Nunca tive o sono leve. Pelo contrário, trabalhando duro desde moço, batia na cama e só acordava no dia seguinte. Hoje, aos 86 anos, acordo ainda no breu pensando no que me resta por fazer. Velho não deve perder tempo.
Aprendi que a morte não chega na velhice. Vem em prestações. Morri um pouco quando fiquei viúvo pela primeira vez, aos 50 anos e, pela segunda, aos 70. Minhas ex-mulheres partiram cedo, levando pedaços de mim.
O que sobrou seguiu em frente. Mas já não faço planos para daqui a um, dois anos. Se alguém me convida para viajar no próximo verão, disfarço ou invento uma desculpa qualquer e me pergunto: vai dar?
Não sou de me queixar de nada, a não ser ter que aturar certas figuras públicas no último estágio evolutivo da imbecilidade humana. Uso meu tempo lendo bons livros, escrevendo memórias, ouvindo músicas, vendo futebol e telejornais.
Antes da pandemia, costumava me reunir bem cedo com uns caras divertidos e desocupados como eu, das cinco às sete, no que chamamos de Senadinho – banca de revistas à beira-mar onde se debate desde a bunda de quem passa até as grandes questões nacionais.
Veio o coronavírus e tive que me resguardar. Soube que os nobres "senadores" já voltaram do recesso. Com a paralisação de minhas caminhadas matinais, joelhos e tornozelos abriram falência, em conluio com a coluna lombar, dificultando-me até aparar as unhas dos pés ou amarrar o cadarço do tênis.
Em abril, fui surpreendido por Doralice, preocupada com a possibilidade de ser substituída e alistar-se no indecente exército de 15 milhões de desempregados deste País:
– Seu Pinheiro, por tudo que é mais sagrado, não me demita!
– O que houve, menina?
– Eu não queria, mas...
– Aconteceu o quê?
– Tô grávida...
– Como foi isso?
– Vai dizer que o senhor não lembra mais como isso acontece?
– Não é isso...
– Meu namorado... Anda num fogo medonho, mesmo quando chego em casa morta de cansada.
– E agora?
– Agora, tô eu aqui sem saber o que vai ser de mim.
– Por quê o medo?
– Sei lá! Como vou cuidar do senhor e da criança?
– Tem jeito para tudo... Menos para morte.
Falei da boca para fora para aquietá-la. De fato, tínhamos um problema. As dores nas minhas articulações e na coluna lombar só aumentavam e minha dependência, também. O que ela fará quando tiver que escolher entre me ajudar a tomar meus remédios ou oferecer o peito à criança?
O namorado dela não conseguia emprego. Tinha antecedentes criminais. Tocava uma barraca de milho cozido e coco verde que ficou fechada por mais de seis meses por causa da pandemia. E mesmo com a reabertura na virada do ano, as vendas despencaram.
Apesar do risco, optei por ficar com Doralice. Cancelei o contrato de experiência e assinei sua carteira profissional por prazo indeterminado. Coincidiu que o namorado, na semana seguinte, sofreu uma denúncia anônima e está preso, cumprindo dura pena por tráfico internacional de drogas. Existe, pois, razoável chance de ele nem chegar a conhecer o filho.
Como nunca dei espaço a meus familiares para que se metam em minha vida, e sensibilizado com o completo desamparo de Doralice, ofereci a ela a possibilidade de prestar seus serviços morando em meu apartamento – com todo respeito, óbvio. Disse-lhe até que fazia questão, mais adiante e havendo tempo, de passear com o carrinho pelas calçadas do bairro com “meu” afilhado, o que vai me dar a sensação de eternidade e poder na área.
Ela compreendeu perfeitamente. Nisso, bateu uma vontade danada de abrir uma garrafa de vinho e ouvir João Gilberto cantando Caymmi:
"Doralice, eu bem que te disse
Amar é tolice, é bobagem, ilusão..."
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Ilustração: UMOR |
Três meses de fisioterapia depois, ando dormindo feito criança e, semana passada, com a ajuda dela, voltei às caminhadas matinais. Não vou negar, morro de rir só imaginando o que vai na cabeça dos curiosos, inclusive meus nobres colegas “senadores”, quando passamos de braços dados: eu, a disfarçar minhas dores e Doralice, com um barrigão daqueles.