Cansado e morto de sono naquela manhã de sábado, 24 de abril de 1982, mesmo assim acabei convencido por minha mulher a não desistir da prova interna de ascensão profissional ao nível médio da carreira administrativa do banco em que trabalhava.
Cogitei também não fazer a prova porque, se fosse aprovado, teria que assumir as novas funções no interior de Alagoas. Não havia vagas nas agências da capital, onde também estudava.
Na noite anterior, tinha socorrido uma amiga e vizinha nossa, por volta das 22 h, que sofrera as dores de seu primeiro parto. O marido costumava escapulir, com destino ignorado, nas noites mornas (ou tórridas, sei lá!) de sexta-feira.
Por ser médica, nossa vizinha sabia que o parto normal seria o melhor para si e para os gêmeos que se apressaram, porque, além de a recuperação ser mais rápida, o risco de infecção seria menor. Haveria menos sangramento, menos dores, permitindo-lhe cuidar logo das crianças. No entanto, concluiu-se que uma cesariana seria a opção mais segura.
Apesar do adequado acompanhamento pré-natal, logo após o nascimento instalou-se um perigoso quadro de eclâmpsia, doença caracterizada por alterações na pressão arterial e repetidos episódios de convulsões que causam dificuldades respiratórias, insuficiência de fígado, rins etc. Poderia ser fatal.
Às duas da madrugada, com o maridão ainda em lugar incerto e não sabido, tive que ir às pressas ao único banco de sangue da cidade em busca de uma chamada papa de hemácias. A transfusão deveria ser feita o mais urgente possível para corrigir anemia grave. Logo eu que, até ali, só ouvira falar de papa de aveia ou de amido de milho, que me obrigavam a engolir quando criança.
A responsável pelo banco de sangue não podia ceder as únicas bolsas disponíveis do tipo pretendido, que estavam reservadas para uma cirurgia marcada para as dez da manhã. Só depois de obstinada negociação (além de compromisso por mim firmado) consegui convencê-la de que bem cedinho estaria de volta com pelo menos quatro doadores para repor o estoque.
O dia raiava quando a equipe médica nos trouxe a notícia de que a situação estava sob controle e que nossa vizinha, devidamente medicada, finalmente cochilava, iniciando o processo de recuperação daquela longa noite. Tudo ia bem, exceto quanto ao débito pendente junto ao banco de sangue.
Confesso que ao assumir o compromisso de repor o estoque de sangue engendrei um plano de ação de acentuado risco porque dependeria de terceiros, em particular de um amigo de infância, oficial militar vinculado ao 59º Batalhão de Infantaria Motorizado, em Maceió.
Antes das cinco e meia da manhã, lá estava eu batendo palmas à porta desse amigo a pedir ajuda. Seguimos para o quartel, onde um razoável contingente de soldados se preparava para as tarefas repetitivas e inúteis do dia. Foram então interrompidos pelo tenente: “Quem se dispõe a doar sangue do tipo...?” – indagou.
Como não apareceram voluntários, o tenente refez a pergunta agregando uma informação importante, sobretudo na manhã de um sábado ensolarado, o que de imediato levou meia dúzia de interessados a darem um passo à frente: “...Os cinco primeiros serão dispensados dos serviços do dia”.
Às sete da manhã, coleta de sangue processada, honrei meu compromisso com pontualidade suíça: o saldo do banco estava devidamente recomposto do desfalque durante a madrugada.
Voltei então para casa disposto a tomar um banho morno, beber um café com leite e ir direto para a cama dormir três ou quatro horas, antes de retornar à maternidade para visitar a convalescente e seus rebentos. Foi quando minha mulher, mesmo reconhecendo a fadiga em pessoa, convenceu-me a não desistir da prova interna de ascensão profissional.
Imaginei que o processo seletivo traria questões sobre rotinas de pagamento, práticas contábeis, saques, atendimento a clientes, análise de operações de crédito etc. Mas, em 1982, não se falava em coisas como: consultoria financeira ou venda de produtos como planos de capitalização, seguros e consórcios. Nada disso!
O desafio era outro, inédito para os candidatos: assumindo o papel de gerente de uma agência, cada um deveria redigir uma carta-resposta, com pelo menos 20 linhas, negando à diretoria de RH da empresa, de forma ampla e circunstanciada, pedido de cessão de dois funcionários para trabalharem noutra localidade.
Bem mais tarde aprendi que ficcionista não é apenas quem escreve literatura. O ficcionista tem uma conduta perante a escrita que, em sentido mais amplo, é uma atitude diante da própria vida. Se o poeta necessita de clareza, concisão e sensibilidade, o ficcionista precisa disso tudo e mais: de vivência.
Por acaso, eu tinha uma boa história para contar. Imaginei minha vizinha como se fosse uma devotada servidora do banco, casada com outro colega nosso. Então, usando nomes fictícios, apenas relatei o ocorrido e esclareci que ambos, a partir da segunda-feira, estariam licenciados para se recuperarem do susto e cuidarem dos primeiros dias de seus inocentes filhotes, quase órfãos de mãe ainda no ninho.
Sempre soube que olho de banqueiro só lacrimeja se for de vidro, mas os corretores da prova (bancários, como eu) se deram por satisfeitos. E, por acaso, nem precisei voltar para o interior de Alagoas. Mas isso é outra história.