Da varanda, vejo almas que desde cedo se arrastam cansadas a puxarem como podem seus carrinhos de espreguiçadeiras, guarda-sóis, água mineral, coco, milho e pastel, para deleite de turistas em Maceió. Vejo outras entretidas na esquina, debulhando suas telinhas em busca de notícias. E vejo a alma de Cazuza chegar de mansinho, cantando:
“São sete horas da manhã.
Vejo Cristo da janela,
O sol já apagou sua luz,
E o povo lá embaixo espera
Nas filas dos pontos de ônibus
Procurando aonde ir.
São todos seus cicerones.
Correm pra não desistir
Dos seus salários de fome.
É a esperança que eles têm
Neste filme, como extras,
Todos querem se dar bem.
Num trem pras estrelas...
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas...”
![]() |
Imagem: Dedé Dwight |
Outra correnteza chega pela TV e nos atropela a todos. Joga um pote de água fria sobre o sol que acaba de nascer e revela que quase 37% das famílias alagoanas passam fome. É o que mostra um estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN), divulgado quarta-feira passada, 14 de setembro.
A proporção de famintos aqui é mais que o dobro da média federal (16%), já por si um escândalo. Em 2018, cerca de 6% dos brasileiros passavam fome. Dois anos depois, essa parcela subiu para 9%, chegando aos atuais 16% (34 milhões de irmãos). Hoje, a fome desassossega uma a cada três famílias brasileiras com crianças de até 10 anos.
Nesse trágico ranking, Alagoas figura numa vergonhosa dianteira, seguida de perto por alguns estados do Norte/Nordeste: Piauí (34%), Amapá (32%), Pará, Sergipe e Maranhão (todos com 30%). Bem diferente de outros Brasis. A fome, esse infame retrocesso civilizatório, é a mais absoluta degradação social.
Na sexta-feira, 16, no 205º aniversário da emancipação política de Alagoas da Capitania de Pernambuco, outra correnteza inunda a tela da TV, agora no plano nacional, mostrando criança com a mão carimbada para não repetir o prato na merenda escolar, que tinha como proteína 1/4 de ovo cozido (isso mesmo que você leu: um ovo repartido para quatro seres em construção!).
"Os resultados do estudo refletem as desigualdades regionais e evidenciam diferenças entre os estados de cada macrorregião do país", explica o responsável pela pesquisa do Instituto Vox Populi. Nada mais óbvio. Retrato de “Belíndia”, termo cunhado pelo economista Edmar Bacha, para denominar o Brasil de 40 anos atrás, por conciliar no mesmo território as ilhas de bem-estar da Bélgica com os bolsões de miséria da Índia,
Quando ouvi falar pela primeira vez de “Belíndia”, eu era apenas mais um latino-americano que ouvia Belchior, sem dinheiro no banco nem parentes importantes, querendo aprender na Universidade Federal de Alagoas (Ufal). E um velho mestre especialista em planejamento estratégico, professor Lincoln Cavalcante, me garantiu que Alagoas estava chegando “lá”: em breve viraria um paraíso tropical.
Tinha bons argumentos. Pontuava ele que, de todos os estados da região, Alagoas possuía a menor área no Semiárido nordestino. Em sua forma triangular, de um lado era banhada pelo Rio São Francisco e, de outro, pelo Oceano Atlântico. Enorme potencial ainda por explorar pela indústria que mais crescia no Planeta: o turismo.
Apesar da índole concentradora de renda do baronato da agroindústria canavieira, Alagoas ocupava o posto de segundo produtor brasileiro de açúcar e álcool. Tinha brilho e peso na cesta alimentar e na matriz mundial de energia limpa, justamente quando o preço do petróleo estrangulava todos os países que dependiam dessa fonte de energia não renovável.
Tinha mais: o Centro Educacional de Pesquisas Aplicadas (CEPA), local responsável pela formação de jovens, era considerado o maior complexo educacional da América Latina, abrigando 11 escolas públicas estaduais com capacidade total para 8.000 alunos. “É a educação que faz o futuro parecer um lugar de esperança e transformação”, dizia Paulo Freire, pedagogo e filósofo pernambucano.
Por pouco, muito pouco mesmo, o meu entusiasmado professor não subiu à mesa e recitou o poema de outro pernambucano, Ascenso Ferreira, que na metade do século passado descreveu uma viagem, de Maceió para Catende, falando de quem fica, do que fica e da vontade de chegar (parte desse poema foi musicada pelo também pernambucano Alceu Valença):
Trem de Alagoas
O sino bate,
O condutor apita o apito,
Solta o trem de ferro um grito,
Põe-se logo a caminhar...
– Vou danado pra Catende,
Vou danado pra Catende
Vou danado pra Catende
Com vontade de chegar...
Mergulham mocambos
Nos mangues molhados,
Moleques mulatos
Vem vê-lo passar.
– Adeus!
– Adeus!
Mangueiras, coqueiros
Cajueiros em flor,
Cajueiros com frutos
Já bons de chupar...
– Adeus morena do cabelo cacheado
– Vou danado pra Catende,
Vou danado pra Catende
Vou danado pra Catende
Com vontade de chegar...
Na boca da mata
Há furnas incríveis
Que em coisas terríveis
Nos fazem pensar:
– Ali mora o Pai-da-Mata!
– Ali é a casa das caiporas!
– Vou danado pra Catende,
Vou danado pra Catende
Vou danado pra Catende
Com vontade de chegar...
Meu Deus! Já deixamos
A praia tao longe...
No entanto avistamos
Bem perto outro mar...
Danou-se! Se move,
Parece uma onda...
Que nada! É um partido
Já bom de cortar...
– Vou danado pra Catende,
Vou danado pra Catende
Vou danado pra Catende
Com vontade de chegar...
Cana-caiana,
Cana-roxa,
Cana-fita,
Cada qual mais bonita,
Todas boas de chupar...
– Adeus morena do cabelo cacheado
– Ali mora o Pai-da-Mata!
– Ali é a casa das caiporas!
– Vou danado pra Catende,
Vou danado pra Catende
Vou danado pra Catende
Com vontade de chegar...
Alagoas nunca chegou lá, professor! Ou melhor: a que ponto chegou, hein?! Um trem repleto de famintos, desgovernado, numa paisagem deslumbrante, soltando fumaça e faísca em direção ao precipício.
Culpar apenas os condutores da locomotiva (os governantes de plantão, com suas respectivas bancadas de sustentação) pelo descarrilamento é inútil e pouco inteligente. Não se mexe no passado. Eles não teriam alcançado poder, honra e glória sem o suor e o voto dessas almas que hoje se arrastam, cansadas e esfomeadas, a puxarem como podem seus carrinhos.
Até o apito de partida do último trem para as estrelas. Ou não, se resolverem mexer no roteiro da viagem.