, para ceder sua estrela, o Botafogo exigiu em troca (e obteve) nada menos que Paulo César Caju, Gil e Rodrigues Neto, três jogadores com passagem pela Seleção Brasileira.

Sem parceiros à altura em seu novo time, Marinho não rendeu o que dele se esperava. Acabou migrando no ano seguinte para o futebol norte-americano. Peregrinou ainda por vários clubes até encerrar a carreira de forma melancólica num modesto clube alemão, aos 35 anos, quando já enfrentava problemas sérios com álcool e drogas.

Quase três décadas depois, o ex-atleta sentiu-se mal enquanto trocava figurinhas na banca de revistas de um shopping center, poucos dias antes da Copa do Mundo 2014, no Brasil. Naquela noite, brilharia no céu potiguar da praia de Ponta Negra mais uma estrela, não mais solitária como cintilava na baía de Guanabara dos anos 70.  

No dia seguinte, no Rio, um meninão grisalho lamentou, junto ao velho pai, não estar por perto para tentar adiar o último tombo do herói e lhe permitir mais alguns lances na segunda etapa do jogo da vida. 

Seu coração insistia em lhe dizer que Marinho só trocou o Botafogo pelo Fluminense por conta daquele pedido no São João de 1976.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Bala de prata

Mal aprendem a falar, as crianças de hoje já sabem o que é Aedes aegypti, o mosquito responsável pela transmissão de dengue, zika e chikungunya, muito parecido com a velha muriçoca (pernilongo), mas com algumas características que ajudam a ser diferenciado dos outros.

A muriçoca de ontem era bem menos traiçoeira do que o Aedes aegypti. Infernizava do mesmo jeito com picaduras e zumbidos, mas nada que mosquiteiro sem grandes rasgos, espiral verde Sentinela ou borrifadas de Detefon não resolvesse o problema. 

Aliás, criado para dizimar os mosquitos da face da Terra, o spray daquele inseticida clássico combatia até “a malária, a febre amarela e o tifo”, segundo uma campanha publicitária veiculada em 1953, em O Cruzeiro, revista semanal que circulou por aqui durante anos. 

Com slogans como “terrível contra os insetos”, “defenda sua casa” e promessas de “proteção prolongada”, exterminava ratos, baratas, moscas, mosquitos e formigas. O duro é que uma certa substância integrante de sua fórmula foi banida em vários países nos anos 70 por contaminar alimentos e intoxicar seres humanos. 

Tio Enoch, a quem visitava no final dos anos 90, no Maranhão, um dia me flagrou na sala a bater palmas acima da cabeça, tentando esmagar os primeiros e sedentos pernilongos no fim da tarde:
– Não conte para ninguém o que vou lhe dizer... – disse ele, olhando para os lados – Eu descobri um método natural para acabar com muriçocas.
– É mesmo, tio? Como é que faz? 
– Você sabe o que é tabaco?
– Será que é o que tô pensando?
– Bom, seu saliente, não sei o que você tá pensando, mas tô me referindo ao pó-de-rapé.
– Claro, tio, foi nele mesmo que pensei. Não é aquele pozinho cheiroso que os velhos tomam uns porres para espirrar? Dizem que é bom para enxaqueca, sinusite...
– Isso! 

Comentei, então, haver lido sobre receitas amazônicas para o tabaco que apresentavam em seu composto, além de fumo, ervas como casca da copaíba, cumaru-de-cheiro (casca da cerejeira), canela-de-velho, pau-pereira, entre outras cinzas de cascas de árvores também medicinais. Alguns índios até hoje acreditam que aspirando o pó absorvem a energia dos espíritos que acompanham o pajé de sua tribo e os espíritos que habitam a floresta. 

Ele me ouviu com o semblante sério, dando a entender que tinha pleno conhecimento de tudo: 
– Vai precisar de alguns seixos, aqueles pedregulhos arredondados de beira de rio.
– Só serve se forem eles?
– Não. Se não conseguir, não tem problema. Pega um martelo e quebra um bloco daqueles de calçamento de rua.

A curiosidade era tanta que corri atrás dos ingredientes da receita e em menos de meia hora, antes de escurecer, estava de volta. Meu tio então me explicou, de forma bastante didática, que deveria espalhar as pedras pelos cômodos da casa e colocar uma pitada de pó sobre cada uma delas. 
Mais tarde, segundo ele, quando vissem a novidade no ambiente, as muriçocas não resistiriam à tentação e dariam boas cafungadas, o que provocaria êxtase e espirros catárticos. Com isso, bateriam a cabeça nos seixos e cairiam duras, mortas por traumatismo craniano ou concussão cerebral.

Olhei para ele e quis fazer aquilo que você faria comigo se eu estivesse agora a seu lado, mas não tive coragem. Havia muito carinho e respeito entre nós. Optei então por disseminar a receita entre amigos e amigas e até hoje ainda encontro quem perca alguns minutos prestando atenção no que digo. 

Meu receio é alguém espalhar essa receita nas redes sociais como a panaceia para neutralizar o surto do novo coronavírus. Vai que o síndico do edifício Terra Brasilis acredita e resolve convencer parte dos moradores da eficácia do método, mesmo sem qualquer validação científica. 

Nunca se sabe de onde virá a próxima bala de prata da indústria farmacêutica nesse tiroteio de soluções para a pandemia que mudou a vida das pessoas de Wuhan, na China, a Inhapi, em Alagoas.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Sonho e ousadia

O menino passava horas observando a sombra de uma varinha enfiada no chão do quintal, a mudar de posição a cada instante, até o pôr-do-sol: 
— O que cê faz aí, hein? 
— Tô vendo o tempo passar, mãe...
No terreiro, além da cerca de avelós, do pé-de-manga e do galinheiro, havia o areal onde ele brincava com a irmã, inclusive nas noites de lua cheia, até ouvirem o chamado da mãe:
— Tá na hora de lavar os pés e beber água pra dormir! 

Chico e Gracita, 7 e 8 anos, últimos dos sete filhos de Januário e Mariquinha, nasceram no sítio Muriqui, à margem do riacho Jundiá, distante seis léguas da cidade de Pedregulho. O sustento da família vinha da pesca, da criação de umas poucas cabeças de gado e do plantio de mandioca, milho e feijão.

Pais e filhos nunca haviam pisado numa escola. Nem desconfiavam de que nossos antepassados já conheciam as horas do dia muito antes de o relógio ser inventado no século 14. 

Sim, por volta de 5.000 a.C., os babilônios descobriram que em certo momento do dia não havia sombra no chão, o que chamaram de meio-dia. Daí dividiram a trajetória da sombra em 12 partes: seis antes do meio-dia (manhã) e seis, depois (tarde). Inventaram o relógio de sol que Chico recriaria no quintal de casa.

Um impulso misterioso leva algumas mães que vivem na zona rural a, de uma hora para outra, querer mudar para cidades maiores, na esperança de que os filhos descubram o mundo, aprendam a ler, a fazer contas, a se libertar da escuridão e experimentar sensações diferentes.

Foi assim que Mariquinha, no final dos anos 50, surpreendeu o marido com uma decisão de bate-pronto, inesperada: 
— Januário, nem pense que vou deixar esse menino ser criado aqui como Deus criou batatas, feito os mais velhos. Nem ele nem a irmã dele.
— Oxente, cê tá ficando doida, é? O que é isso?
— Se quiser ficar, fique, mas vou levar os dois pra estudar em Pedregulho.
— E vão viver de quê?
— Não sei... A gente dá um jeito.

A contragosto do marido, que permaneceu no Muriqui na companhia do primogênito, Mariquinha partiu no fim do mês carregando consigo, além dos filhos mais novos, sonho e ousadia. 

Ao chegar em Pedregulho, cuidou de alugar uma pequena casa na periferia e de arranjar emprego para os três filhos mais velhos, agora os principais responsáveis pelo sustento da família. Resolveu também que Chico e Gracita seriam alfabetizados a partir do começo do ano letivo.

As crianças teriam aulas o dia todo na escola profissionalizante Lar de São Judas Tadeu, sendo a tarde reservada para o aprendizado de um ofício: alfaiataria, bordado, carpintaria, costura, serralharia. Gracita não se animou muito, mas Chico ainda pensou em se tornar alfaiate para cortar aquelas roupas alinhadas que os mais abastados ostentavam na igreja.

Determinados a retribuir o esforço feito pela mãe e pelos irmãos mais velhos, durante todo o ano letivo os dois irmãos alcançaram os primeiros lugares nas avaliações  mensais. Por isso, Chico foi escolhido orador da turma para a festa de formatura. Gracita, integrante do coral que se apresentaria na cerimônia, de última hora foi substituída pela filha de um político local sem que a professora lhe desse uma explicação razoável para o fato.

Ela chorou dois dias e duas noites em seu quarto, escondida da mãe. A professora buscou contornar dizendo que lhe faria “declamadora” porque falava alto. E lhe ensinaria um poema, a ser recitado no palco.

Gracita engoliu sem mastigar a frustração mas decorou o texto, versando sobre as dificuldades de uma órfã num mundo hostil do pós-guerra. No dia do evento, com a mãe toda orgulhosa e perfumada na primeira fila da plateia, a filha declamou de forma tão intensa que comoveu a todos. Talvez ainda amargasse o travo na garganta por não ter sido possível realizar o sonho, acalentado durante meses, de cantar no coral. 

No auditório, inquieta sem saber o que ocorria com a filha, que continuava a declamar cada verso de forma enfática, com olhos úmidos e punhos cerrados, Mariquinha levantou-se e gritou: 
— Chore não, minha filha, cê tem mãe viva. Chegue pra cá... Óia eu aqui, bem na sua frente!

Padre Ariano, diretor da escola, quase caiu da cadeira, mas logo prestou os esclarecimentos à mãe aflita. Padre, aliás, que tinha um carinho todo especial por Chico, o orador que agora subia ao palco para proferir seu discurso e para quem o diretor, com suas mãos brancas, enormes e peludas, preparara um texto que começava assim: “O tempo pode ser medido pelas batidas de um relógio ou pode ser medido pelas batidas do coração...” E fechava inspirado no poema “O trabalho”, de Bilac: 
“(...) É preciso trabalhar.
Não nasce a planta perfeita
E nem nasce o fruto maduro
Para se ter a colheita
É preciso semear (...)”

Para quem assistiu à cerimônia, estava nascendo em Pedregulho uma grande atriz, como Bibi Ferreira e Fernanda Montenegro, capaz de, mais adiante, ganhar o Oscar, da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos. 

Nascia também, no espírito investigativo e obstinado de Chico, quem sabe um futuro cientista ou escritor de renome na vanguarda intelectual do País. Mal aprendera a ler e já devorava os livros de Monteiro Lobato, fascinado com as artes de Emília, uma boneca de pano com sentimentos e ideias libertárias, e do Visconde de Sabugosa, um sábio sabugo de milho com atitudes e manias de gente grande.

Mariquinha levitava àquela altura. Tanto mais porque seu velho Januário, morto de saudade, já se desfazia do pequeno patrimônio rural e voltaria a juntar a família no Ano Novo. Justamente quando da transição do Brasil antigo para o Brasil moderno, de acordo com Joaquim Ferreira dos Santos, no livro Feliz 1958 - o ano que não devia terminar.

O relógio do tempo foi ligeiro. Chico e Gracita, hoje aposentados e vizinhos de porta na Capital — reclusos, à espera da vacina para o mal que travou o mundo que ora se reseta —, até conseguiram chegar à universidade, mas não seguiram em frente. 

Gracita casou com um comerciante, virou dona-de-casa e tem três filhos, que lhe deram seis netos. Chico também casou, tem dois filhos e quatro netos, mas foi além e "pulou a cerca": manteve uma relação por mais de 30 anos com uma instituição pública — às vezes, jazigo de sonhos — que lhe remunerava bem e em dia, garantindo-lhe uma vida sem sustos.

Passarinho em gaiola limpa pode ter alpiste, painço, água e passador, até cantar bonito, mas não aprende a voar. 

O menino agora passa horas contando as batidas de um antigo relógio alemão Schwarzwald na parede da sala de casa, ao lado de uma gravura em bico-de-pena de Clarice Lispector onde se lê no rodapé: "O que nos impede na maioria das vezes de ter o que queremos, de ser o que sonhamos, de fazer o que pensamos e aceitar com o coração é a ousadia que não cultivamos".

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Sim, hoje é sábado

Sim, hoje é sábado. Só por isso ainda sinto o cheiro de cera do chão das casas em que morei quando menino, a ver meu pai circulando entre salas e quartos, fazendo brilhar o cimento queimado e os mosaicos, a ouvir boleros do Trio Irakitan.

Vem à cabeça também o “gol da lua” nos campos enlameados de minha meninice. Na boca da noite, racha no zero-a-zero ou com vitória parcial por apenas um gol de diferença, alguém gritava: “quem fizer primeiro, ganha!”. Era um salve-se quem puder, um deus-nos-acuda sem sentido.

Lembro do trajeto de casa até o altar da capela do Convento Bom Pastor, no último sábado de 1976, ponto de partida de uma viagem sem volta nem fita de chegada rumo à Terra Prometida. Éramos dois sem parentes importantes nem dinheiro no banco, mas estava escrito nas estrelas que teríamos um só coração, bem repartido entre a esperança e a razão.

Ouço como se fosse agora mesmo o grito familiar a convocar à mesa da cozinha caras e bocas espalhadas pelos quatro cantos da velha casa. Filhos, noras, genros e netos davam conta em minutos do panelão de galinha guisada com purê de batatas (suando manteiga!), arroz, feijão verde e farofa. Nem lavavam as mãos, imagino.

Sim, hoje é sábado. Só por isso me transporto à Bahia de todos os cantos do começo dos anos 90, quando acordava cedo aos sábados pelo simples prazer de flanar entre os quiosques do mercado do Rio Vermelho, apalpando frutas, legumes e verduras. Voltava para casa ouvindo no toca-fitas mais um canto que surgia na cidade: 

“(...) A cor dessa cidade sou eu 
O canto dessa cidade é meu (...)”

Vem à cabeça também o retorno para Alagoas pouco tempo depois. Irmãos feito galos de briga na rinha de vôlei do quintal de Zé e Zu, na praia de Ipioca. Revejo todos eles na mesa de baralho, noite adentro, entre tragos e goles, a ouvir Nat King Cole amaciando a madrugada:
“(...) Cachito, cachito, cachito mio
Pedazo de cielo que Dios me dio (...)”

E como esquecer dos sábados na praia de Enseada de Corais (apesar dos ouriços-do-mar!), no Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco? Ou do jorro da bica de Sete Casuarinas, no que resta de Mata Atlântica na Estrada de Aldeia, onde as árvores dançam e cochicham entre si ao entardecer? 

Ouço ainda como se fosse agorinha, apesar de avesso à mistura insalubre de barulho, calor e multidão, a apaixonada confissão do menestrel de São Bento do Una, Alceu Valença, nos sábados em que o Galo da Madrugada acordava a cidade:
“(...) Voltei, Recife!
Foi a saudade que me trouxe pelo braço (...)” 

E como recordo do primeiro sábado, no Planalto Central, em que já não mais teria que retornar ao trabalho na semana seguinte. Devagarinho, ficaria nítido para mim que existem duas fases na vida, infância e aposentadoria, em que a felicidade pode estar na tela de um tablet (ou na ponta de um lápis sobre uma folha de papel em branco) onde quase tudo é possível.  

Claro, bem mais recente, lembro também dos sábados no “Quintas do Sol" ou “Porto Gurguéia”, nos arredores de Brasília, onde podia sentar com amigos e costurar retalhos do tecido de nossas vidas. O ensopado de carneiro ou o bacalhau ditava o tempero da prosa e o balanço da rede na varanda nos embalava de graça até o pôr-do-sol.

Sim, hoje é sábado. Só que chove lá fora, o dia está escuro, cheio de mistérios. E não tem graça alguma saber que na esquina um inimigo traiçoeiro ainda me obriga a ficar em casa. Nem vale a pena me fazer de valente, tentar encará-lo e a festa acabar antes da hora, sem direito nem mesmo à decência de um adeus.
   
Deve ser por isso que acordei mal-humorado e me pego aqui a puxar pela memória pedaços de sábados que ainda mexem dentro de mim, numa esperança doida de que essa chuva passe logo e o sol reapareça com toda a força, antes que eu me esqueça de tudo.

Não, o sábado não é uma ilusão, como disse Nélson Rodrigues um dia.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Que safadeza é essa?!

Em tempos de reuniões ministeriais cujo palavreado deixaria constrangida a inesquecível atriz Dercy Gonçalves (1907 — 2008), lembrei-me de duas repreensões que recebi por usar termos inaceitáveis para meu pai: sacanagem e merda, vejam só!

Um dia, chateado com um de meus irmãos por conta de uma bobagem qualquer, reclamei: “isso é sacanagem sua!” Meu pai ouviu, me olhou firme e foi direto ao ponto: “nunca mais diga isso, entendeu?” Noutra, apenas repeti o que já ouvira na rua ao criticar um vizinho: “olhe a merda que você fez!” De novo, ele chegou junto e decretou: “se falar isso outra vez, vai apanhar!”.

Lá em casa, sob pena de puxão de orelhas ou croque no cocuruto, o máximo admissível em termos correlatos a palavrões (ou “nomes feios”, no dizer dele) eram: cocô, bunda, pinta, pássaro, “piupiu” ou, no limite, safadeza. E não é bom nem pensar no que aconteceria se um dos filhos de Seu Agostinho pronunciasse um um robusto “taquiupariu!”

Talvez por isso nunca aceitei ser classificado por alguém pelo ultrajante “você é um merda!”. E até hoje não sei o que uma pessoa que achincalha outra dessa forma tem fora da cabeça, porque dentro, eu sei. E não cheira nada bem.

Quando cresci, claro, o repertório de vocábulos impróprios engrossou o caldo, mas só afloravam em situações especiais e em doses terapêuticas, quando era vítima de insulto, ofensa, pisão, queda ou topada. E quando meu time sofria um gol ou perdia um daqueles imperdoáveis. Apenas compreensivas interjeições, diriam meus colegas de verbos e verbas Marcelo Torres e Silas Braga Jr.

Fiz o que pude para não usar palavras peludas de grosso calibre no trabalho e ferir o decoro do ambiente profissional, mas confesso que não foi nada fácil. Evoluí ao conviver com pessoas sensatas que nunca recorriam a termos chulos para se expressarem e minhas recaídas andam cada vez mais raras depois que me aposentei. 

Semana passada, ao assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, o seu titular disse algumas palavras que me lembraram meu pai: “...A falta de educação produz vidas menos iluminadas, trabalhadores menos produtivos e um número limitado de pessoas capazes de pensar criativamente um país melhor e maior... A educação, mais que tudo, não pode ser capturada pela mediocridade, pela grosseria e por visões pré-iluministas do mundo”. 

O discurso também me remeteu a um episódio que me contaram há muito tempo. Teria ocorrido nos anos 90, envolvendo um ex-presidente do Banco do Brasil. Ao noticiar a nomeação de um diretor, o chefão lhe rasgava elogios numa reunião quando um dos presentes, em tom de pilhéria, comentou baixinho: "dá a ele..." 

Boca-suja incorrigível, o ex-dirigente ouviu e retrucou em cima do laço: "eu como você e ele, seu filho da...". A gargalhada de alguns pode ter desanuviado o ambiente, mas não escondeu o fato de que o estofo da cadeira presidencial era bem maior do que a bunda do ocupante de plantão. 


O mundo corporativo anda repleto de exemplos dessa natureza. É a partir da vulgaridade das relações internas entre seus líderes que grandes empresas perdem o respeito da sociedade. Mais que isso, quando esses líderes, fora das quatro paredes, se acovardam diante de ofensas à instituição que deveriam defender, ela vira manteigueira de pensão de beira de estrada, onde todos metem as mãos e se lambuzam à vontade.

Voltando à reunião ministerial que deve ter enrubescido Dercy Gonçalves, um certo participante — ilustre anônimo até pouco tempo e já despontando para o escrete das mediocridades históricas — não foi claro ao explicar seus objetivos. Disse ele: “O BNDES e a Caixa, que são nossos, a gente faz o que quer. Banco do Brasil a gente não consegue. Então, tem que vender essa porra logo!” 

Perdão, meu pai, mas tenho que perguntar a meus leitores: que safadeza (sacanagem ou merda) é essa?! O que ele quis dizer mesmo com “a gente faz o que quer"? A quem interessa concentrar ainda mais o mercado bancário? A que preço cogita vender a “jóia da Coroa” em meio à grave crise sanitária, política e econômica em que chafurda o País?

Certos palavrões são ditos apenas para esconder nas entrelinhas — com o rabo de fora, claro!  coisas bem mais feias que nos deixam de orelhas em pé. 

Foi só começar...

Na semana passada, publiquei neste espaço uma crônica sobre códigos e jargões corporativos que fez alguns leitores voarem de teco-teco pelo ...