Postagens

Sonho e ousadia

Imagem
O menino passava horas observando a sombra de uma varinha enfiada no chão do quintal, a mudar de posição a cada instante, até o pôr-do-sol:  — O que cê faz aí, hein?  — Tô vendo o tempo passar, mãe... No terreiro, além da cerca de avelós, do pé-de-manga e do galinheiro, havia o areal onde ele brincava com a irmã, inclusive nas noites de lua cheia, até ouvirem o chamado da mãe: — Tá na hora de lavar os pés e beber água pra dormir!  Chico e Gracita, 7 e 8 anos, últimos dos sete filhos de Januário e Mariquinha, nasceram no sítio Muriqui, à margem do riacho Jundiá, distante seis léguas da cidade de Pedregulho. O sustento da família vinha da pesca, da criação de umas poucas cabeças de gado e do plantio de mandioca, milho e feijão. Pais e filhos nunca haviam pisado numa escola. Nem desconfiavam de que nossos antepassados já conheciam as horas do dia muito antes de o relógio ser inventado no século 14.  Sim, por volta de 5.000 a.C., os babilônios descobriram que em certo

Sim, hoje é sábado

Imagem
Sim, hoje é sábado. Só por isso ainda sinto o cheiro de cera do chão das casas em que morei quando menino, a ver meu pai circulando  entre salas e quartos, fazendo brilhar o cimento queimado e os mosaicos, a ouvir boleros do  Trio Irakitan. Vem à cabeça também o “gol da lua” nos campos enlameados de minha meninice. Na boca da noite, racha no zero-a-zero ou com vitória parcial por apenas um gol de diferença, alguém gritava: “quem fizer primeiro, ganha!”. Era um salve-se quem puder, um deus-nos-acuda sem sentido. Lembro do trajeto de casa até o altar da capela do  Convento Bom Pastor , no último sábado de 1976, ponto de partida de uma viagem sem volta nem fita de chegada rumo à Terra Prometida. Éramos dois sem parentes importantes nem dinheiro no banco, mas estava escrito nas estrelas que teríamos um só coração, bem repartido entre a esperança e a razão. Ouço como se fosse agora mesmo o grito familiar a convocar à mesa da cozinha caras e bocas espalhadas pelos quatro cantos da

Que safadeza é essa?!

Imagem
Em tempos de reuniões ministeriais cujo palavreado deixaria constrangida a inesquecível atriz Dercy Gonçalves (1907 — 2008), lembrei-me de duas repreensões que recebi por usar termos inaceitáveis para meu pai: sacanagem e merda, vejam só! Um dia, chateado com um de meus irmãos por conta de uma bobagem qualquer, reclamei: “isso é sacanagem sua!” Meu pai ouviu, me olhou firme e foi direto ao ponto: “nunca mais diga isso, entendeu?” Noutra, apenas repeti o que já ouvira na rua ao criticar um vizinho: “olhe a merda que você fez!” De novo, ele chegou junto e decretou: “se falar isso outra vez, vai apanhar!”. Lá em casa, sob pena de puxão de orelhas ou croque no cocuruto, o máximo admissível em termos correlatos a palavrões (ou “nomes feios”, no dizer dele) eram: cocô, bunda, pinta, pássaro,  “piupiu”  ou, no limite, safadeza. E não é bom nem pensar no que aconteceria se um dos filhos de Seu Agostinho pronunciasse um um robusto “taquiupariu!” Talvez por isso nunca aceitei ser cl

A voz da vida

Imagem
Grandes espetáculos musicais vêm sendo cancelados ao redor do mundo por conta da pandemia que nos obriga a ficar em casa. Enquanto repensam como será a vida daqui para a frente, músicos e cantores promovem eventos virtuais  online , o que ajuda na sanidade mental dos confinados, embora todos reconheçam que não é a mesma coisa. Há 16 anos, de última hora caiu no colo da unidade em que eu trabalhava o desafio de organizar a festa de confraternização de Natal dos funcionários  do Banco do Brasil  que prestavam serviços na cidade-sede da empresa, no Distrito Federal. Assustado com o tamanho da encomenda e com o prazo de entrega de uma semana, pedi a Antonio Fonseca e Karla Marino, parceiros de tantas jornadas, que aquecessem as turbinas e levantassem voo. Sabia que eram apenas bancários, sem experiência com eventos daquele porte, mas nunca refugariam sem pelo menos tentar superar o obstáculo. Definiram, de cara, que a festa deveria acontecer numa quinta-feira. Seria mais fác

Meu maestro soberano

Imagem
Vira e mexe lembro de Érico Furtado, há muito tempo radicado na capital pernambucana e a quem devo quase tudo o que aprendi sobre a arte de lidar com pessoas no mundo corporativo, de saber ouvir,  de estar atento para não dissociar o discurso da prática e  de não se omitir na hora de tomar decisões.  Quando o conheci no Sertão paraibano na metade dos anos 60, ele, em início de carreira, trabalhava ao lado de meu pai. Eu ainda era criança, nada além de uma semente. Mais tarde, pude reencontrá-lo  em Alagoas, onde me tornara planta e passei a merecer o  seu cuidado  fraternal, a me livrar de ervas daninhas e podar excessos . Depois, já sem o conforto de tê-lo por perto, virei árvore da casca grossa, de raízes bem enterradas, quando passei a compartilhar frutos daquilo que aprendi.  Tive  o privilégio de sucedê-lo em duas oportunidades, nas superintendências do Banco do Brasil em Alagoas (1995) e em Pernambuco (1996). Certo dia, por volta das 10 horas de uma manhã qualquer de 1

Conversa ensaboada

Imagem
Vi quando Regina, faxineira no prédio onde moro, aproximou-se da portaria onde o síndico fazia algumas anotações e perguntou:  — Por que será que ainda não existe remédio para acabar com um vírus que some até com água e sabão, mas que já provocou a morte de meio mundo de gente? Regina é gente fina, disposta, curiosa e irreverente como ninguém. Teve seus dias de glória quando morava no bairro de Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro, e participou como figurante de uma ponta de novela. Queria ser famosa, virar atriz ou bailarina de programas de tevê, mas não deu certo. Acabou voltando para Alagoas. Nazareno, ex-professor de Educação Moral e Cívica — matéria que se tornou obrigatória no currículo escolar brasileiro no final dos anos 60, em substituição às disciplinas de Filosofia e Sociologia —, hoje conhecido como Seu Naza, viu no cargo de síndico do condomínio o bico ideal para complementar a renda familiar. Viúvo, ainda mantém dois filhos que se recusam a abrir mão d

Onde estão os óculos de “Urtigão”?

Imagem
Dia desses publiquei neste espaço uma troca de mensagens, sob o título “Urtigão é culpado” (clique e veja) , que deu o que falar por duas semanas.  Ontem, ao vasculhar meus arquivos, encontrei outra troca de e-mails, em 2005, onde mandava notícias minhas e buscava saber do paradeiro de meu velho e bom amigo ermitão. “... Aos 47, com 99 kg, taxas como a Selic, em alta — triglicérides, colesterol etc. —, com uma preguiça danada de fazer caminhadas matinais no frio seco de 16/18 graus daqui de Brasília, filhos casados (exceto a caçula), toco minha vida com Magdala cuidando do velho Lobão   (clique e veja) e de sua filha Luna, primeira cadela do mundo que rói unhas, o que a faz caminhar manquitolando.  Praga de nosso amigo Manezin, que tanto provocou minha mulher, a duvidar da masculinidade de sua ‘criança’, que a coitada fez o bicho emprenhar uma cadela poodle pertencente a uma amiga que mora lá em Sobradinho, assumindo o compromisso de criar pelo menos uma ‘neta’. Pior que, mais