GARATUJAS DE BOTECO 
Hayton Rocha
O coronel Charles Bronson Cunha era daqueles clientes que faziam gerente de banco suar frio em pleno meio-dia, sol a pino, colarinho sufocante e sapatos apertando os joanetes. Em véspera de renovar RDB, o gerente se sentia feito cafetina com contas a pagar: sorriso ensaiado, adulando e oferecendo vantagem além da conta — interessado mesmo era no volume do dinheiro que ficaria no cofre, não na fidelidade do freguês.
Cebecê tinha quase todo o cardápio da agência: aplicações de renda fixa e variável, cartões, cheque especial, financiamentos, seguros, títulos de capitalização e até produtos que nem o gerente entendia, mas que engrossavam o caldo do resultado mensal. Tratado, portanto, como príncipe de cofre cheio, com tapete vermelho estendido e cafezinho servido como se fosse champanhe.
Só que, de quinta a domingo, cultivava um hábito mais valioso que qualquer aplicação: a farra. Religiosamente, estacionava a camioneta na porta do mesmo boteco, já tombado pelo peso das histórias. Ali reinava: entornava cerveja como petróleo recém-descoberto, multiplicava amigos como cupim em guarda-roupa velho e, no auge da bebedeira, virava filantropo de balcão. Ninguém pagava a conta. Só ele — fosse capanga, colega, desafeto arrependido ou parasita de ocasião.
O roteiro era sempre o mesmo. Perto da saideira, embalado pela voz cavernosa de um cover de Nelson Gonçalves em “Matriz ou Filial”, já sem distinguir banheiro masculino de feminino, pedia a conta. Sacava o talão, rabiscava o valor em língua indecifrável e arrematava com uma garatuja imensa, terminada em três pontos. Segundo ele, sinal de uma irmandade famosa “nos quatro cantos do mundo”.
Na segunda-feira, o dono do bar depositava o cheque. Na terça, o banco devolvia: “assinatura divergente”. Não era saldo — Cebecê tinha mais dinheiro que o ofertório da paróquia em safra boa. O problema era outro: a cada porre, nascia uma assinatura nova, sempre diferente da anterior.
Cheio de dedos, o dono do bar batia à porta para trocar o cheque. O coronel, ainda de ressaca, pedia desculpas, tomava um Engov, oferecia café e emitia outro, mais parecido com os arquivos do banco. E a vida seguia… até quinta-feira, quando começava novo capítulo da novela etílica.
Cansado da comédia, Cebecê resolveu pôr fim à humilhação. Invadiu o aquário envidraçado do gerente e disparou:
– Venha cá, tô devendo alguma prestação?
– De jeito nenhum, coronel!
– Tem saldo na minha conta?
– Um dos maiores...
– Então sou ou não sou bom cliente?
– O melhor de todos! – respondeu o gerente, quase em continência.
O coronel ajeitou o bigodão:
– Quando abri a conta, não me fizeram assinar umas quatro vezes naquele cartãozinho?
– Sim, senhor, normas do Banco Central.
– Pois essa norma tá me tratando como caloteiro!
– Não é isso, coronel. Seus cheques só voltam quando a assinatura não confere.
– Então me arrume outro cartão.
O gerente obedeceu.
– E agora?
– Agora o senhor vem comigo até o boteco. Depois da terceira cerveja, assino uma vez. Na quinta, assino de novo. Na sétima, com uma dose de rum, assino outra. Assim, qualquer cheque meu vai bater com o arquivo de vocês, seja segunda, sexta ou domingo de madrugada.
O gerente ainda hesitou, mas a ameaça final encerrou a discussão:
– Se devolver mais um cheque meu, mudo de banco!
E assim nasceu o sistema de conferência mais criativo da região: três assinaturas calibradas por bebida e homologadas pelo fígado. O Banco Central pode até não reconhecer a prática. Mas os botecos — principais interessados —, sim.
O problema desapareceu. O coronel seguiu brindando com sua corte, o dono do bar sossegou e o gerente descobriu que fé em assinaturas vale tanto quanto fé em santos de gesso — tudo depende da quantidade de álcool nas veias.
Entre garatujas e goles, Cebecê provava que a vida, tal qual sua assinatura, nunca confere de primeira: precisa de improviso, repetição e um pouco de incerteza para parecer verdadeira. Afinal, como dizia Humphrey Bogart em “Casablanca”, todo homem está pelo menos três “bramas” abaixo do normal.
É na próxima semana...








 
 
 
 
