Ele mantinha uma conversa esfumaçada consigo mesmo toda sexta-feira à noite na esquina onde fica um boteco próximo de sua casa, na Gruta de Lourdes, em Maceió. Com um cigarro numa mão e um copo de cerveja na outra, tinha virado rotina, de hora em hora, o isolamento voluntário para fazer uma “inalação reflexiva”, como dizia, longe dos demais frequentadores.
Enquanto isso, a mulher, cantora de uma dupla “voz e violão”, em tom resignado soltava o vozeirão na mesma toada de Alcione: “Sabe, meu menino, sem juízo, eu já aprendi a te aceitar assim” .
O boteco, como todos os bares e restaurantes da cidade, baixou as portas há mais de 100 dias.
Aos 61 anos, com 1,69 metro e 68 kg, se alimentava na base do trivial arroz, feijão e bife. Dormia feito criança, de sete a oito horas todo dia. Mas, além de sedentário, fumava e bebia desde os 13 anos.
Tal como seus irmãos, nos anos 60 contraiu e escapou sem sequelas de todas as doenças típicas da criançada: gripe, catapora, tosse comprida, sarampo e papeira.
Quase aposentado – bancário e professor de Finanças –, amigos e familiares viviam a lhe cobrar mais assiduidade de consulta a médicos. O aperto era tanto que, mesmo a contragosto, chegou a fazer uma série de exames no final do ano passado.
Os resultados, felizmente, não surpreenderam ninguém. Apenas confirmaram o que já se imaginava: tudo absolutamente normal. Sua cunhada, médica, bem resumiu o quadro: "É caso a ser esmiuçado pela comunidade científica internacional”.
Os resultados, felizmente, não surpreenderam ninguém. Apenas confirmaram o que já se imaginava: tudo absolutamente normal. Sua cunhada, médica, bem resumiu o quadro: "É caso a ser esmiuçado pela comunidade científica internacional”.
Tratava-se de um raro sessentão desinteressante para a indústria farmacêutica. Nada de diabetes ou problemas cardiovasculares e respiratórios. Nem enxaqueca, dores de barriga ou de dente. Tampouco unha encravada.
Parecia mais um daqueles machos-jurubeba descritos nas crônicas de Xico Sá. Dos que respeitam o valor do dinheiro, mas nunca deu valor para ele. Até pouco tempo usava capanga, pente, espelho, palito e cuspia no chão. Garantia que “paraibano criado em Alagoas, nem vírus e bactérias chegam perto”.
Parecia mais um daqueles machos-jurubeba descritos nas crônicas de Xico Sá. Dos que respeitam o valor do dinheiro, mas nunca deu valor para ele. Até pouco tempo usava capanga, pente, espelho, palito e cuspia no chão. Garantia que “paraibano criado em Alagoas, nem vírus e bactérias chegam perto”.
Mesmo assim, andava preocupado com a chegada da pandemia. Por reconhecer que os idosos são mais vulneráveis, adotou o isolamento social, o trabalho em casa, além do uso de máscara nas raras vezes em que saía de casa para ir ao supermercado ou à padaria. Seu temor, na verdade, era mais com a saúde da esposa, portadora de doenças crônicas.
Sua mulher, depois de breves contatos “mascarados” com uma vizinha, assustou-se ao não sentir o perfume usado após o banho, ainda que não apresentasse febre, cansaço ou tosse seca, indícios clássicos do mal do século 21.
– Meu Deus, eu não tô sentindo cheiro de nada...
– Calma, minha filha!
– Acho que o miserável me pegou. Nem chegue perto de mim!
– Como?! Vou pra onde?!
Casados há mais de 40 anos – filhos distantes, cuidando de suas respectivas vidas –, o espanto era compreensível.
Para completar o drama, minutos depois apareceu no quintal um escorpião, e o macho-jurubeba da casa partiu com tudo para pisotear o bicho, como já fizera noutras oportunidades. Mas a sandália derrapou e veio a picada no dedão do pé.
Era o tal do Tityus serrulatus, conhecido como escorpião-amarelo, espécie que causa acidentes graves na região, responsável por amplo registro de óbitos, principalmente em crianças.
A primeira providência seria procurar socorro para neutralizar o veneno, mas não se sabia o que era pior: o risco dos efeitos da peçonha ou de contrair (ou transmitir) o novo coronavírus na emergência hospitalar.
A primeira providência seria procurar socorro para neutralizar o veneno, mas não se sabia o que era pior: o risco dos efeitos da peçonha ou de contrair (ou transmitir) o novo coronavírus na emergência hospitalar.
Por teleconsulta, um médico decidiu acompanhar à distância a evolução do caso, prescrevendo analgésicos para diminuir o tormento do acidentado. Em 24 horas, desapareceram a vermelhidão e as dores da picada, sem intercorrências.
Nessa altura, a esposa acabou testando positivo para covid-19 e teria que iniciar imediatamente o tratamento. Optou-se então por tratar também o marido, preventivamente, mesmo sem sintomas.
Sete dias depois, ao fazer o teste para saber se de fato o casal teve a infecção (no caso dele, assintomático) e se já estava imunizado com a presença dos chamados anticorpos IgG, deu o que já era esperado: o mutante estava livre da peste invisível que continua a atormentar a maioria dos mortais. A mulher dele, coitada, ainda não. Só mais adiante viria a boa notícia para ela.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) listou recentemente 23 vacinas que estão sendo avaliadas em ensaios clínicos com seres humanos. Um terço desses testes está sendo realizado na China. O país – onde surgiram os primeiros casos da doença – quer ser o primeiro a oferecer uma vacina e não hesita em ampliar suas pesquisas.
Não tenho dúvidas de que daqui a pouco uma delegação chinesa chegará a Maceió para contratar a peso de ouro o mutante do meu irmão – que já voltou a beber sua cervejinha no terraço de casa, ao som de Alcione e Emílio Santiago – para acelerar os trabalhos. Certamente – nunca se sabe! – levarão também alguns escorpiões-amarelos.
Difícil será convencer essa mutação da espécie humana de que os tempos mudaram e de que terá que suportar mais de 20 horas dentro de um avião, a caminho da Ásia, sem a “inalação reflexiva” de um maço de cigarros.