Depois de várias semanas na roça sem rede wi-fi, Serjão voltava à capital, onde responderia a algumas mensagens recebidas. Minutos depois, um velho amigo retorna: “... Que maravilha receber sinais de vida seus! Espero continuar merecendo um quarto do carinho que lhe dedico”.
Serjão retoma a conversa dizendo que, dentre as qualidades do amigo, admirava a concisão, a ironia e a rapidez de suas respostas. Que persegue isso, mas nem sempre alcança. E que aquela curta e singela mensagem deixa-o apreensivo.
Resolve interpretá-la melhor tal como se examinam as cores na Carta de Munsell, ferramenta utilizada na agronomia para identificar tons de solo comparando amostras. Queria posicionar-se pelo menos uma oitava acima na escala de avaliação do amigo.
Adquire então um invento de um baiano tido como revolucionário, com o formato de um acarajé, utilizado para decodificar textos das mais inusitadas origens. Dizem que a Pedra de Roseta, descoberta por Champollion, é fichinha perto dele!
O troço possui um corte longitudinal parecido com o das maquinetas de cartões, mas com leitor de código de barras, onde é inserida a mensagem. Piscam algumas luzinhas e escutam-se sons do meteorismo intestinal enquanto a leitura é processada. O resultado sai impresso num guardanapo, em esmerada caligrafia de contador das antigas, bico-de-pena à base de dendê.
A mensagem do amigo foi assim decodificada: “Ô, seu fresco, cadê você, que nunca mais deu notícias?” Passado o susto, repete o processo e recebe outro tiro: “Você tá vivo, seu esculhambado?” Pensou: vai que é defeito de fabricação. E tenta mais uma vez, o que só ratifica a sentença: “Ô corno, fi-de-rapariga, onde tu andas?"
Com o cabeção latejando de tanta cerveja na noite anterior, Serjão mastiga e engole o invento como se fosse o último tira-gosto do boteco, antes que o dendê reutilizado engordurasse a imagem nada boa que tinha de si mesmo.
Típico caso de autoestima no solado dos sapatos, diriam os especialistas em caraminholas, ele dá razão ao amigo conciso, mordaz e veloz nas respostas. É desleixado mesmo! Acha até que merece ser adjetivado de forma mais cruel, impiedosa.
Certo é que, vez por outra, Serjão é tomado por períodos estranhos, como se fosse pareado via bluetooth à tábua de marés da praia das Dunas, em Massarandupió, única oficialmente reservada à prática de naturismo na Bahia, seja lá o que isso signifique.
Tem semanas que jura que o universo está contra ele e submerge. Noutras, põe-se contra o mundo inteiro com a coragem e a esperança daquele rebelde chinês que encarou tanques de guerra nos protestos na Praça da Paz Celestial, em Pequim, em 1989.
Tal como as correntes marítimas, Serjão oscila quando é lua cheia ou nova. Ultimamente, porém, anda seguro de que o seu destino é viver na roça, onde os bichos e as plantas lhe parecem mais íntegros e racionais do que as pessoas que vê por aí. O que mais quer agora é convencer sua musa inspiradora a se aposentar e juntarem os travesseiros no meio do mato.
Ele já havia me contado que, desde moleque, ostenta o título de pioneiro do bullying. A primeira criatura a zoar com suas sardas foi a professora do primeiro ano: “Nossa, como você é bonitinho... Parece um ovinho de tico-tico...”
Pronto! Ficou tácito que todos poderiam bulir com seus predicados estéticos, inclusive um par de orelhas que se tivesse brotado nas costas faria dele um anjo.
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Ilustração: álbum de família. |
“Garnisé”, “Cagada de mosca”, “Banana madura” e “Enferrujado”, foram alguns dos apelidos que teve que aturar até o fim do primeiro grau. Aliás, a professora do último ano ainda tentou aliviar chamando-o de "Enferrujadinho". Dona de divinas tetas, ele até se animou achando que ela queria conferir a pinta do ovinho de tico-tico. Não deu.
Contou também que aquilo que aconteceu na escola nem foi o pior. Em São Paulo, no bairro operário onde morava, as tecelagens cediam casas para trabalhadores como seu pai, a maioria imigrantes espanhóis, portugueses e italianos. Acabavam todos se encontrando na mercearia, na farmácia, na igreja, no mercado ou na festa de rua.
Quando dava de cara com outro moleque, conseguia inibir a provocação franzindo a testa, as sobrancelhas e cerrando os punhos. Terríveis eram os encontros fortuitos, em locais públicos, como aconteceu certa vez numa sorveteria, quando ouviu de um amiguinho: “Oi, Garnisé, tudo bem?”
Quis quebrar a cabeça dele com o boleador de sorvetes ou a pedra que segurava a porta, tanto mais depois que sua mãe, diante de todo mundo, achou de indagar: “Nossa, filho, esse é seu apelido?”
Quase aos prantos, tenta responder de forma objetiva e contundente, mas o que sai só macula a sua fama de menino sabido, bom de briga: “E o apelido dele, sabe qual é? Cocô...”
Aos 66 anos, entre livros, bichos e plantas, Serjão não precisa mais ser conciso, rápido e mordaz em suas respostas. Vive um dia por dia como escolheu viver, nada mais. Feito um garnisé no tempo dos quintais.