outubro 22, 2025

Garatujas de boteco

GARATUJAS DE BOTECO 
Hayton Rocha


O coronel Charles Bronson Cunha era daqueles clientes que faziam gerente de banco suar frio em pleno meio-dia, sol a pino, colarinho sufocante e sapatos apertando os joanetes. Em véspera de renovar RDB, o gerente se sentia feito cafetina com contas a pagar: sorriso ensaiado, adulando e oferecendo vantagem além da conta — interessado mesmo era no volume do dinheiro que ficaria no cofre, não na fidelidade do freguês.

Cebecê tinha quase todo o cardápio da agência: aplicações de renda fixa e variável, cartões, cheque especial, financiamentos, seguros, títulos de capitalização e até produtos que nem o gerente entendia, mas que engrossavam o caldo do resultado mensal. Tratado, portanto, como príncipe de cofre cheio, com tapete vermelho estendido e cafezinho servido como se fosse champanhe.

Só que, de quinta a domingo, cultivava um hábito mais valioso que qualquer aplicação: a farra. Religiosamente, estacionava a camioneta na porta do mesmo boteco, já tombado pelo peso das histórias. Ali reinava: entornava cerveja como petróleo recém-descoberto, multiplicava amigos como cupim em guarda-roupa velho e, no auge da bebedeira, virava filantropo de balcão. Ninguém pagava a conta. Só ele — fosse capanga, colega, desafeto arrependido ou parasita de ocasião.



O roteiro era sempre o mesmo. Perto da saideira, embalado pela voz cavernosa de um cover de Nelson Gonçalves em “Matriz ou Filial”, já sem distinguir banheiro masculino de feminino, pedia a conta. Sacava o talão, rabiscava o valor em língua indecifrável e arrematava com uma garatuja imensa, terminada em três pontos. Segundo ele, sinal de uma irmandade famosa “nos quatro cantos do mundo”.

Na segunda-feira, o dono do bar depositava o cheque. Na terça, o banco devolvia: “assinatura divergente”. Não era saldo — Cebecê tinha mais dinheiro que o ofertório da paróquia em safra boa. O problema era outro: a cada porre, nascia uma assinatura nova, sempre diferente da anterior.

Cheio de dedos, o dono do bar batia à porta para trocar o cheque. O coronel, ainda de ressaca, pedia desculpas, tomava um Engov, oferecia café e emitia outro, mais parecido com os arquivos do banco. E a vida seguia… até quinta-feira, quando começava novo capítulo da novela etílica.

Cansado da comédia, Cebecê resolveu pôr fim à humilhação. Invadiu o aquário envidraçado do gerente e disparou:
– Venha cá, tô devendo alguma prestação?
– De jeito nenhum, coronel!
– Tem saldo na minha conta?
– Um dos maiores...
– Então sou ou não sou bom cliente?
– O melhor de todos! – respondeu o gerente, quase em continência.

O coronel ajeitou o bigodão:
– Quando abri a conta, não me fizeram assinar umas quatro vezes naquele cartãozinho?
– Sim, senhor, normas do Banco Central.
– Pois essa norma tá me tratando como caloteiro!
– Não é isso, coronel. Seus cheques só voltam quando a assinatura não confere.
– Então me arrume outro cartão.

O gerente obedeceu.
– E agora?
– Agora o senhor vem comigo até o boteco. Depois da terceira cerveja, assino uma vez. Na quinta, assino de novo. Na sétima, com uma dose de rum, assino outra. Assim, qualquer cheque meu vai bater com o arquivo de vocês, seja segunda, sexta ou domingo de madrugada.

O gerente ainda hesitou, mas a ameaça final encerrou a discussão:
– Se devolver mais um cheque meu, mudo de banco!

E assim nasceu o sistema de conferência mais criativo da região: três assinaturas calibradas por bebida e homologadas pelo fígado. O Banco Central pode até não reconhecer a prática. Mas os botecos — principais interessados —, sim.

O problema desapareceu. O coronel seguiu brindando com sua corte, o dono do bar sossegou e o gerente descobriu que fé em assinaturas vale tanto quanto fé em santos de gesso — tudo depende da quantidade de álcool nas veias.

Entre garatujas e goles, Cebecê provava que a vida, tal qual sua assinatura, nunca confere de primeira: precisa de improviso, repetição e um pouco de incerteza para parecer verdadeira. Afinal, como dizia Humphrey Bogart em “Casablanca”, todo homem está pelo menos três “bramas” abaixo do normal.


                    É na próxima semana...




outubro 15, 2025

Sangue no quintal



 

Ilustração: Uilson Morais (Umor)


SANGUE NO QUINTAL 

Hayton Rocha


Dia desses, meu amigo Avelar me convidou para um sábado no Porto Gurgueia, sua chácara em Sobradinho, impondo um pedágio inusitado: eu deveria preparar um guisado de duas galinhas que ele acabara de abater, acompanhado de feijão verde e purê de batatas.


Aceitei a contrapartida, talvez embalado pela bebida que descia goela abaixo nas preliminares com Manoel, Nassib e Rodrigo. No lugar da clássica galinha ao molho pardo, servi uma versão “sem sangue”: vinho tinto e cebola torrada substituíram o ritual da cabidela, emprestando cor e sabor ao molho sem necessidade de qualquer sacrifício vampiresco. Bastou refogar a galinha com alho, cebola picada, pimentão e tomate, cozinhar em água, fritar uma cebola grande até quase virar carvão, misturar vinho e engrossar com farinha de milho. O resultado surpreendeu.


Na boquinha da noite, depois da soneca no alpendre e entre goles de café preto, Avelar quis saber a origem da minha “aversão” ao molho pardo. Expliquei que não havia aversão — apenas experimentara um jeito alternativo de cozinhar. Porém, atiçado pela curiosidade dele, lembrei-me de uma cena que talvez explique tudo.


Voltei a 1968, em União dos Palmares, Zona da Mata alagoana. Revi o menino que cuidava de galinhas como quem cuida de irmãs menores. Até o dia em que a própria mãe, com um punhado de milho e um tititi disfarçado de carinho, atraiu três delas para dentro da cozinha. Libertou as menores e fechou a porta. A gordinha ficou.


Com o pé esquerdo, pisou-lhe as pernas contra o chão. A mão direita empunhava uma faca afiada. Um golpe certeiro no pescoço. A carótida rompida. O sangue jorrando na vasilha. O menino, paralisado, registrou cada detalhe. A ave debatendo-se. O líquido vermelho enchendo o recipiente. A vida escorrendo até o silêncio.


Pior foi perceber que a assassina era sua mãe. A mesma que rezava ajoelhada na Matriz de Santa Maria Madalena, aos domingos, pela salvação das almas — menos das aves do quintal.


O corpo ainda quente foi mergulhado em água fervendo dentro de um caldeirão. As penas arrancadas sem dó. A penugem sapecada na boca do fogão. Depois, cortada em pedaços: asas, coxas, peito, miúdos. Tudo temperado com alho, cominho, pimenta, sal e vinagre. Um preparo que, para o menino, parecia uma tentativa vã de curar ferimentos que já não tinham solução.


– E o sangue? Vai jogar no ralo da pia? – perguntou ele, ainda chocado com a cena.
– Saia daí! Vá brincar no quintal! – decretou a mãe.


No galinheiro, o menino esperava encontrar revolta. Imaginava que as sobreviventes iniciariam uma greve de fome, rejeitando milho e restos de comida em protesto pelo sacrifício da amiga. Mas não. Lá estavam todas conformadas, submissas à rotina miúda: beber água e olhar pro céu, ciscar, tolerar o estupro do galo sem quaisquer preliminares. Para o menino, parecia apenas um gesto de gentileza masculina para protegê-las da chuva e do vento frio à sombra. Não sabia que gentileza nenhuma havia naqueles esporões ameaçando cangotes.


Na mesa, ninguém estranhou o cardápio: “galinha à cabidela”, eufemismo para disfarçar a crueldade dos esfomeados.
– Eu quero uma coxa! – apressou-se a irmã mais velha.
– A titela é minha! – gritou o irmão do meio.
– Quero o coração e a moela! – exigiu outro.
– Pelo visto, só vai sobrar ciscador, grade e sobrecu... – brincou o pai, sentado à cabeceira.


O menino, engasgado com a própria tristeza, não conseguiu achar graça. O mundo ao redor parecia normal: a família de barriga cheia, as demais galinhas vivas indiferentes ao massacre, a mãe satisfeita com seu prato. “Tudo vale a pena se a ração não for pequena”, pareciam cacarejar, mesmo sem nunca ter lido Pessoa.


Um ano antes, em 1967, o menino havia lido que a democracia sangrara no céu do Nordeste com a queda do avião do presidente Castelo Branco. Agora, ele sangrava em silêncio no quintal de União dos Palmares. A ditadura engrossava o caldo tanto na panela de guisado quanto nos porões do regime.


Um mês mais tarde, a peste aviária — “murrinha” — dizimou todo o plantel, pintinhos incluídos. Houve quem dissesse que foi praga rogada pelo menino inconformado. Calúnia, claro. Mas talvez tenha ocorrido uma súplica inocente aos deuses dos quintais: que se fizesse justiça onde a solidariedade falhara, que se calasse para sempre o galinheiro acovardado e cúmplice.


Avelar, ouvindo a história, sentenciou que aquilo só podia ser verdade. Eu, até hoje, não digo que sim nem que não. Mas desconfio de que foi naquela manhã de 1968 que aprendi a detestar a ideia de cozinhar uma criatura no próprio sangue.


Por isso, se tiver que botar novamente uma galinha na panela — faz tempo que não faço isso —, optarei de novo pelo vinho tinto, seco. Um Cabernet Sauvignon, pelo menos, não exige sacrifício: só aquece e consola.



Vem aí...





outubro 08, 2025

O grão que engole a floresta

O GRÃO QUE ENGOLE A FLORESTA

Hayton Rocha


Navios já não precisam do mar. Ancoram em terminais que surgem no meio do nada, onde antes só havia floresta ou o mugido de boi faminto. Ali, o vazio virou mar de verde oleaginoso. A soja — grão anônimo, sem a nobreza dourada do trigo que vira pão nem a poesia da uva que se entrega em vinho — ergueu-se como soberana invisível da economia brasileira. Uma rainha discreta, mas implacável, capaz de mover exércitos, redesenhar mapas e trocar árvores por cifras.



Dela se faz óleo, leite, tofu, carne vegetal, ração para bois e peixes, cosméticos e até biodiesel para movimentar os caminhões que a transportam. Um grão que, triturado, vira tudo, menos mata virgem. É a semente que dá lucro, mas arranca raízes sem piedade.

 

O mundo inteiro mastiga soja sem notar. O frango no prato chinês, a ração do suíno europeu, o hambúrguer vegano embalado em discurso de salvação planetária — todos temperados com a febre que se espalha do Cerrado à Amazônia. Onde antes havia floresta, agora há campos verdes que se multiplicam feito metástase. Cada safra é anunciada como recorde — e a próxima, ninguém duvida, também será.

 

A fronteira agrícola se comporta como exército em marcha lenta: começou pelo Sul, ocupou o Centro-Oeste, parte do Nordeste, e agora se insinua pelo coração úmido da Amazônia. Cada ponte inaugurada, cada estrada pavimentada, cada porto em projeto é uma trombeta anunciando a chegada da tropa. A BR-319, que corta o Amazonas como faca esquecida na manteiga, é o próximo alvo. Agricultores a veem como promessa de frete barato. Ambientalistas, como convite ao apocalipse.

 

A soja já dança no salão principal da economia, estrela maior do agronegócio — este, sim, responsável por um quarto do PIB —, dama imponente do banquete brasileiro. Como toda dama de vestido longo, ela exige espaço, luxo e palmas. O pacto que deveria conter seus excessos — a moratória da soja — tropeça entre suspeitas de cartel e promessas vazias. A União Europeia tenta fechar a porta, os estados escancaram janelas, e a Justiça assiste, feito árbitro de futebol acuado em pelada na favela.

 

Há quem diga que é simples: basta cumprir a lei, que já exige preservar 80% da vegetação nativa na Amazônia. Mas grileiro nunca trabalha com simplicidade. Derruba árvores na esperança de que, amanhã ou depois, a regra mude, a fiscalização cochile, a floresta seja esquecida. O crime, aqui, é investimento seguro: cheque pós-datado. Desmata-se hoje para colher fartura de amanhãs.

 

E a terra, inflacionada, dobra de valor em poucos anos. O mesmo mecanismo que nos anos 1970 inflou preços urbanos e empurrou os mais pobres para a periferia agora aplica cartão amarelo à floresta. A especulação é a mesma, só mudaram os cenários: ontem, arranha-céus de concreto; hoje, silos metálicos.

 

Cientistas, com seus gráficos e satélites, alertam: se metade da Amazônia tombar, a temperatura do planeta sobe até 2,5 graus, as chuvas desaparecem e os rios minguam. O Brasil, dono de 80% de energia hídrica, pode ficar a seco. O planeta, sedento. E tudo isso com base em cálculos otimistas. A verdade, repetida em seminários, é que a Amazônia não é apenas nossa: é o refrigério da alma da Terra.

 

Mas vai convencer quem vê soja virar dólar mais depressa que árvore vira chuva!

 

Enquanto isso, Belém lustra os salões para a COP-30. Virá gente do mundo inteiro, mês que vem, brindar com coquetéis e discursos sobre salvar a floresta. Ironia tropical: a mesma cidade que servirá de púlpito verde já ensaia os bastidores para novos portos de grãos. Belém, entre o altar e o balcão, entre o sermão e a soja.

 

E eu aqui, lembrando de minha santa mãe, que na próxima semana completa 87 outubros. Ela, que sempre tinha uma sentença terrível na ponta da língua quando a vida insistia em me ensinar pela dor: “Eu não disse?”. Imagino-a, meio século à frente, balançando a cabeça diante de um planeta quente, rios secos e tataranetos migrando em busca de água potável. Com um sorriso irônico, dirá de novo: “Eu não disse?”.

 

Melhor acreditar que nada disso faz sentido, que derrubar árvores é só o preço do progresso. Afinal, daqui a cinquenta anos eu não estarei aqui. Você, que me lê, talvez esteja.

 

Se estiver, não se surpreenda: o “eu não disse?!” da mãe-natureza vai ecoar mais alto que qualquer trator — inclusive movido a biodiesel.

outubro 01, 2025

Fósseis do presente



 

FÓSSEIS DO PRESENTE 
Hayton Rocha


Fiquei pensativo, outro dia, com a notícia de que fotos, moedas e um exemplar amarelado de A Tribuna de Santos foram encontrados dentro de uma cápsula do tempo, enterrada em 1921 no quartel de Quitaúna, em Osasco. Um presente do passado para o futuro, lacrado diante de presidentes, marechais e engenheiros militares. Cento e quatro anos depois, um capitão de 33 anos abriu a caixa e encontrou, além do cheiro de mofo, a sensação de folhear a alma de um país que ainda engatinhava no século XX.

Imagino o susto das autoridades de 1921 se pudessem bisbilhotar 2025: caixas de supermercado sem humanos, carros que andam sozinhos, gente pedindo comida com um clique no celular e, mesmo assim, brigando nas redes sociais para provar quem é mais patriota. Aposto que voltariam correndo para carruagens puxadas a cavalo, cuidando dos bolsos para não perder as moedas de réis.

A cápsula trazia jornais noticiando a Primeira Guerra, tumultos na Câmara, crises em Portugal e a visita de um ministro da Guerra a Santos. Um século depois, só mudaram nomes, bigodes e trajes: seguimos colecionando crises e guerras, com a pontualidade das queimadas no Cerrado.

Então me pego especulando: o que eu deixaria para ser encontrado daqui a 104 anos?

Talvez um pendrive — só para arrancar gargalhadas de quem, em 2129, já terá hologramas na retina. Ou uma carteira de couro, para que arqueólogos do futuro se perguntem por que precisávamos de plástico com chip para pagar o cafezinho. Ou um controle remoto, esse fóssil de sofá, lembrança de um tempo em que a humanidade travava batalhas épicas contra almofadas em busca de outro pedaço de plástico com pilhas.

Quem sabe uma barra de chocolate? Mas aí seria crueldade: se os especialistas de hoje estiverem certos, em 2030 já teremos entrado na era da escassez de cacau. Imagino a cena: um tataraneto guloso abrindo o embrulho e se perguntando se aquele pó marrom era doce ou apenas mais uma pegadinha dos antepassados.

Enquanto um descendente lambe o papel vazio, outros herdarão o silêncio da caligrafia — essa que já foi arte de freiras com palmatórias e de contadores nos livros-caixa, hoje sobrevive em convites de casamento. As chaves metálicas, que tilintavam como sinos de liberdade, deram lugar a digitais e senhas. Senhas que também caminham para a extinção, substituídas por olhos e rostos escaneados.

E os shoppings? Esses santuários do consumo logo virarão policlínicas, escritórios de coworking e playgrounds para idosos. O caixa de fast-food, antes malabarista de bandeja e troco, já foi trocado por telas de toque que nunca oferecem o brinde de um sorriso.

Até a embreagem, madrasta dos motoristas iniciantes que fazia o carro se engasgar na ladeira, entrou em contagem regressiva. Veículos automáticos prometem enterrar de vez a marcha manual — e, com ela, a desculpa de que o carro “morreu” justamente na hora de levar a namorada para casa às dez da noite.

Talvez eu devesse enterrar também um caderno com recortes de discussões nas redes sociais: gente batendo boca como no recreio da escola, cada um convencido de que a bola de verdade é a sua. Material perfeito para que historiadores concluam que a Terceira Guerra Mundial não aconteceu por falta de munição, mas por excesso de verborragia e falta de respeito à opinião alheia.

Deixaria ainda um celular com 1234 aplicativos inúteis, para que em 2129 descubram que já fomos escravos de alarmes e notificações — e que até para beber água era preciso um deles nos avisar.

Ou uma máscara de pano, daquelas de 2020, prova de que já vivemos tempos em que um vírus obrigou bilhões a se esconder atrás de um pedaço de tecido — enquanto muitos juravam que o fim da farra estava próximo.

No fundo, qualquer cápsula do tempo é uma confissão: a de que somos frágeis, passageiros, mas teimosos em deixar marcas. Uma foto esmaecida, uma cédula de vinte reais, uma manchete sobre a perda, na mesma semana, do traço de Jaguar e da pena de Luis Fernando Verissimo — tudo serve para gritar ao futuro: “estivemos aqui!”.

E talvez seja isso o que mais inquieta. Não importa se deixaremos uma máscara ou uma barra de chocolate: o que atravessa séculos não é o objeto, mas a mania de querer ser lembrado. Mania tão humana quanto inútil — já que a vida, essa gozadora incorrigível, passa os séculos apagando, com prazer, as nossas pegadas.

setembro 24, 2025

Cochilo da tarde

Ilustração: Uilson Morais (Umor)



COCHILO DA TARDE
Hayton Rocha


Sou de uma família de dorminhocos diurnos. Herdamos, uns mais, outros menos, a arte de pegar no sono logo após o almoço, como quem cumpre um ritual milenar. Exceto meu pai e um de meus irmãos, que já não estão entre nós, todos nos entregamos ao cochilo da tarde como devotos ajoelhados diante do altar.

 

Lá em casa, o costume era sagrado: levantava-se da mesa, escovava-se os dentes e pronto — em menos de cinco minutos já se estava navegando nos mares de Morfeu, por uns 45 minutos. Não havia telejornal da tarde para disputar com a rede ou o travesseiro.

 

Nunca foi preguiça, claro: era método. Talvez venha daí o gosto da família em contar histórias. Minha mãe, aos 86 anos — cujo cochilo vespertino passa de uma hora —, continua a nos embalar com casos de infância, quase sempre terminando com o olhar perdido no nada, como quem vasculha o que resta no próprio arquivo interno. O cochilo sempre foi a senha para soltar a imaginação.

 

A ciência, com sua mania de explicar obviedades, apenas confirmou depois o que já sabíamos por intuição: dormir no meio do dia não é vagabundagem, é investimento com bom retorno. Pesquisadores analisaram milhares de pessoas e concluíram que cochilar regularmente protege o cérebro contra a ferrugem do tempo — demência, diabetes, hipertensão. Minha mãe não sabia de nada disso, mas defendia o cochilo com argumento de especialista: “dorme que passa”.

 

A soneca tem efeitos que fariam inveja a qualquer laboratório farmacêutico: domina o estresse e evita acidentes. Os alemães, metódicos até para dormir, comprovaram que 45 minutos de descanso multiplicam por cinco a memória. A NASA, sempre preocupada em não deixar astronauta apertar botão errado no espaço, também estudou: 26 minutos de sono bastam para turbinar atenção.

 

Sou capaz de apostar que, se Armstrong fosse brasileiro e tivesse bem relaxado antes do pouso na Lua, teria descido assoviando o chorinho Carinhoso, de Pixinguinha, como quem celebra não só a conquista, mas também a boa soneca que viria mais adiante.

 

Em apenas 10 minutos, o cochilo reduz a adenosina, aquela molécula que nos deixa arrastando sandálias pela casa. Resultado: o mau humor desaparece quando a resiliência emocional toma assento. A pessoa acorda capaz até de suportar reunião com gente prolixa ou metida a saber de tudo.

 

Não à toa, para crianças a soneca é tão vital quanto o leite materno. Sem ela, o sistema nervoso se revolta e surgem birras dignas de espetáculo teatral. Estudantes, por sua vez, descobrem que cochilar é como trocar a bateria do celular: descarrega preocupações e recarrega a capacidade de aprender.

 

Claro que há limites. O ideal, dizem, é cochilar entre 13h e 15h, por 45 minutos. Mais que isso pode azedar o sono da noite e transformar o dorminhoco em zumbi — se bem que minha mãe discorda disso, segundo ela com pleno conhecimento de causa. Eu, por via das dúvidas, acrescentaria uma cláusula particular: “nunca abrir mão do cafezinho após o almoço”. Contraindicação dos cientistas, talvez, mas dogma no altar de meus afetos.

 

Porém há um detalhe que a ciência, com toda a sua estatística, não explica. O cochilo não é só sobre corpo e cérebro: é também sobre alma. É uma pausa litúrgica no meio do dia, como se a vida precisasse de dois goles de água fresca no intervalo entre o primeiro e o segundo tempo. Naquele silêncio, o relógio deixa de mandar, a rotina dá um refresco e a gente volta a ser apenas humano — passageiro, sonhador, vulnerável.

 

Eu mesmo, por muito tempo, desconfiei de que o hábito pudesse prejudicar o trabalho. Cortei o mal pela cepa, há pouco mais de uma década: me aposentei. Desde então sigo fiel aos ritos da infância. Como dizia minha mãe, “dorme que passa”. Passa mesmo: a agonia das urgências, o estresse, a ilusão de que somos indispensáveis.

 

Cochilar não é luxo, é resistência. É meu protesto contra a pressa desumana que está em todos os lugares e minha reconciliação diária com o tempo, que teima em querer escapulir por entre os dedos. 

 

Porque enquanto houver gente dormindo no meio do dia, haverá quem acredite que a vida renasce nessas pequenas pausas — e que até os santos, quando ninguém vê, tiram seu cochilo da tarde entre um milagre e outro. 

setembro 17, 2025

Selva candanga


SELVA CANDANGA 
Hayton Rocha

De volta a Brasília, não me espanta a notícia de que uma onça-pintada resolveu visitar um condomínio do Jardim Botânico. O flagrante ocorreu por volta das sete da noite de sábado, 13 de setembro, quando uma senhora, 46 anos, descansava na varanda depois de uma tarde abafada e seca. O silêncio foi rompido pelo estalar pesado de folhas. Pensou ser vizinho, acendeu a lanterna e deu de cara com o felino. O coração galopou, mas a onça seguiu elegante, indiferente, como quem apenas confere se ainda resta espaço para caçar no seu habitat que o bicho-homem insiste em queimar a cada setembro.




No dia seguinte, lá estavam Batalhão Ambiental, Ibama e Ibram, marchando em fila como formigas alarmadas. Carros oficiais, coletes e rádios chiando. Prometia-se capturar a “invasora”, que só buscava apurar o que sobrou depois que incêndios expulsaram as presas da mata. Pouco adiantou o veterinário no telejornal Bom Dia DF lembrar que queimadas empurram os bichos para além de seus territórios. Diante do calor e da fumaça, qualquer criatura — inclusive nós — amplia o raio de caça em busca de proteína para seguir respirando.

Não me surpreendo. Brasília sempre foi um zoológico a céu aberto. Algumas espécies já fazem parte do cotidiano a ponto de ninguém mais reparar: emas atravessando o Eixo Monumental em fila de pedestres, capivaras ruminando nas margens do Lago Paranoá como se fossem vacas, e, sobretudo, certos animais de paletó e gravata — esses, sim, predadores de verdade, com instinto indomável.

As raposas ocupam o primeiro plano. Farejam verbas secretas dos orçamentos públicos como se fossem frangos assados esquecidos no plenário. Astutas e felpudas, multiplicam-se como lebres em ritmo acelerado, mordendo pelas beiradas até imobilizar o Congresso. Têm o talento de parecer discretas, mas deixam sempre o rastro de penas espalhadas pelo chão.

Outros, coitados, estão à beira da extinção. O tucano, de bico altissonante e cores chamativas, virou peça de museu. Restam exemplares isolados em estufas, sustentados por uma classe média que se evapora com a divergência ideológica exacerbada. Os sobreviventes batem asas sem rumo, mais próximos da arrogância do que do tucanismo intelectual de três décadas atrás. É triste ver um pássaro que já simbolizou falas iluminadas agora grasnar em sintonia com antigos discursos.

O leão, por sua vez, adaptou-se como se fosse nativo. Originário da África e da Ásia, encontrou aqui território fértil: crava garras e presas no couro de cada assalariado, abocanhando quase 1/3 dos salários em porções mensais e sucessivas. É o Imposto de Renda travestido de rei da selva, que ruge cada vez mais alto. A diferença é que, na savana, ele caça para sobreviver; por aqui, caça inclusive para custear privilégios classistas.

Já algumas antas, lentas e preguiçosas, instalaram-se por estas bandas desde os anos dourados. São vistas em antessalas de gabinetes, pastando memorandos e portarias com a serenidade de quem não tem predador natural. Se um dia alguém tentar reintroduzir vida inteligente nesse ecossistema, deverá ser recebido com o mesmo espanto de quem solta um macaco com um revólver carregado em meio a passeata ou procissão.

O jumento é outra tragédia. O Brasil anda exportando seu couro para virar ejiao, gelatina chinesa de uso milenar — embora sem eficácia comprovada — para tratar de anemia, impotência, insônia e vertigem. Resultado: o rebanho caiu mais de 60% em menos de uma década. Mas, em Brasília, os que restam são bípedes — esses, sim, ameaçam a população. Caminham em bandos, carregando balaios de promessas que nunca chegam ao destino.

E a lista não para: aranhas burocráticas tecem processos intermináveis, hienas sardônicas se banqueteiam do infortúnio alheio, répteis de olhar frio arrastam-se pelos corredores de estatais. À noite, piranhas maquiadas rondam os bares da Asa Sul; de dia, papagaios repetem frases prontas nas tribunas. Pavões desfilam diante das câmeras, em busca de 15 minutos de fama, enquanto morcegos sugam lentamente recursos de escolas e hospitais.

Por isso, não me espanta a notícia da onça-pintada que apareceu no Jardim Botânico. Ela apenas cumpre o destino dos bichos: sobreviver. O que me inquieta são os animais vestidos de alfaiataria e sapatos engraxados, prontos para posar em palanques e plenários enquanto devoram, com fome de anteontem, o futuro de quem os sustenta. Na selva candanga, o rugido mais perigoso não vem da mata, mas ecoa dos corredores, em forma de cochicho ou discurso ensaiado.

setembro 10, 2025

Cabeças à venda


CABEÇAS À VENDA

Hayton Rocha

 

Semana passada, um português chamado João Paulo Silva Oliveira resolveu brincar de inquisidor digital. Armado não de espada, mas de um celular e de uma conta no TikTok, ofereceu 500 euros por cada cabeça de brasileiro em território luso — decepada no pescoço, como se fossem melancias maduras à beira da estrada. Na cotação do euro, cerca de 3.200 reais a unidade. O vídeo sumiu, a conta também, mas o cheiro azedo de racismo ficou impregnado no ar, como peixe esquecido no balcão de uma padaria.


Foto reprodução/TikTok.



A padaria, aliás, foi palco indireto. O homem trabalhava numa em Aveiro. Quando a história explodiu, o estabelecimento correu para lavar as mãos, postando no Instagram sua bula de boas intenções: diversidade, inclusão, respeito. Como se fosse preciso explicar que não se paga recompensa por cabeças humanas desde Lampião e Maria Bonita, decapitados em 1938 na Grota do Angico, no Sertão sergipano, e exibidos como troféus em cortejo por cidades nordestinas até serem levados para Salvador, na Bahia.


Mas não é de hoje que pedras provocam tropeços na relação entre os dois lados do Atlântico. Em 2019, na Faculdade de Direito de Lisboa, expuseram um caixote de pedras de calçada com cartaz: “Grátis se for para atirar a um zuca”. A subdiretora da instituição, guardiã da legalidade, justificou como “liberdade de opinião, autocrítica, humor e sátira”. Traduzindo: a pedra virou piada acadêmica, e o alvo que se dane.


Esses episódios parecem isolados, mas possuem raízes mais profundas. A história luso-brasileira sempre oscilou entre afagos e tapas. E quando não voam pedras, voam caricaturas. De um lado, o “portuga” do bigode grosso e do lápis na orelha, ridicularizado em nossas piadas como padeiro de raciocínio curto. Do outro, o “zuca” barulhento, malandro, usurpador de vagas, retratado em terras lusas como hóspede inconveniente que nunca vai embora. É como se as duas nações, presas a velhos ressentimentos, trocassem farpas para esquecer que são feitas do mesmo barro, crias da mesma costela, com a poeira de impérios falidos.


No fundo, herdamos um ao outro — junto com as piadas, a língua, o tempero da saudade e até a sífilis, como brincaram Chico Buarque e Ruy Guerra em “Fado Tropical”. Portugal foi o padrinho severo, que nos batizou à força e depois partiu para cuidar da própria sobrevivência na Europa. O Brasil, o filho imberbe que ainda acha que seria potência se tivesse nascido de pais ingleses, como os americanos. O resultado? Uma relação mal resolvida, que mistura ironia, sarcasmo e sopapos.


É claro que a maioria dos portugueses não pensa como João Paulo, o carrasco do TikTok com nome de santo papa. A maioria acolhe, divide empregos e mesas, vende sonhos embalados em bacalhau. Também é verdade que muitos brasileiros chegam a Portugal carregando a caricatura do padeiro analfabeto e se surpreendem ao encontrar um europeu culto, poliglota, muito além da imagem guardada. O choque cultural é mútuo: um espera encontrar o amigo da esquina, o outro enxerga o invasor da rua.


Racismo ou xenofobia não se resolve com estatísticas, mas vale lembrar: são mais de meio milhão de brasileiros vivendo em Portugal. Raízes que atravessaram o mar e florescem em outra terra. Histórias que poderiam formar uma ponte sólida, mas que às vezes se transformam em muros baixos, fáceis de escalar com pedras na mão.


O problema é que sempre haverá quem prefira a pedra ao abraço. Para esses, é bom lembrar: se fosse para medir o preço de uma cabeça, o mercado estaria em crise. Algumas não valem nem o valor do boné que carregam. Outras, raras, não têm preço, porque guardam sonhos e utopias.


Talvez o que falte mesmo seja revisitar o “Fado Tropical”, que reconhece no brasileiro um sentimental justamente por carregar no sangue o lirismo lusitano. Lirismo que anda escondido debaixo de camadas de ódio gratuito e memes virulentos. O ideal, como canta Chico Buarque, é que este país se torne um imenso Portugal — não no sentido de se apequenar, mas de assumir que somos parentes condenados a conviver, como toda família que se desentende no almoço de domingo, mas volta para a mesa de jantar quando alguém pede perdão.


E que cada um proteja bem a sua cabeça sobre o pescoço. Vale mais inteira do que precificada em euros. Até porque, se fosse para vender, não haveria padaria no mundo capaz de dar conta da fila de trocas: cabeças ocas não faltam, de Brasília a Lisboa.


Melhor trocarmos pedras por versos, porque só a poesia impede que o sangue esfrie e coalhe.

O botão secreto

O BOTÃO SECRETO Hayton Rocha  A notícia de que Lúcia e Zé Alípio celebraram Bodas de Ouro sábado passado deixou feliz uma legião de amigos. ...