Como todo menino criado solto entre quintais e calçadas do interior, um dia escapuli logo cedo da mesa do café para ver o homem que subia no telhado da casa na esquina da rua em que morávamos.
Dizia-se que ele iria esvaziar e lavar a caixa d’água. Sentado no chão, via-o lá em cima com o rosto encoberto pela sombra do chapéu, concentrado no que fazia. Nem notava o pequeno e curioso admirador.
Não demorou muito e começou a tremer como se sentisse frio, apesar do calorão que ardia no Sertão paraibano. Então se debruçou sobre caibros e ripas, os braços arriaram, o chapéu caiu e a tremedeira sumiu.
Voltei correndo para casa. Ao chegar com olhos de assombro, a respiração ofegante e mudo, espantei minha mãe:
– O que foi, menino?!
– O homem... O homem…
– Que homem? Fale!
– No telhado da casa da esquina…
Era tarde. A descarga elétrica da fiação sem adequado isolamento me fez assistir, aos oito anos, à morte trágica de um ser humano pela primeira vez.
Lembro que não chorei, talvez por conta do pronto aconchego materno e do copo de garapa (água açucarada) que me foi servido.
De noite, demorei a pegar no sono, com medo de alma. Medo também do que seria da vida dos filhos daquele homem sem rosto que limpava a caixa d'água e, de repente, adormeceu para não mais acordar.
Não demorou seis meses e, de novo, voltei a sentir medo. Vi minha mãe sofrendo, acometida do que as vizinhas chamavam de mal de sete-couros – tumor que se forma sob a pele do calcanhar, na planta do pé. Temi perdê-la e que sua alma viesse visitar a família.
Ela, grávida do sétimo bebê, ajoelhada sobre uma cadeira com travesseiro sem poder pisar no chão, cozinhava e lavava panelas e pratos. E cuidava dos filhos enquanto o marido chegava do trabalho para ajudá-la.
Na época, eu vinha sendo catequizado para a primeira eucaristia por uma beata mirrada, com olheiras de cansaço cobertas de pó e rouge, conhecida como Neném Macarrão.
Dizia-se que ela ficara no caritó (expressão sertaneja usada para designar a mulher que não casou) e que ganharia o reino dos céus quem tivesse a graça de vê-la sorrindo. Futrica de vizinhas sentadas nas calçadas ao entardecer.
Um dia, chegou a notícia de que Neném Macarrão não daria as aulas da semana. Estava doente. Minto se disser que não vibrei com o tempinho a mais para brincar. Na manhã seguinte, o coração dela parou de bater.
Minha mãe nem pôde ir ao sepultamento da beata. Apesar das compressas quentes, da água oxigenada e da pomada de penicilina, continuava sofrendo os horrores do mal de sete-couros.
Ao lembrar que não foram pagas as últimas aulas da falecida, alertou meu pai de que deveria fazê-lo o quanto antes. Tinha certeza que a alma de quem morre vem cobrar dos vivos as contas em aberto.
Após o jantar, em sua angustiante rotina, ela limpava a pia ajoelhada sobre a cadeira, enquanto o marido e os filhos se espalhavam pelos demais cômodos da casa à espera da hora de dormir.
Um grito vindo da cozinha quase trinca os mosaicos. Pai e filhos correram para socorrer a vítima que, de olhos fechados, mãos trêmulas, com os pelos arrepiados, só não fugiu dali por causa das dores lancinantes no calcanhar:
– O que foi isso?! – acudiu o marido.
– Neném Macarrão me apareceu... Tava bem ali no canto...
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Mãe, pai e filhos, no Carnaval de 1965 |
Mais de meio século depois, meus medos agora são outros. Por exemplo, de deixar de sonhar, de desistir de aprender, de não me comover ou me indignar com o que vejo. Garapa é doce mas não resolve.