quarta-feira, 6 de maio de 2020

Onde estão os óculos de “Urtigão”?

Dia desses publiquei neste espaço uma troca de mensagens, sob o título “Urtigão é culpado” (clique e veja), que deu o que falar por duas semanas. Ontem, ao vasculhar meus arquivos, encontrei outra troca de e-mails, em 2005, onde mandava notícias minhas e buscava saber do paradeiro de meu velho e bom amigo ermitão.

“... Aos 47, com 99 kg, taxas como a Selic, em alta — triglicérides, colesterol etc. —, com uma preguiça danada de fazer caminhadas matinais no frio seco de 16/18 graus daqui de Brasília, filhos casados (exceto a caçula), toco minha vida com Magdala cuidando do velho Lobão (clique e veja) e de sua filha Luna, primeira cadela do mundo que rói unhas, o que a faz caminhar manquitolando. 


Praga de nosso amigo Manezin, que tanto provocou minha mulher, a duvidar da masculinidade de sua ‘criança’, que a coitada fez o bicho emprenhar uma cadela poodle pertencente a uma amiga que mora lá em Sobradinho, assumindo o compromisso de criar pelo menos uma ‘neta’.

Pior que, mais tarde, o veterinário descobriu que nossa ‘neta’ Luna nasceu com intolerância à proteína da carne de boi ou de frango — razão de uma gastrite que durou quase dois anos para sarar e vem custando boa soma de dinheiro —, o que me leva toda semana à Feira do Guará em busca de alternativas proteicas tais como ovelha, rã, filé de merluza e coalhada integral de baixa lactose. 


Herdou do pai toda a frescura do mundo. Depois que Lobão se tornou cardiopata e nefropata, só come peito de frango sem pele nem osso, pernil de carneiro e é alérgico a carrapatos. Pode? Outro dia, na feira, alguém viu o conteúdo de minha sacola e quis saber o que comemos normalmente eu e minha mulher. Fui sincero: carne moída, fígado, músculo, coxa e sobrecoxa... Já nossos ‘netos’...

Com a mudança dos ventos políticos por aqui, ‘eu vou sobrevivendo, sem nenhum arranhão, da caridade de quem me detesta’, como diz Cazuza. Faço meu dia do mesmo jeitão de sempre, lidando agora com 2.300 almas — 2/3 com menos de quatro anos de empresa — numa rede de 95 agências que atende do Plano Piloto até o Nordeste de Goiás, fronteira com a Bahia. Mereço o respeito delas porque procuro ser simples, firme e justo em minhas decisões. 


Tem dado certo e espero que continue assim, pelo menos até ‘a nova florada anunciar a chegada da safra’...”            

Em sua resposta, “Urtigão” quase me convenceu de que não dera notícias antes por conta da falta de óculos. Sempre me curvo diante de uma história bem contada, principalmente quando envolve um velho e bom amigo do peito.

“... Fui à oculista porque não conseguia mais ler de perto. Comecei a conferir meus prazos de validade e, tristemente, verifico, apesar de ter sido guardado em ambiente seco e ventilado, meus prazos estão vencendo. Fico com medo da minha sogra, porque tudo que vence aqui em casa, ela dá para os cachorros...

A oculista é muito conceituada na Bahia. Ela me receitou óculos para perto e outro para longe. Assim fiz: dois óculos. Na primeira viagem com ambos, esqueci na casa de um amigo os óculos para perto.

Descobri que todos aqueles que não enxergam de perto acham que têm o mesmo grau de deficiência e assim uns pedem óculos aos outros. Foi o que aconteceu com os meus. Embora sem enxergar direito com eles, meu amigo não conseguiu distinguir entre os dele e os meus. Ficou usando os meus e guardou os dele para me devolver. Tudo ia bem até que a sogra dele sentou em cima dos meus óculos, no sofá. Uma lente ninguém achou e eu tenho até medo de perguntar.

Daí ele começou a usar os dele que estavam destinados a mim e eu fiquei com os óculos quebrados. Não me irrita muito ficar sem óculos de perto porque ainda me ajeito a olho nu. Mas tem coisas ruins de ler e o pior é pedir para alguém, que logo lhe chama de senhor, ou de tio. Antes que me chamassem de vô, resolvi fazer óculos multifocais e acabar com o dilema.

Na realidade, acabei criando outro problema. Fiz de minha caneta uma lança e a arremessei contra minha oculista, que aqui transcrevo para você ver que estou falando a verdade:
 


(...) Minha querida oftalmologista,

Estou escrevendo este mail com um óculos para perto que comprei na Avenida Sete de um elemento que, além de ser presidente da Associação dos Muambeiros do Paraguai, é profissional especializado em desentupidores de fogão, pilhas alcalinas, pomada para hematomas e contusões e, o que é melhor, possui curso técnico de oftalmologia de 1º grau.

Não está muito bom, meia-boca, como se diz, mas os outros que fiz numa afamada ótica da Avenida Sete estão  simplesmente me deixando louco. Tenho certeza de que, se ele são melhores para minhas vistas, serão piores para meus neurônios.

Essas lentes de gradação progressiva são realmente fantásticas. Lembro que, antigamente, os óculos possuíam uma ‘janelinha’ nas lentes que o povo chamava de bifocal. Aí a gente já sabia: é pra ver de perto, espia-se o mundo por ali. A sensação era tão boa que lembrava as portinholas dos antigos ‘relógios cuco’ de parede, de onde saía o passarinho para anunciar as horas inteiras e suas metades. Melhor ainda, para os menos normais, a janelinha lembrava um buraco de fechadura, doces sonhos e devaneios adolescentes.

Gosto da evolução tecnológica, apesar de ser um indicativo de minha, aí sim, progressiva velhice e dos prazos de validade dos órgãos vencendo. Ninguém me avisou dos inconvenientes dessas lentes modernas.

Primeiro, não posso balançar a cabeça. Parece ressaca; só não dói, nem traz a boa lembrança do dia anterior. Sacudir, de jeito nenhum! Fica o nariz como o apoio da gangorra: quando viro a cabeça para a direita, o olho direito vê a tudo subir, levitando, e o esquerdo, a tudo descer, afundando... Se olhar com os dois olhos para o centro, parece que estou enxaguando um aquário de peixes sem peixes, com as imagens distorcidas pela visão através da água, mexendo para lá e para cá.

Para não levar o título de mal humorado, chato ou impaciente, estou tentando me acostumar com o objeto. Mas é complicado.


Descobri que para ver de longe, tenho que baixar a cabeça e olhar quase pela borda superior dos óculos. Ora, isso tira a altivez de qualquer um. Nessa pose me sinto um esmoler, que pede a caridade da imagem, ou então um penitente, que chega ao altar réu-confesso de sua culpa.

Já para ler de perto, tenho que empinar o nariz e olhar para baixo. Como quem tem ojeriza ao próprio corpo e o vê apenas de relance, quando a barriga permite. Então, estou ficando assim: humilde de longe e arrogante de perto. Igual a político.

Olhando pela linha mediana e para frente, entretanto, as coisas dão mais ou menos certo, se contidos os movimentos bruscos. Caso contrário, volta-se a ter visão idêntica a uma cenoura no liquidificador, prestes a ser incorporada numa vitamina de banana.

Penso que velhos marinheiros não terão problemas de se adaptarem a essas lentes. Tampouco os surfistas, já que vivem em constantes maremotos.


Vou fazer as últimas tentativas: beber e usar os óculos.  A lógica me induz a imaginar que a visão desfocada causada pelo álcool tende a se ajustar com a visão fora de foco e oscilante proporcionada pelos óculos. Daí, pronto: visão perfeita.

Meu medo: já pensou se, na tentativa de achar o foco, eu ficar remexendo os olhinhos, sendo observado por um homão que, sentado em uma mesa ao redor, de repente achar que é com ele e chegar bem perto de mim e fazer uma declaração de amor? 
(...)’


Cunha, eu, Horácio e Urtigão, em 2000.
Há 15 anos era assim. Tudo servia de pretexto para uma boa conversa entre nós. “Urtigão” anda novamente calado, quieto, entre plantas e bichos no interior da Bahia onde, no fim da tarde, vê o horizonte da cor que imagina e se dá asas para voar no céu das coisas que lhe mantém vivo. 

Sim, sei que está vivo! Vi dois tiques quando lhe mandei minha última mensagem, ainda sem resposta. Deve ter perdido de novo os óculos, que a rigor nunca lhe fizeram falta para enxergar as coisas do mundo.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Sementes de tangerina


Vinha de longe o hábito de cochilar depois do almoço na varanda do apartamento, deitado numa rede com uma camiseta sobre o rosto, a ouvir o barulho das ondas do mar e, ultimamente, de motores e buzinas na rua, apesar do apelo das autoridades sanitárias para que as pessoas ficassem em casa. 

Havia uma explicação para o pitstop rotineiro no começo da tarde: todo dia acordava bem cedinho, por volta das cinco. Esperava o sol nascer a flanar na internet em sites de notícias, fazendo anotações ou a garimpar imagens nos álbuns digitais da família.

O único barulho que lhe deixava numa aflição inexplicável — coisa de outras encarnações, diriam os especialistas no assunto — era o “flap! flap!” do helicóptero da PM a sobrevoar os quarteirões do bairro, dando apoio às viaturas no asfalto que garantiam a tranquilidade dos donos de hotéis, bares e restaurantes da orla, fechados por conta do turbilhão virótico.

Naquele começo de tarde, sua mulher levaria pelo menos meia hora no banheiro entre shampoo e cremes. Ele poderia, portanto, após generoso prato de carne de sol com macaxeira e vinagrete, cair no sono até que a parceira de quarentena reaparecesse na varanda.

Vê o tal helicóptero fazendo voos rasantes, como se tentasse inibir um arrastão na praia, enquanto um pelotão de policiais corre para o local. Pergunta-se: o que leva o piloto a fazer manobras tão arriscadas, com tantos prédios na orla abrigando famílias confinadas nesses dias de ansiedade e tédio?  

De repente, a hélice da aeronave choca-se com o apartamento dois andares acima do seu. Na mesma hora, exala um cheiro forte de combustível e surgem as primeiras labaredas em meio a tufos de fumaça escura.


A onda de calor lhe faz numa fração de segundo correr até a porta, mas o fogaréu, para seu desespero, já se alastra pelos corredores e desaconselha qualquer tentativa de fuga pela escada.

Atordoado com a gritaria e o alarme estridente do edifício, passa por sua cabeça num piscar de olhos as cenas que vira pela tevê dos atentados terroristas às torres gêmeas do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque, quando uma das aeronaves perfurou os prédios como pregos em barras de sabão.

Ainda cogita se trancar na suíte, ligar o chuveiro e deixar jorrar água na banheira até a chegada dos bombeiros, mas talvez não houvesse tempo. A única saída seria amarrar alguns lençóis e descer dois ou três andares, onde aguardaria o resgate.

Teria que ser rápido porque a estrutura do prédio, naquela temperatura, talvez não resistisse e desmoronasse. Ao começar a descida, no entanto, a corda de lençóis não suporta o seu peso e desata justamente onde fora amarrada no parapeito da varanda.

O horror do corpo em queda livre lhe fez acordar quase urinando de agonia e desespero. Pulou fora da rede e correu até o lavabo, onde esvaziou a bexiga e lavou o rosto, enquanto o coração voltava ao ritmo normal. 

Diante do espelho, esboçou um sorriso sem graça, reflexivo: “E aí, meu velho, quase foi embora sem ver filhos e netos pela última vez? Sem ter dito o quanto ama cada um deles? Qual é a graça de partir sem ver a cara das pessoas que ficam? Quem iria chorar a sua ausência?

Foi quando lhe veio à cabeça o que escreveu Sêneca (4 a.C — 65 d.C), escritor, dramaturgo e filósofo do Império Romano: “... Nisto todos erramos: ver a morte a nossa frente como um acontecimento futuro, enquanto grande parte dela já ficou para trás. Cada hora do nosso passado pertence à morte”. E ainda diria noutra ocasião: “Não é da morte que temos medo, mas de pensar nela.”

Mais relaxado e refeito do pesadelo, ele abriu a geladeira e em seguida retornou à varanda com duas tangerinas descascadas, que chupou sem pressa alguma, gomo a gomo, absorto em pensamentos. Nisso, chega a mulher e vai logo apontando para o chão: “Ei, “véio”, o que é isso aí debaixo da rede?!” 


Se ela soubesse que por pouco não perdeu para sempre a grande paixão de sua vida, não perguntaria pelas sementes de tangerina no chão. Quem sabe até sairiam  juntos pela orla — de máscaras, claro! —, a jogarem pelo caminho, como diria Quintana, “a casca dourada e inútil das horas”.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

O Ícaro da hora


Foi logo após a Copa do Mundo de 1966. O pai do menino largara no sofá a revista semanal O Cruzeiro e, curioso, depois de ver a reportagem sobre a vitória do time inglês, achou de ler a última matéria, que o deixou em pânico: “Ícaro, a morte que ronda o espaço”.

Ícaro era um asteroide que havia sido descoberto no final dos anos 50 pelo astrônomo alemão Walter Baade (1893 – 1960). Foi batizado assim em homenagem ao mito grego que voou próximo ao Sol na tentativa de fugir da ilha de Creta.

A reportagem tratava do possível choque de Ícaro com a Terra caso não fossem utilizadas armas atômicas para interceptá-lo e evitar a colisão, livrando o planeta de consequências devastadoras como a que dizimara os dinossauros há milhões de anos.

Aos nove anos incompletos, o menino quase morre do susto. Não contou nada a ninguém mas logo lhe apareceram febre e dor de cabeça. “É gripe mais forte”, deve ter pensado sua mãe, ao tratá-lo à base de chá de eucalipto e colcha de chenille para o suadouro. De quebra, a terapia tinha o efeito colateral bom de deixar a mãe mais perto do filho. 

O menino passou uns cinco dias sem pôr os pés fora de casa nem para ir à escola. Temia ser esmagado na calçada pelo asteroide sem poder mexer pela última vez em seus brinquedos e cadernos, embora da janela pudesse ver alguns amigos soltos na rua como se houvesse fartura de amanhãs. Eles não eram de ler.

A agonia só desapareceria na semana seguinte, quando a revista deixou claro que não era daquela vez que a humanidade sumiria da face da Terra com seus sonhos, ambições e esperanças, voltando tudo à estaca zero.

Apesar das profecias apocalípticas dos astrônomos, os cálculos foram refeitos e chegou-se à conclusão de que Ícaro passaria ao largo, como tantas vezes já havia passado, sem causar maiores danos ao nosso grãozinho de areia sideral.

Os adultos continuariam a discutir futebol, política, religião, cinema, música ou simplesmente a desejar o Simca Chamboard – sonho de consumo produzido pela indústria automobilística nacional – sem o risco de serem transformados em poeira cósmica a qualquer momento.

Restou entre eles a convicção de que não eram tão grandes diante do universo. Pouco tempo depois, como diria o emergente poeta Caetano Veloso, o sol do país do futuro se repartiria em crimes, espaçonaves, guerrilhas. E cada tribo, a seu modo, desfrutaria da nova safra de amanhãs.

O Cruzeiro, tal como o sol, continuaria nas bancas de revistas. E em caras de presidentes, em dentes, pernas e bandeiras, adultos prenderiam e arrebentariam irmãos até que se ouvisse falar em “distensão lenta, gradual e segura”, uma década depois. 

o menino, que a tudo assistia sem entender direito o que se passava no país do futurocom os olhos cheios de cores, o peito cheio de amores, ainda sem lenço, sem documento, também sonhava com um lugar ao sol.

Pouco mais de meio século depois, o menino vê o seu passado a passar por ele na criança dos dias de hoje, confinada por conta de um asteroide invisível que aterroriza a humanidade, a ameaçar de morte por asfixia quem ousar desafiá-lo.

O que se passa pela cabeça dessa criança, isolada com seus pais, que já compreende que pode ser portadora do novo coronavírus (mesmo sem sintomas) e vetora de sua propagação entre indefesos velhinhos de sua família ou da vizinhança?

Será que essa criança, em sua perplexidade, também ficará muda de pavor, não contará nada a ninguém e lhe aparecerão febre e dor de cabeça? Será que sua mãe lhe trará chá de eucalipto e colcha de chenille para o suadouro? O mundo se move em círculos.

Mas agora, sob a ameaça do "Ícaro" da hora, não faltará quem aconselhe a essa mãe o uso em seu filho de máscara, analgésico, antitérmico, antes de procurar a emergência de um hospital qualquer. Que tenha UTI e respirador mecânico, claro. 

Tomara que essa criança e sua mãe, mesmo sem o chá de eucalipto e a colcha de chenille, respirem fundo, desacelerem seus corações e consigam enxergar na escuridão que "a neve e as tempestades matam as flores, mas nada podem contra as sementes" (Kahlil Gibran). 

Daqui a pouco brotará no ventre da Mãe-Terra o grão – remédio ou vacina  de uma nova safra de amanhãs, para que a vida atualize seu software instalado numa nova versão. Tem sido assim desde que o mundo é mundo.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Dança da solidão

Sexta-feira, 13 de março. Dona Eulália, 81 anos, minha vizinha, teve que se desculpar na fila do supermercado porque vacilou na chamada etiqueta do espirro e da tosse e quase mata de susto um velho carrancudo e magricela que estava à sua frente: 
– Desculpe, meu senhor... Nem se preocupe. É minha rinite alérgica. Quando entro no ar refrigerado o nariz começa logo a coçar.

Soube disso por acaso ao encontrá-la no elevador de nosso prédio. Voltava do pronto-socorro ainda reclamando de dores na panturrilha (batata da perna, para alguns). Chegou a pensar em trombose, hipótese descartada pelo médico que lhe atendeu e recomendou apenas mais moderação nas atividades físicas. Caminhadas longas e danças já lhe pesam muito.

Aproveitei a oportunidade para tentar convencê-la a praticar o isolamento social que a Organização Mundial de Saúde vinha recomendando para os idosos, por conta do surto viral que dava as caras por aqui sem bater na porta e já querendo matar.

Para o seu próprio bem, procurei assustá-la ao alertar que poderia ser contaminada até pelos dançarinos a quem paga cachê todo fim-de-semana para lhe fazer companhia nos bailinhos da terceira idade. Fiz mais: recorri a alguns conhecidos em comum para que reforçassem a pressão, no sentido de protegê-la do vento mórbido que está repaginando o planeta.

Não adiantou. Pensionista de ex-funcionário do Banco do Brasil, com contas em dia e assistência médica de primeira numa terra de segunda classe, Dona Eulália é daquelas que acreditam que a confusão que está aí não passa de um complô da esquerda para derrubar os governos "patriotas" que subiram ao poder pelo mundo afora. 

Em seu fanatismo ideológico, com traços de fundamentalismo religioso, vive a espalhar pelas redes sociais coisas como: “(...) É a gripezinha anual de sempre... Vamos desmascarar esta corja da mídia...  Não podemos ficar a mercê desse bando de esquerdopatas... O povo não deve de jeito nenhum ficar em casa e perder o emprego (...)"

Apesar de vários filhos e filhas, ela optou por viver sozinha em seu canto, tendo por companhia apenas a tevê – não perde por nada o Brasil Urgente, apresentado pelo Datena –, o celular e um cachorro abusado da raça Dachshund, chamado Olavo – um neto dela o batizou assim porque se mete em tudo, late muito, mas só dá trabalho.

As rugas discretas e os cabelos brancos até que lhe caem bem e realçam a elegância. No auge da maturidade, continua bonita e, por isso mesmo, mais vaidosa que nunca. Não vai nem à padaria da esquina sem conferir a imagem refletida no espelho da porta de seu guarda-roupas.

Adora dançar, em especial um bolero lançado há 10 anos por Marisa Monte, do tipo “dois-pra-lá-dois-pra-cá”: 
“(...) Ainda bem 
que agora encontrei você, 
eu realmente não sei 
o que fiz para merecer 
você, 
porque ninguém 
dava nada por mim (...)” 

Com um sorriso enigmático no rosto, vira e mexe repete para as amigas que “os sonhos não envelhecem”. 

Sábado, 14 de março. Fiz o que pude para que Dona Eulália não se arriscasse tanto, mas ao pegar o elevador esta noite olhou bem dentro dos meus olhos e confidenciou: “Meu filho, é dançar ou dançar! Se não dançar todo sábado, danço do mesmo jeito: dói tudo, bate uma tristeza danada... E eu vou lá me acabar no tarja preta?”

Sábado, 21 de março. Hoje não saiu de casa nem para levar Olavo lá fora para demarcar território. Eram quase 11 da noite quando me ligou. Falava baixinho, cansada, queixando-se de febre, mal-estar geral, dor de cabeça, tosse seca, dor de barriga e perda de apetite.

Liguei na mesma hora para uma de suas filhas, médica de família,  especialista em cuidados primários de saúde, com quem ela não falava havia meses – rusga antiga que ora esquenta, ora esfria. Contei o que ouvira e minutos depois ela chegaria apressada para socorrer a mãe.

Tive medo de me aproximar por conta das cautelas de que tanto se fala ultimamente. Meia hora mais tarde, vi quando a médica, com seu jeito seco de ser  – desde criança é assim, dizem – deixava o apartamento e entrava no elevador amparando a mãe, que carregava Olavo no colo.

Sábado, 28 de março. Passei a semana atormentado, me sentindo mal por não haver persuadido Dona Eulália a se resguardar nesses dias de escuridão, perplexidade e suspense. Ansioso com a falta de notícias, liguei para a sua filha:
– E aí, doutora, como ela está?
– Do mesmo jeito...
– Testaram?
– Não foi necessário.
– O que ela tem?
– Saudade das amigas, dos bailinhos, da padaria... Passa já.

Menos mal. Ainda bem que solidão não cura com remédio. Vai que aparece algum leigo querendo usar a caneta para propor tratamento à base de cloroquina e a coitada acredita. 

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Nobel da paz

Carnaúba é uma palmeira comum do Semiárido nordestino, conhecida como a árvore da vida longa. Da folhagem se extrai uma cera natural com que se produz batons, sabonetes, vernizes etc. Seu nome deriva do tupi e significa planta que arranha, por conta de espinhos em seu caule. 



Mas a árvore longeva de que falo aqui, no auge de seus 82 verões, veio de outra galáxia, não arranha nem possui espinhos. É leve, do bem e da paz, espirituosa, dotada de rara inteligência. 

Nos anos 70, quando pediam a Humberto Carnaúba horas extras após a rotina diária de seis horas de trabalho, negava-se sob argumento simples e objetivo: ganharia bem mais, sob todos os aspectos, na mesa de sinuca apostando com alguns amigos.

E quando entrava em férias, em questão de minutos era visto com sua inesquecível Selma na estação ferroviária, onde subiam com destino incerto no primeiro trem que ali parasse. Na bagagem, apenas três ou quatro mudas de roupas, escovas de dentes e sandálias. Voltaria em um mês, horas antes do começo do novo ciclo de trabalho.   

Conheço-o há quatro décadas, desde que ancorou em Maceió. Ao lado de nossas mulheres (a minha e a dele, claro!), foram várias noitadas a ouvir e a dançar forró pé-de-serra — o hino era "Feira de Mangaio", de Glorinha Gadelha/Sivuca, na histórica interpretação de Clara Nunes. Na mesa, muita cerveja gelada e carne-de-sol com feijão-de-corda e creme de leite, ainda sem o risco dos bafômetros estraga-prazeres nas madrugadas da Ponta Verde.

Amante de motes e glosas (tipo de poema comum no Nordeste que responde a um desafio lançado sobre um tema qualquer), Carnaúba sempre foi emérito contador de "causos". E se isso não fosse bastante, era onicófago convicto (roedor de unhas)! Admiro esses seres porque nunca vi nenhum deles fazendo o mal a ninguém, pelo menos enquanto ocupados no hábito.

Sou testemunha de que Carnaúba, sem querer, conseguiu a proeza de ser protagonista da paz entre dois sujeitos que travavam uma guerra particular a 600 km de distância da capital alagoana, mais precisamente em Salvador.  

Ele ainda trabalhava no Agreste de Pernambuco quando teve que intervir numa iminente troca de sopapos entre dois fazendeiros ignorantes, truculentos, no dia do aniversário de um deles. 

O coronel Carvalho resolvera comemorar idade nova oferecendo uma memorável buchada de bode. E para dar uma demonstração de poder e força, convidou meio mundo de gente, inclusive um vizinho com quem vivia às turras por conta de disputa terras.

No dia do rega-bofe, embora sofresse dores horríveis por conta de uma crise de gota, coronel Carvalho recebia os convidados na porta de casa com os pés descalços para evitar o desconforto das botas.

Gota, para quem não lembra, é uma forma de artrite caracterizada por dor intensa, vermelhidão e sensibilidade nas articulações, por conta de uma grande quantidade de ácido úrico ali cristalizado.

Ao meio-dia, chegava o vizinho com sua esposa a alguns passos atrás —  prevalecia na região o jeitão machista de andar à frente da mulher, a pretexto de protegê-la. Na pressa em seguir os passos largos do marido, a coitada acabou pisando nos pés do anfitrião. 
— Você vem cega, miserável?! — urrou o coronel, cerrando os dentes de dor.

O vizinho, ao ver a confusão instalada, fechou a cara e falou grosso:
— O que tá acontecendo, mulher!?
— Eu... eu pisei no pé do coronel Carvalho sem ver... — justificou-se, constrangida. 
— Oxente, mulher, Carvalho sem “v” é “baralho” — gracejou o vizinho, usando termo chulo que aqui escrevo com "b" para não ferir olhos mais sensíveis. 

Fechou o tempo em relâmpagos e trovões! Não fosse a pronta intervenção do “embaixador” Carnaúba, o final teria sido outro, com cenas de pugilato explícito. Poderia até descambar para punhaladas e tiros que ninguém ali iria a um festão daqueles sem estar devidamente precavido. Mas salvaram-se todos. E os vizinhos puderam voltar para casa, diplomaticamente escoltados por meu velho amigo. 

Anos depois, Costa, que havia migrado de Alagoas para a Bahia e tinha conhecimento do ocorrido por intermédio de Carnaúba, enchia a paciência de um colega, coincidentemente chamado Carvalho, com aquele tipo de pergunta que tira do sério qualquer cristão:  
— O seu Carvalho é com “v” ou sem “v”?

Ao ser apresentado a Carvalho, encontrei-o com o semblante tenso, chateado. Curioso, não resisti e quis saber:
— Diga aí, por que você tá desse jeito?
— Para ser sincero, não aguento mais ouvir Costa me fazer aquela pergunta besta. Vou acabar fazendo merda!
— Que pergunta? 
Contou-me o que se passava e pude então compartilhar com ele a origem de tudo.

Nisso, me veio à cabeça outra narrativa de Carnaúba, agora envolvendo o próprio Costa, que no começo dos anos 80 resolveu candidatar-se à presidência de um clube social em Maceió e andava em campanha, a pedir votos a todos os associados que encontrava.

Ao ver o esforço eleitoral do colega, Carnaúba, que nunca se incomodou com sua reluzente calvície, embora a todo momento tentassem provocá-lo por conta disso, indagou com a cara mais lisa do mundo:
— Por quê você não cria um slogan para a campanha?
— Boa ideia! Tem sugestão, careca?
— Não. Vamos pensar?
— Você é que é bom nisso! Bote essa careca pra funcionar.
— Muito bem, primeiro anote aí: se cabelo fosse importante não nascia no... sovaco (o termo utilizado não foi bem esse, mas escrevo “sovaco” preocupado, de novo, em não ferir olhos mais sensíveis).
— Peraí, Carnaúba, tô brincando!
— Sei disso. Eu também. Já tenho até o slogan para campanha: “Bosta por bosta, vote no Costa!”

Carvalho caiu na gargalhada. Tinha agora o antídoto para o veneno que vinha lhe matando aos poucos. E na primeira oportunidade, diante de vários amigos em comum, contou o caso tintim por tintim, para riso geral da plateia.

"A guerra só pode ser abolida com a guerra. Para que não existam mais fuzis, é preciso empunhar o fuzil", dizia o líder chinês Mao Tse-Tung (1893 — 1976). A paz, enfim, foi restabelecida por obra e graça, ainda que sem querer, de meu amigo Carnaúba.

Se depender de mim, os velhinhos de Oslo, na Noruega, deverão ser notificados desses fatos para que lhe outorguem o próximo Prêmio Nobel da Paz, na presença do rei Haroldo V. É mais que justo!



Como a cerveja naquelas bandas é de primeira qualidade, tenho certeza de que Carnaúba irá gostar de conhecer a região escandinava, a terra dos vikings. Claro, assim que a paz voltar a reinar nesse mundão assustado de meu Deus.

domingo, 15 de março de 2020

Cobrando a conta

Morto de cansaço e fome, Vieira chegava em casa  para o jantar quando seu filho lhe entregou um envelope com cara de quem cumpria uma missão importante: “Pai, a tia me pediu para entregar na sua mão. Quer que eu leve uma resposta até sexta-feira”.

Era a cobrança de mensalidades escolares em atraso, em tom de  ameaça, assinado pela diretora e pela tesoureira da escola. Vieira leu, engoliu seco e perdeu o apetite. Atrasaria qualquer conta a pagar  — prestação do imóvel, do carro etc. —, menos a que pudesse causar constrangimento ao filho.


Pior: não havia atraso algum. A transferência entre bancos via doc (documento de ordem de crédito) tinha sido criada no começo dos anos 80. Ele gostou da inovação e assim que recebia seus salários, transferia para a conta da escola o valor da fatura. Com o tempo escasso e dividido entre faculdade e trabalho, era a alternativa encontrada para não ter que se deslocar  todo mês à secretaria do colégio.
 
Vieira poderia ter sido mais elegante, politicamente correto. Chateado, no entanto, na manhã seguinte revidou com mão de chumbo, escrevendo no verso da cobrança recebida uma resposta curta, dura e grossa: 
 
“(...) Não devo nada!  Seguem os comprovantes de que transferi para a escola, nos prazos, os valores das mensalidades que me cobram.
Dinheiro não cai do céu. Se aparece na sua conta, procure identificar a origem no seu banco para evitar cobrança indevida, sobretudo através de portadores inocentes.
Não me cobrem mais dessa forma! Senão serei obrigado a mandar vocês enfiarem a cobrança no lugar onde macaco esconde castanha de caju (...)”

Teve sorte. Poderia sofrer processo judicial por injúria, misoginia ou, na pior das hipóteses, ser ameaçado de morte por alguém tomando as dores do revide no vale-tudo daqueles tempos. Só uma década depois, em 1990, surgiria o Código de Defesa do Consumidor para colocar alguma ordem “no recinto”.

Talvez as cobradoras não se deram conta quando ele se referiu ao esconderijo de castanhas do primata. Ou pensaram que fosse apenas uma alusão aos saguis que apareciam no cajueiro que havia próximo ao pátio de recreio. Para evitar novas cobranças, contudo, decidiu mandar pelo filho, todo mês, cópia do comprovante de transferência para a secretaria da escola. 
 
É verdade que, àquela altura do jogo, Vieira já andava de cabeça quente com a excessiva mercantilização da educação no país, a cobrar de pais de alunos, no começo de cada ano letivo, desde rolos de papel higiênico até caixa de fósforos, passando por garrafas, barbantes, pregos, velas etc., numa interminável lista de materiais supostamente escolares.
 
Também não engolia ver o filho ser cobrado pelas mesmas coisas que lhe exigiram nos anos 60, como aprender a ler soletrando sílabas ou a somar, diminuir, multiplicar e dividir, na ponta do lápis, como se as pequenas calculadoras que surgiam fossem modismo passageiro ou brinquedos eletrônicos descartáveis.

Mais tarde, seu filho ainda seria cobrado, assim como havia acontecido com ele, a decorar que “atmosfera é a camada de ar que envolve a Terra”, que “a raiz quadrada do número 1 será ele mesmo” ou que “duas ou mais retas paralelas  encontram-se no infinito”. Vieira esperava mais da escola, além de noções básicas de Ciências, Geografia, História, Língua Portuguesa e Matemática. 

Óbvio que não se tratava de terceirizar papéis 
— tinha consciência de que educar é tarefa compartilhada entre pais e educadores —, mas sonhava, por exemplo, que a escola lhe ajudasse a ensinar o filho a sentar ao lado dos que se sentiam sozinhos e precisavam de ajuda. A nunca se arrepender do bem que fizesse aos outros. A ser humilde e a encorajar os mais frágeis. A nunca se sentir dono da verdade nem ser egoísta. A se colocar no lugar dos "inimigos" num desentendimento qualquer. A não guardar mágoas, ressentimentos. 

Vieira sonhava receber da escola boletim com as notas do filho em "disciplinas" básicas como Compaixão, Generosidade, Inveja, Raiva, Resiliência, Solidariedade etc. Estava seguro de que é isso que diferenciaria uma vida plena de outra medíocre.

Viu com o tempo, no entanto, que, tal como lhe aconteceu no passado, foi a vida que educou seu filho — assim como faz agora com seu neto — pelo velho método de tentativas e erros de que todos os seres vivos se utilizam para criarem um mundo menos hostil. 

A escola aparece apenas para carimbar certificados e cobrar a conta. 

domingo, 1 de março de 2020

De pai para filho, às vezes

Reco do Bandolim (Henrique Filho) é músico, compositor, jornalista, radialista e produtor cultural.  Nascido na Bahia, radicou-se em Brasília desde os primórdios da Capital, onde cuida com zelo e talento do Clube do Choro, um dos templos sagrados da música instrumental brasileira. 


Há poucos dias compartilhou com amigos texto escrito por seu filho durante um voo que fizeram juntos, no começo do ano, de Salvador para Brasília. Texto que, segundo ele, discorre sobre uma manhã em que “Henriquinho se deixou diante do mar de Piatã”. Disse mais sobre seu filho, também músico e compositor: “... vive em Portugal, e meu coração, a um só tempo, feliz e aflito de saudades.”

Sob o título “Coração de Pedra”, Henrique Neto escreveu como se espalhasse notas musicais sobre um pentagrama:

“(...) Quando passo um tempo sozinho em frente ao mar sinto que reencontro alguma coisa que andava perdida. Acho que é uma certa sensação de transcendência que sua imensidão me causa e, ao mesmo tempo, por outra razão talvez ainda mais importante: o mar nunca se cansa de repetir seu balé. Milhões de anos repetindo o mesmo ritual, os mesmos movimentos e nada abala o desempenho do mar e seu prazer em somente existir. (Hoje em dia, com a quantidade ridícula de estímulos que temos a todo instante, ficamos com a impressão de que a repetição está associada necessariamente ao tédio. Que engano). Deve ser por isso que Caymmi gostava tanto de estar junto do mar. Ali, ele alimentava e renovava suas esperanças e se enchia de infinito que depois transformava em canções. 

Gosto muito de ver ele vir macio lá de trás, subir suas ondas, quebrar na praia, fazer sua espuma, recuar sua água e depois repetir a coreografia. E por mais tempo que passe olhando pra ele não canso de olhar. Parece que nada é banal naquele espetáculo e tudo tem um significado: o som das ondas, o recuo e o avanço das marés, a espuma que surge com a quebra das ondas... 

... O mar, com suas águas macias, não respeita (no melhor sentido da expressão) a força da rocha. Ele simplesmente envolve a pedra com a fluidez do seu bailado (...)”

                                      ***

Assim que fechei a leitura, quis dizer alguma coisa a Reco, mas eram pobres os adjetivos que me ocorreram para qualificar a beleza do texto, inspirado numa praia como outra qualquer, de águas um tanto frias e areia dura, amarelada, que conheço há anos.

Ah! Se ele, o autor do texto, soubesse das praias de Pajuçara e Ponta Verde — com sargaço e tudo! , onde quase todo dia vejo o sol chegando bem devagar, calado, a render a lua e a trazer no colo uma manhã vestida de esperança.

Ah! Se eu soubesse expressar como ele, com um violão nas mãos, o que transborda no coração dessa gente resignada que passa por mim logo cedo e vai em frente mesmo sem ter com quem contar, surfando nas alegrias e agonias de cada dia. 

Ah! Se eu soubesse, assim como o autor e o pai sabem, extrair de cordas sons tão caros e raros ao coração de quem se deixa diante do palco no Clube do Choro a lhes escutar. Nunca mais eu deixaria de tocar. 

Como nunca aprendi a tocar um instrumento  nem cuíca, prato, reco-reco ou tuba —, só consigo tocar meia dúzia de corações quando escrevo. Já não me iludo mais: bandolim e violão, assim como piano e saxofone, representam muita areia pro meu carrinho de mão enferrujado. 

Por isso, rendo minha homenagem inclusive aos tocadores de cuíca, prato, reco-reco e tuba. No caso da tuba, aliás, confesso que até hoje fico intrigado quando vejo aquele sujeito, na parada militar ou no coreto da praça, carregando um treco maior do que ele apenas para, de vez em quando, soprar um ofegante "fum-fum". 

Ainda bem que os filhos nem sempre puxam ao pai. 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Adeus, "Charles Brau"

Duas semanas depois da publicação da crônica Carpenters em Alagoas (reveja aqui), onde falei sobre Braulino, meu amigo “Charles Brau”, ele partiu levando consigo o punhado de histórias e sonhos que deveria compartilhar com seus bisnetos quando eles crescessem. 



Já vinha sofrendo com um quadro gravíssimo da chamada síndrome hepatopulmonar 
 doença no fígado que provoca dilatações nos vasos sanguíneos dos pulmões —, o que lhe obrigava a usar oxigênio quase o dia inteiro. 

O transplante de fígado seria a única solução para o problema, não fossem seus 76 anos de idade. Apareceram feridas nas costas que acabaram virando porta de entrada para bactérias, resultando numa infecção generalizada.

Um pesado coquetel de antibióticos ainda lhe permitiu sair uns poucos dias da UTI. Recuperava-se na medida do possível quando foram descobertos alguns cálculos renais, parcialmente retirados. Mas passou mal no dia seguinte, voltou à terapia intensiva com sinais de nova infecção e de lá não saiu com vida.

Nem teve tempo de ler o texto de Luís André, seu filho caçula, escrito justamente no dia da retirada dos cálculos renais:

“(...) O que esperar do tempo? Esperar 90 a 94 anos para despedir-se? Seria bom... Esperar que em 15 dias a felicidade volte a habitar nosso interior, já que há dois anos ela vem diminuindo aos poucos?
São 76 anos de amor, dedicados a sua família e poucos amigos, mas todos fiéis e retos, assim como ele.


Esperar que uma vida de bons exemplos, retidão e broncas merecidas retornem? Não sei o que esperar.
Um momento de desilusão... de tristeza profunda. Na verdade, um silêncio que grita para que, se pudesse, Deus desse um pouco de minha saúde para ele. Se pudesse, lhe fizesse o que ele sempre fez comigo... netos e bisnetos.


Nada de voltar no tempo. Eu queria mesmo é que o tempo parasse lá atrás, quando tudo estava dando certo para meus pais e para mim. Assim..., aproveitaria mais sua presença até certo ponto militar — mesmo sendo professor e bancário —, a transbordar de cuidados e de amor por mim, por todos nós.

Um tempo que nos traiu, nos levou a crer num possível Alzheimer, pela saúde e pelo porte físico avantajado de seus 1,90 metros de altura e 110 kg, hoje reduzidos a míseros 80kg. 

Nunca imaginei o que estamos passando. Uma dor seca, diferente da dor de coluna que me retorcia na cama ou na minha ex-cadeira de dentista. Uma dor seca que não há remédio que diminua sua intensidade... este abismo dentro de mim. Uma dor "molhada", trata-se; mas a dor seca, ... essa nos mata.

Meu herói está combalido, suas forças reduzidas não o deixam pular para fora de uma simples cama de hospital. Na realidade, suas forças já vinham sendo drenadas por uma síndrome rara.


Nunca, jamais entenderei os planos de Deus, mas os aceitarei (...)”

Naqueles dias de angústia, incerteza e esperança, Dayse recebeu do marido um bilhete curto com orientações bem claras e objetivas:

“Em caso de morte: 
    1. Que meu corpo seja cremado e as cinzas, se forem entregues, pouco importa onde serão jogadas.
    2. Que no ato crematório, se possível, sejam executadas duas músicas:

a) Adagio for strings, de Samuel Barber. (ouça aqui)

b) Requiém – Lacrimosa, de Mozart. (ouça aqui)

Onde você estiver, meu amigo “Charles Brau”, quando encontrar o poeta Mário Quintana, lembre-o de que ainda faz todo sentido o que ele andou pregando por aqui no mundo dos vivos: “uma vida não basta ser vivida; ela precisa ser sonhada...”

Foi só começar...

Na semana passada, publiquei neste espaço uma crônica sobre códigos e jargões corporativos que fez alguns leitores voarem de teco-teco pelo ...