quarta-feira, 17 de junho de 2020

Sonho e ousadia

O menino passava horas observando a sombra de uma varinha enfiada no chão do quintal, a mudar de posição a cada instante, até o pôr-do-sol: 
— O que cê faz aí, hein? 
— Tô vendo o tempo passar, mãe...
No terreiro, além da cerca de avelós, do pé-de-manga e do galinheiro, havia o areal onde ele brincava com a irmã, inclusive nas noites de lua cheia, até ouvirem o chamado da mãe:
— Tá na hora de lavar os pés e beber água pra dormir! 

Chico e Gracita, 7 e 8 anos, últimos dos sete filhos de Januário e Mariquinha, nasceram no sítio Muriqui, à margem do riacho Jundiá, distante seis léguas da cidade de Pedregulho. O sustento da família vinha da pesca, da criação de umas poucas cabeças de gado e do plantio de mandioca, milho e feijão.

Pais e filhos nunca haviam pisado numa escola. Nem desconfiavam de que nossos antepassados já conheciam as horas do dia muito antes de o relógio ser inventado no século 14. 

Sim, por volta de 5.000 a.C., os babilônios descobriram que em certo momento do dia não havia sombra no chão, o que chamaram de meio-dia. Daí dividiram a trajetória da sombra em 12 partes: seis antes do meio-dia (manhã) e seis, depois (tarde). Inventaram o relógio de sol que Chico recriaria no quintal de casa.

Um impulso misterioso leva algumas mães que vivem na zona rural a, de uma hora para outra, querer mudar para cidades maiores, na esperança de que os filhos descubram o mundo, aprendam a ler, a fazer contas, a se libertar da escuridão e experimentar sensações diferentes.

Foi assim que Mariquinha, no final dos anos 50, surpreendeu o marido com uma decisão de bate-pronto, inesperada: 
— Januário, nem pense que vou deixar esse menino ser criado aqui como Deus criou batatas, feito os mais velhos. Nem ele nem a irmã dele.
— Oxente, cê tá ficando doida, é? O que é isso?
— Se quiser ficar, fique, mas vou levar os dois pra estudar em Pedregulho.
— E vão viver de quê?
— Não sei... A gente dá um jeito.

A contragosto do marido, que permaneceu no Muriqui na companhia do primogênito, Mariquinha partiu no fim do mês carregando consigo, além dos filhos mais novos, sonho e ousadia. 

Ao chegar em Pedregulho, cuidou de alugar uma pequena casa na periferia e de arranjar emprego para os três filhos mais velhos, agora os principais responsáveis pelo sustento da família. Resolveu também que Chico e Gracita seriam alfabetizados a partir do começo do ano letivo.

As crianças teriam aulas o dia todo na escola profissionalizante Lar de São Judas Tadeu, sendo a tarde reservada para o aprendizado de um ofício: alfaiataria, bordado, carpintaria, costura, serralharia. Gracita não se animou muito, mas Chico ainda pensou em se tornar alfaiate para cortar aquelas roupas alinhadas que os mais abastados ostentavam na igreja.

Determinados a retribuir o esforço feito pela mãe e pelos irmãos mais velhos, durante todo o ano letivo os dois irmãos alcançaram os primeiros lugares nas avaliações  mensais. Por isso, Chico foi escolhido orador da turma para a festa de formatura. Gracita, integrante do coral que se apresentaria na cerimônia, de última hora foi substituída pela filha de um político local sem que a professora lhe desse uma explicação razoável para o fato.

Ela chorou dois dias e duas noites em seu quarto, escondida da mãe. A professora buscou contornar dizendo que lhe faria “declamadora” porque falava alto. E lhe ensinaria um poema, a ser recitado no palco.

Gracita engoliu sem mastigar a frustração mas decorou o texto, versando sobre as dificuldades de uma órfã num mundo hostil do pós-guerra. No dia do evento, com a mãe toda orgulhosa e perfumada na primeira fila da plateia, a filha declamou de forma tão intensa que comoveu a todos. Talvez ainda amargasse o travo na garganta por não ter sido possível realizar o sonho, acalentado durante meses, de cantar no coral. 

No auditório, inquieta sem saber o que ocorria com a filha, que continuava a declamar cada verso de forma enfática, com olhos úmidos e punhos cerrados, Mariquinha levantou-se e gritou: 
— Chore não, minha filha, cê tem mãe viva. Chegue pra cá... Óia eu aqui, bem na sua frente!

Padre Ariano, diretor da escola, quase caiu da cadeira, mas logo prestou os esclarecimentos à mãe aflita. Padre, aliás, que tinha um carinho todo especial por Chico, o orador que agora subia ao palco para proferir seu discurso e para quem o diretor, com suas mãos brancas, enormes e peludas, preparara um texto que começava assim: “O tempo pode ser medido pelas batidas de um relógio ou pode ser medido pelas batidas do coração...” E fechava inspirado no poema “O trabalho”, de Bilac: 
“(...) É preciso trabalhar.
Não nasce a planta perfeita
E nem nasce o fruto maduro
Para se ter a colheita
É preciso semear (...)”

Para quem assistiu à cerimônia, estava nascendo em Pedregulho uma grande atriz, como Bibi Ferreira e Fernanda Montenegro, capaz de, mais adiante, ganhar o Oscar, da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos. 

Nascia também, no espírito investigativo e obstinado de Chico, quem sabe um futuro cientista ou escritor de renome na vanguarda intelectual do País. Mal aprendera a ler e já devorava os livros de Monteiro Lobato, fascinado com as artes de Emília, uma boneca de pano com sentimentos e ideias libertárias, e do Visconde de Sabugosa, um sábio sabugo de milho com atitudes e manias de gente grande.

Mariquinha levitava àquela altura. Tanto mais porque seu velho Januário, morto de saudade, já se desfazia do pequeno patrimônio rural e voltaria a juntar a família no Ano Novo. Justamente quando da transição do Brasil antigo para o Brasil moderno, de acordo com Joaquim Ferreira dos Santos, no livro Feliz 1958 - o ano que não devia terminar.

O relógio do tempo foi ligeiro. Chico e Gracita, hoje aposentados e vizinhos de porta na Capital — reclusos, à espera da vacina para o mal que travou o mundo que ora se reseta —, até conseguiram chegar à universidade, mas não seguiram em frente. 

Gracita casou com um comerciante, virou dona-de-casa e tem três filhos, que lhe deram seis netos. Chico também casou, tem dois filhos e quatro netos, mas foi além e "pulou a cerca": manteve uma relação por mais de 30 anos com uma instituição pública — às vezes, jazigo de sonhos — que lhe remunerava bem e em dia, garantindo-lhe uma vida sem sustos.

Passarinho em gaiola limpa pode ter alpiste, painço, água e passador, até cantar bonito, mas não aprende a voar. 

O menino agora passa horas contando as batidas de um antigo relógio alemão Schwarzwald na parede da sala de casa, ao lado de uma gravura em bico-de-pena de Clarice Lispector onde se lê no rodapé: "O que nos impede na maioria das vezes de ter o que queremos, de ser o que sonhamos, de fazer o que pensamos e aceitar com o coração é a ousadia que não cultivamos".

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Sim, hoje é sábado

Sim, hoje é sábado. Só por isso ainda sinto o cheiro de cera do chão das casas em que morei quando menino, a ver meu pai circulando entre salas e quartos, fazendo brilhar o cimento queimado e os mosaicos, a ouvir boleros do Trio Irakitan.

Vem à cabeça também o “gol da lua” nos campos enlameados de minha meninice. Na boca da noite, racha no zero-a-zero ou com vitória parcial por apenas um gol de diferença, alguém gritava: “quem fizer primeiro, ganha!”. Era um salve-se quem puder, um deus-nos-acuda sem sentido.

Lembro do trajeto de casa até o altar da capela do Convento Bom Pastor, no último sábado de 1976, ponto de partida de uma viagem sem volta nem fita de chegada rumo à Terra Prometida. Éramos dois sem parentes importantes nem dinheiro no banco, mas estava escrito nas estrelas que teríamos um só coração, bem repartido entre a esperança e a razão.

Ouço como se fosse agora mesmo o grito familiar a convocar à mesa da cozinha caras e bocas espalhadas pelos quatro cantos da velha casa. Filhos, noras, genros e netos davam conta em minutos do panelão de galinha guisada com purê de batatas (suando manteiga!), arroz, feijão verde e farofa. Nem lavavam as mãos, imagino.

Sim, hoje é sábado. Só por isso me transporto à Bahia de todos os cantos do começo dos anos 90, quando acordava cedo aos sábados pelo simples prazer de flanar entre os quiosques do mercado do Rio Vermelho, apalpando frutas, legumes e verduras. Voltava para casa ouvindo no toca-fitas mais um canto que surgia na cidade: 

“(...) A cor dessa cidade sou eu 
O canto dessa cidade é meu (...)”

Vem à cabeça também o retorno para Alagoas pouco tempo depois. Irmãos feito galos de briga na rinha de vôlei do quintal de Zé e Zu, na praia de Ipioca. Revejo todos eles na mesa de baralho, noite adentro, entre tragos e goles, a ouvir Nat King Cole amaciando a madrugada:
“(...) Cachito, cachito, cachito mio
Pedazo de cielo que Dios me dio (...)”

E como esquecer dos sábados na praia de Enseada de Corais (apesar dos ouriços-do-mar!), no Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco? Ou do jorro da bica de Sete Casuarinas, no que resta de Mata Atlântica na Estrada de Aldeia, onde as árvores dançam e cochicham entre si ao entardecer? 

Ouço ainda como se fosse agorinha, apesar de avesso à mistura insalubre de barulho, calor e multidão, a apaixonada confissão do menestrel de São Bento do Una, Alceu Valença, nos sábados em que o Galo da Madrugada acordava a cidade:
“(...) Voltei, Recife!
Foi a saudade que me trouxe pelo braço (...)” 

E como recordo do primeiro sábado, no Planalto Central, em que já não mais teria que retornar ao trabalho na semana seguinte. Devagarinho, ficaria nítido para mim que existem duas fases na vida, infância e aposentadoria, em que a felicidade pode estar na tela de um tablet (ou na ponta de um lápis sobre uma folha de papel em branco) onde quase tudo é possível.  

Claro, bem mais recente, lembro também dos sábados no “Quintas do Sol" ou “Porto Gurguéia”, nos arredores de Brasília, onde podia sentar com amigos e costurar retalhos do tecido de nossas vidas. O ensopado de carneiro ou o bacalhau ditava o tempero da prosa e o balanço da rede na varanda nos embalava de graça até o pôr-do-sol.

Sim, hoje é sábado. Só que chove lá fora, o dia está escuro, cheio de mistérios. E não tem graça alguma saber que na esquina um inimigo traiçoeiro ainda me obriga a ficar em casa. Nem vale a pena me fazer de valente, tentar encará-lo e a festa acabar antes da hora, sem direito nem mesmo à decência de um adeus.
   
Deve ser por isso que acordei mal-humorado e me pego aqui a puxar pela memória pedaços de sábados que ainda mexem dentro de mim, numa esperança doida de que essa chuva passe logo e o sol reapareça com toda a força, antes que eu me esqueça de tudo.

Não, o sábado não é uma ilusão, como disse Nélson Rodrigues um dia.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Que safadeza é essa?!

Em tempos de reuniões ministeriais cujo palavreado deixaria constrangida a inesquecível atriz Dercy Gonçalves (1907 — 2008), lembrei-me de duas repreensões que recebi por usar termos inaceitáveis para meu pai: sacanagem e merda, vejam só!

Um dia, chateado com um de meus irmãos por conta de uma bobagem qualquer, reclamei: “isso é sacanagem sua!” Meu pai ouviu, me olhou firme e foi direto ao ponto: “nunca mais diga isso, entendeu?” Noutra, apenas repeti o que já ouvira na rua ao criticar um vizinho: “olhe a merda que você fez!” De novo, ele chegou junto e decretou: “se falar isso outra vez, vai apanhar!”.

Lá em casa, sob pena de puxão de orelhas ou croque no cocuruto, o máximo admissível em termos correlatos a palavrões (ou “nomes feios”, no dizer dele) eram: cocô, bunda, pinta, pássaro, “piupiu” ou, no limite, safadeza. E não é bom nem pensar no que aconteceria se um dos filhos de Seu Agostinho pronunciasse um um robusto “taquiupariu!”

Talvez por isso nunca aceitei ser classificado por alguém pelo ultrajante “você é um merda!”. E até hoje não sei o que uma pessoa que achincalha outra dessa forma tem fora da cabeça, porque dentro, eu sei. E não cheira nada bem.

Quando cresci, claro, o repertório de vocábulos impróprios engrossou o caldo, mas só afloravam em situações especiais e em doses terapêuticas, quando era vítima de insulto, ofensa, pisão, queda ou topada. E quando meu time sofria um gol ou perdia um daqueles imperdoáveis. Apenas compreensivas interjeições, diriam meus colegas de verbos e verbas Marcelo Torres e Silas Braga Jr.

Fiz o que pude para não usar palavras peludas de grosso calibre no trabalho e ferir o decoro do ambiente profissional, mas confesso que não foi nada fácil. Evoluí ao conviver com pessoas sensatas que nunca recorriam a termos chulos para se expressarem e minhas recaídas andam cada vez mais raras depois que me aposentei. 

Semana passada, ao assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, o seu titular disse algumas palavras que me lembraram meu pai: “...A falta de educação produz vidas menos iluminadas, trabalhadores menos produtivos e um número limitado de pessoas capazes de pensar criativamente um país melhor e maior... A educação, mais que tudo, não pode ser capturada pela mediocridade, pela grosseria e por visões pré-iluministas do mundo”. 

O discurso também me remeteu a um episódio que me contaram há muito tempo. Teria ocorrido nos anos 90, envolvendo um ex-presidente do Banco do Brasil. Ao noticiar a nomeação de um diretor, o chefão lhe rasgava elogios numa reunião quando um dos presentes, em tom de pilhéria, comentou baixinho: "dá a ele..." 

Boca-suja incorrigível, o ex-dirigente ouviu e retrucou em cima do laço: "eu como você e ele, seu filho da...". A gargalhada de alguns pode ter desanuviado o ambiente, mas não escondeu o fato de que o estofo da cadeira presidencial era bem maior do que a bunda do ocupante de plantão. 


O mundo corporativo anda repleto de exemplos dessa natureza. É a partir da vulgaridade das relações internas entre seus líderes que grandes empresas perdem o respeito da sociedade. Mais que isso, quando esses líderes, fora das quatro paredes, se acovardam diante de ofensas à instituição que deveriam defender, ela vira manteigueira de pensão de beira de estrada, onde todos metem as mãos e se lambuzam à vontade.

Voltando à reunião ministerial que deve ter enrubescido Dercy Gonçalves, um certo participante — ilustre anônimo até pouco tempo e já despontando para o escrete das mediocridades históricas — não foi claro ao explicar seus objetivos. Disse ele: “O BNDES e a Caixa, que são nossos, a gente faz o que quer. Banco do Brasil a gente não consegue. Então, tem que vender essa porra logo!” 

Perdão, meu pai, mas tenho que perguntar a meus leitores: que safadeza (sacanagem ou merda) é essa?! O que ele quis dizer mesmo com “a gente faz o que quer"? A quem interessa concentrar ainda mais o mercado bancário? A que preço cogita vender a “jóia da Coroa” em meio à grave crise sanitária, política e econômica em que chafurda o País?

Certos palavrões são ditos apenas para esconder nas entrelinhas — com o rabo de fora, claro!  coisas bem mais feias que nos deixam de orelhas em pé. 

quarta-feira, 27 de maio de 2020

A voz da vida

Grandes espetáculos musicais vêm sendo cancelados ao redor do mundo por conta da pandemia que nos obriga a ficar em casa. Enquanto repensam como será a vida daqui para a frente, músicos e cantores promovem eventos virtuais online, o que ajuda na sanidade mental dos confinados, embora todos reconheçam que não é a mesma coisa.

Há 16 anos, de última hora caiu no colo da unidade em que eu trabalhava o desafio de organizar a festa de confraternização de Natal dos funcionários do Banco do Brasil que prestavam serviços na cidade-sede da empresa, no Distrito Federal.

Assustado com o tamanho da encomenda e com o prazo de entrega de uma semana, pedi a Antonio Fonseca e Karla Marino, parceiros de tantas jornadas, que aquecessem as turbinas e levantassem voo. Sabia que eram apenas bancários, sem experiência com eventos daquele porte, mas nunca refugariam sem pelo menos tentar superar o obstáculo.

Definiram, de cara, que a festa deveria acontecer numa quinta-feira. Seria mais fácil mobilizar recursos operacionais, evitando-se o final de semana. Também optaram por um local fechado com várias saídas de emergência, com boas circulação de ar, acústica e facilidade de acesso. O ginásio de esportes de Brasília atendia a essas premissas e fechou-se acordo nesse sentido com o Governo distrital. 

O passo seguinte seria escolher uma atração que satisfizesse o público-alvo, estimado em cerca de 20 mil pessoas (funcionários e acompanhantes), a maioria entre 25 e 40 anos de idade. Chegaram a pensar em Paralamas ou Titãs, mas já corria dezembro e não havia agenda disponível. Optou-se então pela banda Skank, graças à boa vontade (e ao razoável cachê, óbvio!) de seu líder, o vocalista e guitarrista Samuel Rosa, que admitiu retardar as férias do grupo.

Há um ditado ídiche que diz: “o homem planeja e Deus ri”. No dia da festa, às três da tarde, chegou a notícia de que o alvará público que autorizava a realização do evento só permitiria a presença de 13 mil pessoas. Problema é que já se tinha a confirmação da presença de pelo menos 16 mil.

Àquela altura, como discriminar a entrada de quem já estava com as pulseiras de acesso? Que confraternização seria essa caso houvesse alguma forma de segregação? Juntos, assumimos o risco e apostamos na comunhão de almas da plateia  — todos de uma mesma tribo, com hábitos e crenças estabelecidos através de valores, atitudes e expectativas mais ou menos compartilhados  —, o que nos permitia supor que tudo acabaria bem. 

É verdade que, em 2004, os grandes aglomerados humanos não estavam ameaçados de extinção nem se falava tanto em perdigotos, máscaras e distanciamento social como nos dias hoje.

Às dez da noite, com 18 mil pessoas a comer, beber, celebrar reencontros e cobrar a presença da banda no palco, foram fechados os portões do ginásio. Chovia muito lá fora e vários fãs do grupo na capital federal  — sem convite, claro! —, atraídos pela multidão que se dirigia ao evento, tentaram invadir o local pelas portas de emergência, o que só foi contornado com a intervenção da polícia.

Skank era a banda mais ligada ao futebol no Brasil. Samuel Rosa e Henrique Portugal são cruzeirenses, Haroldo Ferretti e Lelo Zanetti, atleticanos. Divididos na paixão pela bola, os quatro, no entanto, sempre foram unidos na arte de encantar multidões através da música, trazendo a atmosfera dançante jamaicana para a tradição pop brasileira. 

Nos bastidores, conversávamos amenidades, inclusive sobre a temporada mágica do Cruzeiro em 2003, vencedor do Campeonato Mineiro, do Brasileirão e também na Copa do Brasil, sob a liderança do treinador Vanderley Luxemburgo e do meio-campista Alex, um dos mais talentosos jogadores de sua geração. 

Ao perceber minha apreensão com a ansiedade do público, Samuel Rosa tratou de piorar as coisas: “... A gente começa com duas ou três músicas mornas, depois pega fogo com Garota nacional, É uma partida de futebol, Jackie Tequila... Mas tudo acaba bem”. E em seguida o grupo subiu ao palco, quando o burburinho virou um demorado e ruidoso aplauso. 

Quem veio, viu e viveu um momento singular. Milhares de pessoas encantadas numa noite de abraços, beijos, chuva, suor e cerveja, dançavam e pulavam como se estivessem comemorando o fim de um isolamento social qualquer.

Não houve praticamente nenhum incidente digno de nota. Apenas alguém mais excitado achou de passar a mão onde não devia, sem o devido consentimento, mas foi excluído do ginásio na mesma hora. À meia noite, a festa acabou e a multidão, entorpecida de prazer e morta de cansaço, voltava para casa.

No final do ano passado, a banda Skank anunciou que 2020 seria o último ano de atividade e que seus integrantes iriam em busca de novos projetos. O grupo, que tocava com a mesma formação desde 1991, garantiu que não houve nenhuma briga entre eles. Com escoriações, imagino. 

Para celebrar três décadas de carreira e se despedir dos fãs, o grupo ainda faria a turnê “30 anos”, com 30 canções que fizeram sucesso, além de uma inédita. As datas e os locais dos shows chegaram a ser anunciados no começo deste ano. Não deu certo. De novo: “o homem planeja e Deus ri”.

Pude rever o Skank na penúltima sexta-feira do ano passado, no programa Conversa com Bial, da TV Globo. Numa de suas mais belas canções (clique e ouça), disseram: “O céu está no chão, o céu não cai do alto... é o claro, é a escuridão...” E arremataram: “... Só para conhecer o que a voz da vida vem dizer...” 

E a voz da vida veio nos dizer que talvez nunca mais tenhamos outra noite como aquela, feita de abraços, beijos, chuva, suor e cerveja. Que a espécie humana continua sendo um projeto interessante, mas que não deu certo. Ainda.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Meu maestro soberano


Vira e mexe lembro de Érico Furtado, há muito tempo radicado na capital pernambucana e a quem devo quase tudo o que aprendi sobre a arte de lidar com pessoas no mundo corporativo, de saber ouvir, de estar atento para não dissociar o discurso da prática e de não se omitir na hora de tomar decisões. 

Quando o conheci no Sertão paraibano na metade dos anos 60, ele, em início de carreira, trabalhava ao lado de meu pai. Eu ainda era criança, nada além de uma semente. Mais tarde, pude reencontrá-lo em Alagoas, onde me tornara planta e passei a merecer o seu cuidado  fraternal, a me livrar de ervas daninhas e podar excessos. Depois, já sem o conforto de tê-lo por perto, virei árvore da casca grossa, de raízes bem enterradas, quando passei a compartilhar frutos daquilo que aprendi. 

Tive o privilégio de sucedê-lo em duas oportunidades, nas superintendências do Banco do Brasil em Alagoas (1995) e em Pernambuco (1996).

Certo dia, por volta das 10 horas de uma manhã qualquer de 1997, recebi uma inesperada ligação telefônica. Era Geraldo Freire, lenda no meio radiofônico pernambucano, da Rádio Jornal, que fez sua história entrevistando figuras da política, da economia, da cultura e do esporte, numa linguagem próxima à voz das ruas. 

Como todo bom radialista, abriu a entrevista com um chute certeiro em minhas canelas:
— É verdade que o banco mandou fechar três agências que foram assaltadas no Sertão por conta da situação de desgoverno lá na área?

Pressenti o que poderia me acontecer caso vacilasse na primeira resposta e rebati de primeira:
— De jeito nenhum! O banco sabe que o governo Arraes, no limite de seus recursos, está fazendo o que pode na região...
— Então, como o senhor justifica o fechamento das agências, prejudicando uma população tão carente?
— Veja, antes de tudo é preciso reconhecer que hoje a violência é motivo de preocupação em todo lugar, seja aqui, na Paraíba, em São Paulo ou Nova Iorque...
— Sim, mas se o banco resolve fechar toda agência que for assaltada, não vai sobrar uma aberta...
— É aí que quero chegar: o banco não irá fechar toda agência que for assaltada, mas é preciso evitar que inocentes sejam baleados ou mortos... E tenho certeza de que nisso você concorda com a gente.

Passei, então, a detalhar uma estratégia de enfrentamento aos assaltos nas pequenas agências do interior que nossa equipe havia decidido pôr em prática, claro, no que nos convinha tornar público. A ideia era manter fechada por alguns dias toda aquela que fosse atacada pelas quadrilhas, enquanto mobilizávamos as forças sócio-políticas locais — prefeito, vereadores, padre, juiz, delegado, grandes produtores rurais e empresários urbanos para tentarmos, juntos, reduzir o risco de novas investidas criminosas.

O plano era simples: impedir qualquer automóvel de estacionar no miolo da cidade, onde normalmente estava localizada a única agência bancária, construindo calçadões ou utilizando blocos de concreto nas cercanias. Em paralelo, o banco reduziria ao mínimo o volume de dinheiro em caixa nessas pequenas agências, porque havia certa desconfiança — sem fundamento, é verdade, pois nunca se comprovou nada — de que as organizações criminosas não investiriam num determinado alvo se soubessem que não compensaria o risco.

As quadrilhas agiam sempre de modo parecido: chegavam em camionetas de grande porte com homens e armas de grosso calibre na carroceria.  Antes de partirem para o assalto, fuzilavam vidraças de casas e lojas que encontravam pelo caminho. O barulho de tiros e estilhaços provocava uma espécie de catatonia coletiva na população por cinco a dez minutos, tempo suficiente para que os bandidos agissem aos gritos e ameaças, deixando um rastro de horror e traumas.

Óbvio que o problema não seria resolvido em definitivo.  Os marginais buscariam outras cidades mais vulneráveis, inclusive nos estados fronteiriços, mas acreditávamos que a ideia de dificultar o uso do veículo de suporte à ação criminosa seria assimilada por outras comunidades, já que que o policiamento disponível nunca teria o poder de fogo da bandidagem. 

Pouco antes do almoço, depois da entrevista, recebi um telefonema do palácio Campo das Princesas. Era o chefe do gabinete do governador Miguel Arraes comunicando que ele me aguardava, no começo da tarde, para uma breve conversa de interesse particular.


Ao chegar ao palácio, fui levado à presença do governador, que me chamou reservadamente num canto do salão de despachos, longe de alguns curiosos próximos de sua mesa de trabalho. Disse ele:
— O banco está certo e o senhor demostrou que está preparado para lidar com esse pessoal da Imprensa, não caindo na armadilha de jogá-lo contra o governo...
— Governador, o banco é parceiro do estado e dos municípios. Vai sempre procurar fazer o que for melhor para a sociedade.
— Sei disso, mas aqui entre nós, é bom que você saiba que esse tipo de provocação parece coisa de gente ligada a Marco Antônio...

Na hora, não percebi a quem ele se referia. Com o desenrolar da conversa, vi que falava do velho adversário político Marco Maciel, então vice-presidente da República. Fiz o que deveria ser feito: deixei entrar por um ouvido e sair pelo outro.


Tempos depois, numa conversa com Marco Maciel sobre o fracasso de um ousado projeto em que se cogitou, pela primeira vez, conjugar reforma agrária em larga escala com efetiva assistência técnica e diversificação de lavouras na Zona da Mata, mas que não recebeu o apoio do governador por razões de foro íntimo  "Mitos também vacilam" (clique e veja) o vice-presidente da República comentou comigo:
— Miguel tá ficando doido! Como ele pode ser contra um projeto desses?
Calado estava, calado fiquei. De novo, fiz o que deveria ser feito: deixei entrar por um ouvido e sair pelo outro.

Em 2016, no fim de minha jornada profissional, em Brasília, alguns colegas mais novos quiseram saber como consegui escapar ileso do convívio nem sempre amistoso com tantas personagens da cena política brasileira na virada do século, como: Antônio Carlos Magalhães, Marco Maciel, Miguel Arraes, Inocêncio Oliveira, Raul Jungman, entre outras. 



Para todos, parafraseando Chico Buarque, pude dizer que o meu pai não era paulista, nem meu avô pernambucano, nem mineiro meu bisavô ou baiano meu tataravô, mas tive no alagoano Érico Furtado um maestro soberano. 

Com ele aprendi a reger grandes orquestras por onde andei e a saber a hora exata de esconder a batuta para não atrapalhar os músicos. Aprendi também, com o passar do tempo, a ser meio cego, meio surdo e meio mudo diante do que via e ouvia. E parece que deu certo.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Conversa ensaboada

Vi quando Regina, faxineira no prédio onde moro, aproximou-se da portaria onde o síndico fazia algumas anotações e perguntou: 
— Por que será que ainda não existe remédio para acabar com um vírus que some até com água e sabão, mas que já provocou a morte de meio mundo de gente?

Regina é gente fina, disposta, curiosa e irreverente como ninguém. Teve seus dias de glória quando morava no bairro de Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro, e participou como figurante de uma ponta de novela. Queria ser famosa, virar atriz ou bailarina de programas de tevê, mas não deu certo. Acabou voltando para Alagoas.

Nazareno, ex-professor de Educação Moral e Cívica — matéria que se tornou obrigatória no currículo escolar brasileiro no final dos anos 60, em substituição às disciplinas de Filosofia e Sociologia —, hoje conhecido como Seu Naza, viu no cargo de síndico do condomínio o bico ideal para complementar a renda familiar. Viúvo, ainda mantém dois filhos que se recusam a abrir mão da adolescência. O mais novo, inclusive, “rato de praia" que se vangloria de que "já pegou muitas" na área. Não se sabe exatamente a que ele se refere.

Achei que Seu Naza, autoritário e intolerante com os empregados mais humildes e subserviente com os moradores dos andares mais altos, fosse abreviar a conversa com algo assim: “E daí? Quer que eu faça o quê? Sou Nazareno mas não faço milagres, tá legal?!” Mas não. Surpreendeu inclusive ao porteiro. Prova de que existe pau que nasce e cresce torto mas se apruma antes de morrer. Ou finge para ser politicamente correto.

Próximo dali, enquanto aguardava encomenda feita à farmácia, prestei atenção quando ele começou a responder dizendo que o novo coronavírus é covarde, burro e injusto. Se não, o bicho não seria invisível nem agiria em bando, atacando os mais vulneráveis pelas costas sem lhes dar a mínima chance de defesa.

Para Seu Naza, em suas escolhas sobre quem infectar, o vírus deveria dar prioridade aos oportunistas que tentaram obter vantagens político-eleitorais com a pandemia da covid-19, influenciando seguidores fanáticos ao garantir que tudo não passava de uma virose ordinária, ou decretando a paralisação ampla, geral e irrestrita das cidades, de olho, claro, em verbas federais isentas de licitação pública.

Disse também que seria muito oportuno um olhar contagiante sobre quem agride jornalistas no trabalho ou quem tenta aplicar golpes nos autônomos e desempregados que se espremem em filas desumanas porque precisam do auxílio emergencial de 600 reais. Assim como sobre quem hostiliza enfermeiros na rua ou no ônibus, quem confisca carregamento de máscaras ou quem especula com o preço de equipamentos médicos escassos.

O vírus, para o síndico, ainda deveria reservar um abraço contaminador para quem pode ficar em casa e ser generoso e solidário com os mais frágeis, mas não é. Não se compadece com o sofrimento alheio. Ao contrário, gasta horas e horas a propagar mentira, ódio e pânico nas redes sociais, quando não está às voltas com as frivolidades de um consumismo desenfreado.

Ao perceber que eu continuava atento à conversa, Seu Naza empolgou-se e passou a filosofar, a dizer que se a natureza fosse sábia deveria expurgar inclusive aqueles que pregam “viva hoje; o passado passou e o futuro é incerto” ou “não deixe para amanhã o que pode fazer hoje”. Para ele, ninguém deveria ser egoísta e se contentar apenas com ”aqui e agora”, sem desejar resmas de amanhãs como folhas em branco onde as novas gerações possam redesenhar o mundo.

Confesso que fiquei perplexo ao ouvir esses argumentos saírem da boca de alguém que ora louva a Deus, ora venera torturadores cruéis como fontes de inspiração. Se bem que um amigo meu diz que “esse tipo de gente mente e desmente constantemente, impunemente”.


E seguiu em frente, a garantir que o novo coronavírus é miserável porque pega a todos no contrapé, sem distinção de gênero, idade, cor, classe social, crença política ou religiosa, e cozinha numa panela de pressão porções cavalares de ansiedade, medo e tédio.

Pior, ainda condena todo mundo à pena diária de assistir a milhares de mortes à míngua pelo mundo afora, sem o consolo do velório e sem a chance de um adeus nem mesmo dos parentes, reclusos na solidão de seus lares, carentes de abraços e vendo seus mortos empilhados e convertidos em reles números no meio de uma lista ou de um gráfico de barras qualquer.

De repente, o síndico se deu conta de que a faxineira poderia não ter assimilado o seu amplo discurso e resolve conferir:
— E aí, Regina, deu pra entender?
— Mais ou menos... 
— O que cê não entendeu, minha filha?
— Essa máscara aí pendurada no seu pescoço, Seu Naza. Se não cobrir nariz e boca, o bicho pega. É como usar camisinha no saco. Só machuca e não resolve o problema.
— Cê tá ficando doida?! 
— Tá vendo? Não posso nem abrir a boca! É pau pra comer sabão e pau pra saber que sabão não se come...

Segurei o riso e fui-me embora para o meu casulo sem ouvir uma resposta objetiva para a instigante pergunta de Regina: por que ainda não surgiu uma droga capaz de neutralizar um parasita que se torna inerte até com água e sabão? 

Pelo sim, pelo não, ensaboei as mãos assim que cheguei. 

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Onde estão os óculos de “Urtigão”?

Dia desses publiquei neste espaço uma troca de mensagens, sob o título “Urtigão é culpado” (clique e veja), que deu o que falar por duas semanas. Ontem, ao vasculhar meus arquivos, encontrei outra troca de e-mails, em 2005, onde mandava notícias minhas e buscava saber do paradeiro de meu velho e bom amigo ermitão.

“... Aos 47, com 99 kg, taxas como a Selic, em alta — triglicérides, colesterol etc. —, com uma preguiça danada de fazer caminhadas matinais no frio seco de 16/18 graus daqui de Brasília, filhos casados (exceto a caçula), toco minha vida com Magdala cuidando do velho Lobão (clique e veja) e de sua filha Luna, primeira cadela do mundo que rói unhas, o que a faz caminhar manquitolando. 


Praga de nosso amigo Manezin, que tanto provocou minha mulher, a duvidar da masculinidade de sua ‘criança’, que a coitada fez o bicho emprenhar uma cadela poodle pertencente a uma amiga que mora lá em Sobradinho, assumindo o compromisso de criar pelo menos uma ‘neta’.

Pior que, mais tarde, o veterinário descobriu que nossa ‘neta’ Luna nasceu com intolerância à proteína da carne de boi ou de frango — razão de uma gastrite que durou quase dois anos para sarar e vem custando boa soma de dinheiro —, o que me leva toda semana à Feira do Guará em busca de alternativas proteicas tais como ovelha, rã, filé de merluza e coalhada integral de baixa lactose. 


Herdou do pai toda a frescura do mundo. Depois que Lobão se tornou cardiopata e nefropata, só come peito de frango sem pele nem osso, pernil de carneiro e é alérgico a carrapatos. Pode? Outro dia, na feira, alguém viu o conteúdo de minha sacola e quis saber o que comemos normalmente eu e minha mulher. Fui sincero: carne moída, fígado, músculo, coxa e sobrecoxa... Já nossos ‘netos’...

Com a mudança dos ventos políticos por aqui, ‘eu vou sobrevivendo, sem nenhum arranhão, da caridade de quem me detesta’, como diz Cazuza. Faço meu dia do mesmo jeitão de sempre, lidando agora com 2.300 almas — 2/3 com menos de quatro anos de empresa — numa rede de 95 agências que atende do Plano Piloto até o Nordeste de Goiás, fronteira com a Bahia. Mereço o respeito delas porque procuro ser simples, firme e justo em minhas decisões. 


Tem dado certo e espero que continue assim, pelo menos até ‘a nova florada anunciar a chegada da safra’...”            

Em sua resposta, “Urtigão” quase me convenceu de que não dera notícias antes por conta da falta de óculos. Sempre me curvo diante de uma história bem contada, principalmente quando envolve um velho e bom amigo do peito.

“... Fui à oculista porque não conseguia mais ler de perto. Comecei a conferir meus prazos de validade e, tristemente, verifico, apesar de ter sido guardado em ambiente seco e ventilado, meus prazos estão vencendo. Fico com medo da minha sogra, porque tudo que vence aqui em casa, ela dá para os cachorros...

A oculista é muito conceituada na Bahia. Ela me receitou óculos para perto e outro para longe. Assim fiz: dois óculos. Na primeira viagem com ambos, esqueci na casa de um amigo os óculos para perto.

Descobri que todos aqueles que não enxergam de perto acham que têm o mesmo grau de deficiência e assim uns pedem óculos aos outros. Foi o que aconteceu com os meus. Embora sem enxergar direito com eles, meu amigo não conseguiu distinguir entre os dele e os meus. Ficou usando os meus e guardou os dele para me devolver. Tudo ia bem até que a sogra dele sentou em cima dos meus óculos, no sofá. Uma lente ninguém achou e eu tenho até medo de perguntar.

Daí ele começou a usar os dele que estavam destinados a mim e eu fiquei com os óculos quebrados. Não me irrita muito ficar sem óculos de perto porque ainda me ajeito a olho nu. Mas tem coisas ruins de ler e o pior é pedir para alguém, que logo lhe chama de senhor, ou de tio. Antes que me chamassem de vô, resolvi fazer óculos multifocais e acabar com o dilema.

Na realidade, acabei criando outro problema. Fiz de minha caneta uma lança e a arremessei contra minha oculista, que aqui transcrevo para você ver que estou falando a verdade:
 


(...) Minha querida oftalmologista,

Estou escrevendo este mail com um óculos para perto que comprei na Avenida Sete de um elemento que, além de ser presidente da Associação dos Muambeiros do Paraguai, é profissional especializado em desentupidores de fogão, pilhas alcalinas, pomada para hematomas e contusões e, o que é melhor, possui curso técnico de oftalmologia de 1º grau.

Não está muito bom, meia-boca, como se diz, mas os outros que fiz numa afamada ótica da Avenida Sete estão  simplesmente me deixando louco. Tenho certeza de que, se ele são melhores para minhas vistas, serão piores para meus neurônios.

Essas lentes de gradação progressiva são realmente fantásticas. Lembro que, antigamente, os óculos possuíam uma ‘janelinha’ nas lentes que o povo chamava de bifocal. Aí a gente já sabia: é pra ver de perto, espia-se o mundo por ali. A sensação era tão boa que lembrava as portinholas dos antigos ‘relógios cuco’ de parede, de onde saía o passarinho para anunciar as horas inteiras e suas metades. Melhor ainda, para os menos normais, a janelinha lembrava um buraco de fechadura, doces sonhos e devaneios adolescentes.

Gosto da evolução tecnológica, apesar de ser um indicativo de minha, aí sim, progressiva velhice e dos prazos de validade dos órgãos vencendo. Ninguém me avisou dos inconvenientes dessas lentes modernas.

Primeiro, não posso balançar a cabeça. Parece ressaca; só não dói, nem traz a boa lembrança do dia anterior. Sacudir, de jeito nenhum! Fica o nariz como o apoio da gangorra: quando viro a cabeça para a direita, o olho direito vê a tudo subir, levitando, e o esquerdo, a tudo descer, afundando... Se olhar com os dois olhos para o centro, parece que estou enxaguando um aquário de peixes sem peixes, com as imagens distorcidas pela visão através da água, mexendo para lá e para cá.

Para não levar o título de mal humorado, chato ou impaciente, estou tentando me acostumar com o objeto. Mas é complicado.


Descobri que para ver de longe, tenho que baixar a cabeça e olhar quase pela borda superior dos óculos. Ora, isso tira a altivez de qualquer um. Nessa pose me sinto um esmoler, que pede a caridade da imagem, ou então um penitente, que chega ao altar réu-confesso de sua culpa.

Já para ler de perto, tenho que empinar o nariz e olhar para baixo. Como quem tem ojeriza ao próprio corpo e o vê apenas de relance, quando a barriga permite. Então, estou ficando assim: humilde de longe e arrogante de perto. Igual a político.

Olhando pela linha mediana e para frente, entretanto, as coisas dão mais ou menos certo, se contidos os movimentos bruscos. Caso contrário, volta-se a ter visão idêntica a uma cenoura no liquidificador, prestes a ser incorporada numa vitamina de banana.

Penso que velhos marinheiros não terão problemas de se adaptarem a essas lentes. Tampouco os surfistas, já que vivem em constantes maremotos.


Vou fazer as últimas tentativas: beber e usar os óculos.  A lógica me induz a imaginar que a visão desfocada causada pelo álcool tende a se ajustar com a visão fora de foco e oscilante proporcionada pelos óculos. Daí, pronto: visão perfeita.

Meu medo: já pensou se, na tentativa de achar o foco, eu ficar remexendo os olhinhos, sendo observado por um homão que, sentado em uma mesa ao redor, de repente achar que é com ele e chegar bem perto de mim e fazer uma declaração de amor? 
(...)’


Cunha, eu, Horácio e Urtigão, em 2000.
Há 15 anos era assim. Tudo servia de pretexto para uma boa conversa entre nós. “Urtigão” anda novamente calado, quieto, entre plantas e bichos no interior da Bahia onde, no fim da tarde, vê o horizonte da cor que imagina e se dá asas para voar no céu das coisas que lhe mantém vivo. 

Sim, sei que está vivo! Vi dois tiques quando lhe mandei minha última mensagem, ainda sem resposta. Deve ter perdido de novo os óculos, que a rigor nunca lhe fizeram falta para enxergar as coisas do mundo.