quarta-feira, 27 de abril de 2022

Um dia, quem sabe…

Nenhum vidente previu que José Sarney, em 1985, assumiria a presidência da República no lugar de Tancredo Neves, eleito indiretamente, pelo Colégio Eleitoral, para o primeiro governo civil depois de 21 anos de ditadura militar. 

Predizer o futuro, além de soar pleonástico, até pode render livros e filmes, mas, do ponto de vista prático, é tiro no escuro com boa dose de frustração quando o presente dá as caras. Já se disse, aliás, que, no Brasil, até o passado é imprevisível.


Tudo bem, os dados que se tem no presente dão alguma leitura do passado para identificar padrões de ocorrências futuras. A medicina trabalha assim. Quando se diz que este ano mais de 250 mil brasileiros irão morrer por doenças cardiovasculares, não se trata de previsão, mas de projeção (para cujo acerto, por sinal, não pretendo contribuir). É, pois, constatação com base em evidências e dados históricos.

 

Se alguém tivesse antecipado que Tancredo Neves morreria em 21 de abril de 1985, aos 75 anos, por conta de uma complicação cirúrgica (infecção generalizada) antes da posse, isto sim teria sido uma previsão específica do futuro. O resto é miolo de pote. 

 

No livro “O andar do bêbado”, o autor Leonard Mlodinow explica que “a existência de roletas é uma boa demonstração de que não existem médiuns legítimos, pois em Monte Carlo, se apostarmos US$ 1 em um compartimento e a bolinha cair ali, a casa nos pagará US$ 35 (além do valor que apostamos). Se os médiuns realmente existissem, nós os veríamos em lugares assim, rindo, dançando e descendo a rua com carrinhos de mão cheios de dinheiro...”. 

 


Olhar para o céu e contar que os astros digam como será a próxima semana ou o mês que vem não faz o menor sentido. Mas é característica humana acreditar que dá pra saber o que vai acontecer. É quase irresistível tentar adivinhar o que existe na próxima esquina, embora não se saiba o nome do vizinho.

 

Não sou vidente, mas posso antever, a menos de seis meses da escolha, que o Brasil deve eleger em outubro não o melhor ou o mais bem preparado candidato à presidência da República, mas o menos odiado pelos eleitores. Isto é, o ódio – esse impulso que leva ao mal que se faz ou se deseja a outrem, que embrulha no mesmo pacote antipatia, rancor e repugnância –, mesmo em menor dose, definirá o vencedor. 

 

Os dois principais candidatos ao cargo amargam dura  rejeição do eleitorado: um, acima de 50%; o outro, mais de 40%. Ambos são detestados. E nem se sujeitaram ainda à artilharia pesada que vem por aí, numa guerra onde os dois cordões de soldados só enxergam pela frente inimigos a serem abatidos a mentiras, tapas e pontapés (para dizer o mínimo!). 

 

O ungido por uma margem estreita de votos falará em governar para todos, mas sabe que terá contra si o ódio (ou a indiferença, o que é pior) de pelo menos 70 milhões de almas inconformadas. E não poderá esquecer da lição que Tancredo Neves aprendeu com o ex-presidente Getúlio Vargas: “No Brasil, não basta vencer a eleição; é preciso ganhar a posse!”.

 

Já tomei uma decisão: votarei no candidato que assumir publicamente que vai tentar arrancar pela raiz o mal que nos aflige, isto é, lutar pela troca do presidencialismo pelo parlamentarismo ao fim do mandato.

 

Pode-se argumentar que, há 20 anos, o brasileiro já disse não ao parlamentarismo em plebiscito. Mas será que sabia realmente a diferença entre um regime e outro? O que diria agora se soubesse mais sobre o assunto e fosse consultado de novo?

 

Cultua-se por estas bandas a figura mítica do herói capaz de mudar os rumos da nação da noite para o dia. Isso explica a preferência pelo regime presidencial, mesmo reconhecendo que o nosso sistema de coalizão pode ser batizado como “farinha pouca, meu pirão primeiro!”

 

É preciso aprender que no parlamentarismo desaparece a dicotomia Executivo-Legislativo. Ambos serão um só. O povo não vai escolher o presidente, mas votará para escolher qual partido comandará o país. Se o processo eleitoral não resultar em maioria, o partido líder nas eleições precisará montar uma coalizão com outros menores para alcançar pelo menos 50,1%. 

 

Aprender também que o parlamentarismo dilui o poder dos líderes. O primeiro-ministro não será o todo-poderoso como acontece com o chefe do Executivo no sistema presidencialista. Ele governará com o partido. Necessitará do apoio dos outros ministros e parlamentares, inclusive para combater outra grave doença: a obstrução de pautas importantes por parte da oposição, querendo apenas provocar o colapso na vida do governante de plantão. 

 

Aprender ainda que, tirando os Estados Unidos, a maioria dos países desenvolvidos (Dinamarca, Noruega, Suíça, Suécia, Holanda, Canadá, Japão, Austrália etc.) adota o sistema parlamentar, onde não sabe nem como se chama o primeiro-ministro. 

 

Quem estaria no caminho certo? Quem tiver a curiosidade de ler sobre índices de desenvolvimento humano e histórico de estabilidade política e econômica, verá que a resposta é fácil. Extremamente fácil! 

 

Um dia, quem sabe, a gente aprende a ser uma nação.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

As borboletas podem

Quem pensa que uma infância feliz é aquela que segue a liturgia politicamente correta dos dias de hoje está enganado. Essa coisa de pai e mãe que dialogam, perguntam pelas tarefas escolares, dão abraços e beijos, dizem aos amigos que os filhos são inteligentes, lindos e maravilhosos, deve ser interessante, mas nunca experimentei desse doce. 

 

Como nunca o provei, não posso dizer que sinto falta. Ninguém sente falta do que não provou. Quando criança, não me lembro se algum dia recebi um beijo de minha mãe ou de meu pai, ainda que me amassem – nunca duvidei disso! – e não me deixassem nada faltar. Éramos felizes mesmo assim.

 

Puxando pela memória, tia Creuza, linda e magrinha como uma borboleta, foi a primeira pessoa da família que me fez um carinho mais explícito: um abraço apertado e um cheiro no cocuruto numa das vezes em que meus pais visitaram o sítio Jacaré, no Agreste paraibano, onde ela morava com meus avós maternos. 

 



Tia Creuza, que nunca quis namorar, casar nem ter filhos, tida por alguns como esquisita porque sempre viveu no sítio Jacaré, onde tataravós, trisavós, bisavós, avós e pais nasceram e se criaram; plantavam frutas, legumes e verduras; engordavam novilhas e porcos e criavam galinhas e guinés.

 

Desde novinha, sempre quis ser como o velho pai Zé de Brito Jurema e o irmão mais velho, tio Olívio, inclusive no trajar, no uso de cigarro de fumo de rolo e no lidar com o cabo da enxada e da foice, por mais que a mãe insistisse para que ela ficasse em casa com as irmãs mais velhas. 

Sob a orientação do pai, ela e o irmão vendiam aquilo que a família não consumia para poder comprar o que não conseguiam extrair da terra: açúcar, café, sal, roupas, essas coisas. Cadernos, lápis e livros nunca foram importantes para eles.

 

Se livros nunca foram importantes, tia Creuza nunca leu Kundera, para quem "ter um filho é como dizer: nasci, apreciei a vida e constatei que ela é tão boa que merece ser repetida". Ou Millôr, que disse que "pais e filhos não foram feitos para ser amigos, mas para ser pais e filhos". Que "metade da vida é estragada pelos pais; a outra metade, pelos filhos". 

 

Também nunca ouviu falar de Shakespeare, que afirmou que "o casamento faz de duas pessoas uma só: difícil é determinar qual será". Ou Fleming, para quem "na maioria dos casamentos as pessoas não se juntam; elas se subtraem". Ou ainda Nietzsche, que garantia que "o casamento transforma muitas loucuras curtas numa longa estupidez".

 

Por ser a mais nova das filhas de meus avós, ao ver mais tarde o exemplo de algumas irmãs, viu que o casamento era uma espécie de propina para fazer com que uma empregada doméstica pensasse que era dona de casa.

 

Pode ter notado também o tanto de homens e mulheres que fazem do casamento apenas uma oportunidade de trair, às vezes na base do “chifre trocado não fura”, porque não aprendem a enfrentar o monstro voraz que, se nada for feito, a tudo engole: a rotina.

 

Li outro dia em algum lugar que a reprodução de animais de maneira assexuada, conhecida como partenogênese (“partos virgens”) é algo comum na natureza, sendo inclusive a forma de reprodução de algumas cobras e lagartos. Não é o caso de tia Creuza, que apenas optou por firmar um pacto com a solidão e não dá sinais de arrependimento.  

 

Mesmo solteira e sem filhos, como não era chegada a cadernos, lápis e livros, não se submeteu a patrões privados ou públicos, tendo que se maquiar e se vestir como a maioria das mulheres. Livrou-se do ansiolítico da moda, de acordar preocupada com a reunião das nove ou se Wall Street reagiu mal à ata do último encontro do Federal Reserve, repercutindo no fechamento da Bolsa de Valores (seja lá o que isso signifique para a maioria dos seres vivos!).

 


Há três anos esteve aqui em Maceió, onde fez tratamento médico, reviu a irmã (minha mãe) e seus sobrinhos. Num domingo, comoveu-se quando lhe dei uma blusa de mangas compridas e um boné amarelo onde estava bordada uma logomarca azul muito conhecida dos brasileiros que vivem no campo. 

Naquele instante, eu poderia ter retribuído o abraço apertado e o cheiro no cocuruto que ganhei quando criança, mas fiquei constrangido. Falta de costume. 
 

A minha vida mudou, eu sei. Tia Creuza já completou 80 outubros. Aposentada, mora sozinha na cidade em que eu nasci – Itabaiana, na Paraíba – numa casa cedida por outro sobrinho muito querido, que não lhe deixa nada faltar.  

 


Parece feliz quando pedala sua bicicleta para cima e para baixo, todo fim de tarde, olhando as coisas miúdas que encontra pelo caminho, como se carregasse na garupa a alma de um certo 
poeta pantaneiro a lhe sussurrar: sim, é verdade, "as borboletas podem pousar nas flores e nas pedras, sem magoar as próprias asas".

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Tá duro de aguentar

Quem já passou dos 50, como eu, deve lembrar de “General”, personagem do humorístico “Viva o Gordo”, criado por Jô Soares e exibido pela TV na década de 80. 


Amigo do então presidente Figueiredo, “General” literalmente teria caído do cavalo e passou seis anos em coma. Ao acordar, conectado a um respirador artificial, descobriu que já não havia ditadura e que seu colega milico não mais ocupava a presidência. Pior: quem agora se sentava na poltrona era o bigodudo Zé Sarney, um reles civil. "General" ficava louco toda vez que era contrariado pela realidade dos fatos: “Me tira o tubo! Me tira o tubo!” 

 

Todos nós, viciados em futebol, estamos prestes a reagir como o inconformado militar de Jô Soares. Melhor a morte do que aguentar o que vemos. Ou buscar algo que nos poupe de AVC ou infarto fulminante, tipo: dama, dominó, gamão, porrinha etc.

 

Para Graciliano Ramos (em “Traços a esmo”, crônica publicada do começo do século passado), aliás, o Brasil nem deveria ter introduzido o futebol por aqui. “Reabilitem os esportes regionais que aí estão abandonados: o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé (tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas), a pega de bois, o salto, a cavalhada, e, melhor que tudo, o cambapé, a rasteira... Todos nós vivemos mais ou menos a atirar rasteira uns nos outros...”

  

Sim, reconheço que ando irascível. Tenho motivos e se abro o jogo aqui é para que vocês não creditem minha implicância à rabugice da idade ou à cruz (de malta) que carrego sobre os ombros.

 


Não se trata do futebol em si, mas de uma penca de situações que refletem o caráter nacional, a cultura de um povo que era tido como alegre, cordato, inteligente e solidário. Vejam:

1 – Goleiro que insiste em fazer “cera”, mesmo após ser advertido, certo de que o árbitro não irá expulsá-lo nem acrescentará o tempo perdido.

2 – Atacante que pressiona o zagueiro adversário pelas costas, na linha de fundo ou lateral, mesmo sabendo que ele simulará falta e o juiz, fingindo-se enganado, apitará.

3 – Treinador que cobra maior “pegada” de quem atua, a cada três dias, viajando de lá para cá num gigantesco e tórrido país tropical.

4 – Atleta atingido pela mão do adversário (na altura do peito) que cai, rola, estrebucha, como se tivesse sido agredido no rosto e quebrado o nariz e dois dentes incisivos.

5 – Técnico que reclama o tempo inteiro da arbitragem junto ao 4º árbitro, como se isso “sensibilizasse” o juiz principal para sua causa.

6 – Jogador em impedimento que finaliza um ataque e, ao ser advertido, diz que não ouviu o apito.

7 – Comentarista de TV, que nunca amorteceu uma bola no peito, tirando conclusões “geniais”: “Tá faltando o último passe” ou “ganhou porque aproveitou melhor as chances que teve”.

8 – Árbitro que, alegando que houve simulação, adverte jogador que realmente sofreu falta.

9 – Ex-atleta, hoje comentarista de TV, sugerindo que “o time toque mais a bola" ou "jogue pelas pontas”. 

10 – Jogador que celebra gol com os dedos apontados para o céu, como se Deus vestisse a camisa de seu clube.

11 – Atleta que, no último minuto do jogo, com seu time perdendo, bate falta na barreira ou distante da meta adversária.

12 – Ex-árbitro, agora comentarista de TV, que não reconhece o cochilo na análise de um lance e, após o “replay”, tenta convencer daquilo que só ele teria visto.

13 – Jogador que, nos acréscimos do tempo regulamentar, comemora gol cobrando silêncio dos torcedores.

14 – Torcidas (ou facções) organizadas de clubes em má fase, invadindo centros de treinamento e ameaçando atletas e comissão técnica, para dar um “sacode” no grupo.  

15 – Justiça desportiva que não determina o liminar banimento do futebol de agressores de árbitros, sobretudo quando a vítima é do sexo feminino. 


Chega! Já defendi até a extinção da regra mais difícil de ser aplicada: a do impedimento. Mudei. Seria chato ver um “poste” grudado no goleiro adversário durante toda a partida. O ideal seria que a regra valesse apenas a partir de linhas intermediárias, a serem demarcadas entre as linhas de fundo e divisória do campo. 


 

Quanto a outro foco crônico de chatice, o Árbitro Assistente de Vídeo (VAR, em inglês), reconheço: é a credibilidade do esporte que está em jogo. O problema não é a ferramenta. É quem está dentro de campo com um apito na boca, quando falta coragem para decidir sobre o que viu a poucos metros de distância. 

 

Penso que deveria ficar a cargo dos treinadores, como no vôlei, a prerrogativa de acionar o olho eletrônico. Cada time teria o direito de acionar o VAR por duas vezes a cada tempo. 


Deve ser afrodisíaco o poder de deixar meio mundo de gente em transe, por alguns minutos, enquanto, sob os holofotes da mídia, decide se mexe ou não no curso natural da história.

 

Tá duro de aguentar. Mas se o Vasco voltar a ser Vasco (mesmo vice-campeão, como o Flamengo, ultimamente), juro que tiro de letra minha rabugice. Se não, é melhor tirar o tubo.  

quarta-feira, 6 de abril de 2022

A evolução dos parvos

Para mim, o grande acontecimento no primeiro quarto deste século 21 tem sido a evolução espantosa e fatal dos parvos. Nelson Rodrigues bem que avisou que “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”, mas a tecnologia tem ajudado a acelerar o processo.

 

Você, leitora amiga, sabia que é possível postar nas redes sociais um vídeo cantando com a mesma categoria de Elis Regina ou Marisa Monte? Você, meu caro leitor, sabia que pode ser visto dançando como John Travolta em Os Embalos de Sábado à Noite, apesar da pança e das dores nas articulações?

 

É simples. O truque que permite simular algo assim pode parecer complicado, mas não é. Basta, por exemplo, extrair de plataformas como o Youtube gravação de voz e filmagem de movimentos naturais, inclusive trejeitos, para se criar uma realidade alternativa capaz de deixar qualquer um de queixo caído.

 

Esse tipo de manipulação, com a ajuda tecnológica da chamada Inteligência Artificial (quando computadores são programados para imitar o comportamento humano), é conhecido por deepfake, termo que descreve arquivos de áudio e vídeo criados num “aprendizado de máquinas”. 

 

O potencial de maldades e trapaças é incrível. Qualquer deepfake que se possa imaginar é possível ser feito, com troca ou retoques faciais, clonagem de voz (“copiada” para dizer outras coisas), sincronização labial (quando a boca de alguém falando pode ser ajustada a uma faixa de áudio diferente) e outras artimanhas que até um semianalfabeto digital aprende com facilidade.   

 


Corpos também podem ser criados como avatares. Com essa tecnologia, mesmo algumas figuras históricas que já se foram para outro plano podem ser trazidas de volta para aprontar mais algumas antes de arderem de vez nos quintos dos infernos. 

 

Funciona assim: um computador consulta outro se o clone que ele acaba de “criar”, a partir de você, é bom o suficiente, comparando-o com o “material” original. Sacoleja os braços e move as pernas do mesmo jeito? A voz é igual, inclusive os vícios de linguagem? A expressão facial é parecida? Os tiques nervosos? E a coisa vai se aprimorando a cada nova versão até o “criador” ficar satisfeito com a “criatura”.

 

O impacto disso pode ser devastador, sobretudo no campo político (ou pornográfico, sem querer ser redundante), onde vira e mexe imagens falsas são veiculadas nas redes sociais e causam danos terríveis às vítimas, desde raposas felpudas até os mais vulneráveis, como crianças e idosos.

 

Descobrir traços imperfeitos nesse tipo de mídia manipulada constitui um desafio, mas podem ser identificados procurando-se “saltos” bruscos no vídeo, mudança na entonação da voz, baixa qualidade do áudio, membros com formas desproporcionais, essas coisas.

 

E não precisa ser expert no tema para distinguir o que é verdadeiro do que é falso. Quando um vídeo lhe parecer suspeito, experimente diminuir a velocidade, reveja uma ou duas vezes e se pergunte: isso pode ser real? É natural que aconteça? 

 

Em seguida, veja se encontra o enredo do “filme” em fontes alternativas confiáveis. Uma breve pesquisa lhe dirá se você está diante de algo verdadeiro ou falso. Se houver outra versão, compare. Enfim, se desconfiar de um vídeo (ou de uma imagem), lembre-se de que o velho e sábio Google ajuda muito.

 

O importante é você saber que a maior ameaça dos deepfakes está na forma de lidar com ele. Conectada 24 horas por dia, a sociedade vem se empanturrando desses monstrengos virtuais e quase sempre aquilo que passa adiante (por inocência ou má-fé; mas sempre ávida por isso!) é narrativa mentirosa. 

 

A desinformação, aliás, objetiva justamente espalhar dúvidas, reforçar crendices ou se opor de forma antidemocrática a outras ideias. E numa nação onde a maior parte das pessoas (inclusive pertencentes às castas dominantes) não lembra nem do título do último livro que leu, pouca gente se dá ao trabalho de verificar se imagens e sons foram retirados de contexto, editados ou encenados. Especialmente se o que viu reforça seus credos. 


Pior que tudo: algumas figuras desonestas tiram proveito desse ambiente saturado de ignorância e obscurantismo. A mera existência dessa tecnologia lhes faz jurar de pés juntos que tudo o que disseram é falsificação. "O diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém" (Shakespeare).

 

Você deve lembrar de um ex-presidente norte-americano que alegou ser “uma farsa” – ainda que, anos antes, tenha se desculpado pelo vacilo – a gravação na qual, referindo-se às mulheres, diz: “...eu sou atraído pela beleza... Simplesmente começo a beijá-las. É como um imã. Simplesmente beijo… E quando você é famoso, elas deixam você fazer isso. Você pode fazer qualquer coisa”.

 

Ufa! Ainda bem que não temos por aqui esse tipo de gente, capaz de tudo. Poderia querer se aproveitar da evolução espantosa e fatal dos parvos para atingir objetivos nada republicanos. 

quarta-feira, 30 de março de 2022

Batuque dobrado

Esta semana revi o documentário “Pelé”, dirigido pelos britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas (disponível na plataforma Netflix), mesmo sabendo que não traz novidades sobre a carreira do Rei do Futebol. 

Explicação para a ausência de fatos inéditos: embora o “monstro” tenha emergido, nos confins da Via Láctea, na metade do século passado, quando a televisão ainda engatinhava entre nós, a sua trajetória foi fartamente documentada com a criação do videoteipe nos anos 1960. Seus feitos mereceram ampla cobertura jornalística e grande parte está no YouTube


Como não existe lenda sem mistério, resta inédito o que é considerado, pelo próprio autor, seu gol mais espetacular, na vitória do Santos por 4 a 0, diante do Juventus-SP, no dia 2 de agosto de 1959. Sobrevive apenas na memória de poucas testemunhas e em nossa imaginação.


Apesar do risco inerente à biografia de pessoas vivas – o passado pode mudar a qualquer momento –, vale a pena rever a saga de um mito em carne, nervos e ossos, já machucado pela brutalidade do tempo, preso ao andador ou à cadeira de rodas, sem o brilho de antes nos olhos. 



Contraste tocante para aquele cujas condições atléticas transcendiam as exigências do esporte, isso mexe com quem o viu gingando, correndo, saltando, sorrindo, marcando gols e mais gols. Tanto mais quando o herói entra em cena batucando um dobrado numa caixa de engraxate, a despertar dentro de si a criança que ajudava o pai no provimento da casa, antes de transformar-se num cidadão cosmopolita, conhecido do Afeganistão ao Zimbábue.   


O documentário explora algo que Pelé sempre relutou em fazer: opinar sobre a “redentora”. Não mente quando diz que sua vida continuou a mesma depois do golpe militar de 1964. Os produtores até tentam compará-lo ao boxeador Muhammad Ali, que na mesma época bateu pesado no governo norte-americano, por conta da Guerra do Vietnã, como se o ídolo devesse pedir perdão aos brasileiros por não ter agido da mesma forma contra a ditadura militar. Não fazem ideia, óbvio, do que lhe poderia acontecer.


Os contextos de liberdade de expressão em que viviam Pelé e Ali eram bem distintos. Quem agiria de outro modo se tivesse a mesma origem, a mesma trajetória e fosse tido como um semideus em sua aldeia? Seus críticos, no entanto, gostariam de ter visto somente gestos inatacáveis. 

 


É dolorido, sim, para muitas famílias, rever o lendário jogador abraçando o general Médici, após a conquista do tricampeonato no México, em 1970. Na época, os militares sabiam que a imagem do Rei seria impagável para projetar 
slogans ufanistas do tipo: “Brasil: ame-o ou deixe-o” ou “Este é um país que vai para frente!”.

 

Os “deslizes”, se houve, relacionados a questões políticas e pessoais (por exemplo, a paternidade não reconhecida de Sandra Regina Machado, cujos traços dispensavam testes genéticos), não diminuem o tamanho do atleta que alcançou nível incomparável, apesar dos vacilos humanos, queiram ou não seus críticos.  

 


Após o fracasso da seleção na Copa de 1966, na Inglaterra, Pelé declarou que nunca mais participaria de um Mundial. O documentário sugere que teria mudado de ideia por causa de pressões dos quartéis. Nada mais falso e injusto! Cineastas também são humanos e vacilam. Na cabeça do Rei, além da coroa, ainda pesavam o vexame da desclassificação e o medo (a mais elementar das sensações) de novo fracasso.  

 

Mas tinha apenas 25 anos. Era natural que disputasse pelo menos a Copa seguinte, independentemente da vontade dos quartéis. A vitória épica na Copa de 1970, portanto, se deve a ele e a um timaço de coadjuvantes (jogadores e comissão técnica) jamais visto na história do futebol. Nunca ao esquadrão verde-oliva, que tinha outras preocupações na alça de mira.


De lá pra cá, a coisa piorou bastante na aldeia. Hoje, o individualismo, a mentira e a vaidade saltam aos olhos em todos os quadrantes da cena nacional, inclusive no futebol, aqui por conta da overdose de dinheiro, para dizer o mínimo, de procedência duvidosa. 

 

Não se sabe se o jogador que está na vitrine, atuando como titular de um time, é aquele que possui o empresário mais influente ou o atleta mais talentoso, mas que se recusa a jogar esse jogo. E isso contamina o ar até nas categorias de base, onde pequenos aspirantes à fama e à fortuna passam a inalar desde cedo dessa imundície. 

  

Para alguns pavões misteriosos, com seus cortes bizarros de cabelos, barbas e sobrancelhas, brincos, piercings e tatuagens até sobre a última vértebra da coluna dorsal, ter um número expressivo de seguidores e de curtidas em posts nas redes sociais é mais importante que um gol de bicicleta no minuto final de uma partida, ou servir de exemplo para uma criança com um par de chuteiras nos pés e a cabeça nas nuvens. 

 


Por isso, bateu uma vontade danada de rever o documentário, em especial o gol do moleque chorão, aos 17 anos, na final da Copa do Mundo contra a Suécia, em 1958: ele recebe a bola pelo alto, amortece no peito, dá um chapéu no zagueiro, toca por baixo do goleiro e corre para receber o abraço dos parceiros. Para espanto do resto do mundo.

Parece fácil, como batucar um dobrado numa caixa de engraxate. A lição sabemos de cor, mas quem disse que aprendemos? 


quarta-feira, 23 de março de 2022

Ela nunca soube dele

Circulou na internet, outro dia, a notícia de que o único hospital público da cidadezinha italiana de Catanzaro descobriu que um de seus funcionários faltava ao trabalho havia 15 anos. Durante o período, continuou constando na folha de pagamento, com salário integral. Parou de comparecer logo após ser contratado e teria recebido nada menos que 530 mil euros, cerca de 3 milhões de reais. 

O nome não foi revelado, mas o sujeito acabou acusado de fraude, extorsão e abuso de poder. Ainda em 2005, ele teria ameaçado o chefe para que não preenchesse o relatório de avaliação e disciplina de forma desfavorável. E depois que o chefe se aposentou, nem o sucessor nem o RH notaram a ausência.

  

O caso italiano me remeteu ao que acontecia nas catedrais bancárias que havia nas grandes cidades brasileiras, onde centenas de pessoas se espalhavam por vários andares, cada qual com sua sacola de interrogações sobre a vida.

 

Conta-se que uma sucuri de oito metros se escondeu no almoxarifado de um desses templos e se mantinha viva porque, de três em três dias, esmagava e comia uma pessoa. Como eram muitas, ninguém dava pela falta até o dia em que caiu na besteira de escolher o rapaz que servia cafezinho – esse, sim, imprescindível à rotina dos trabalhos. O gerente e dois chefes já haviam sido degustados, sem que ninguém se incomodasse com ela. 

 

Lenda urbana, óbvio, mas quando trabalhei na agência do Banco do Brasil em Maceió, na metade dos anos 1970, conheci Gabo (vou chamá-lo assim porque, se ainda estivesse entre nós, de rosto lembraria o rapper Gabriel, o Pensador), um caboclo sorridente com aparência de indiano, olhos apertados, barba rala e bucho de lâmpada. Parecia ter o dom da invisibilidade: ninguém notava, mas ele não perdia uma estreia no Cine São Luiz, isso em pleno horário do expediente.

 

No já distante 1974 em que a nação ansiava por liberdade – o ano anterior é reconhecido como o de maior repressão do regime militar –, fazia tremendo sucesso um produto genuinamente nacional: a pornochanchada, que derivou da chanchada, gênero cinematográfico onde predominava um humor inocente e popular.



As chanchadas apareceram entre os anos 1940 e 1960, revelando nomes como Adelaide Chiozzo, Anselmo Duarte, Emilinha Borba, Grande Otelo, Oscarito e Zé Trindade. Já as pornochanchadas vieram nas décadas de 1960 e 1970, destacando-se Vera Fischer, Otávio Augusto, Sonia Braga, Jorge Dória, Selma Egrei, entre outros.

 

Com roteiros rasos, focados em situações eróticas, maliciosas, algumas cenas de nudez nada explícitas, os donos de cinema dispunham de material abundante (e bota abundante nisso!) para lotar as salas por várias semanas. 

 

Tudo caminhava bem para eles até que os ventos mudaram com um surto de locadoras de vídeo e com a profusão de novos cultos pentecostais, envolvendo congregações que tomaram de assalto centenas de prédios na bacia das almas da recessão econômica no final dos anos 1980.

 

Mas voltemos a Gabo. Ao entrar em cartaz “Anjo Loiro”, protagonizado pela atriz Vera Fischer, ele escapuliu logo após o almoço na própria agência e foi assistir à primeira sessão. E como gostou! Tanto que, antes de voltar à labuta, resolveu comemorar com algumas tulipas no Bar do Chope (quase vizinho ao banco), por certo lembrando das cenas mais picantes.

 

Naquela tarde, apesar do calor, o tempo passou ligeiro. Quando deu por si, alguns colegas já tomavam o rumo de casa. Então pediu a conta, acendeu outro cigarro, levantou-se e saiu trôpego em direção ao ponto de ônibus na praça da Catedral. Não sem antes passar novamente defronte ao Cine São Luiz. Precisava rever o cartaz do filme. 



Gabo chegou cedo ao trabalho na manhã seguinte e assinou o ponto como se nada tivesse acontecido. E nada aconteceu mesmo, exceto a ressaca vulcânica cobrando um pote de água gelada, além da constatação de sua absoluta insignificância no pedaço. Sua ausência na tarde anterior passara despercebida até pelos comparsas de copo. 

 

Um deles, entretanto, que padecia do mesmo grau de invisibilidade corporativa, sensibilizado com a tristeza de Gabo, ofereceu café com pão e o ombro. E ouviu seus “ais”:

– Tô pouco ligando para o que pensam! – exclamou Gabo, conferindo de rabo de olho o entorno.

– Não entendi... 

– Duro é ela nem saber que existo… 

– De quem você tá falando?

– Ai, ai… – suspirou, inconformado – Se Verinha soubesse e topasse, teria casa, comida, roupa lavada, plano de saúde e pensão... Pro resto da vida.

– O que você sente, você atrai. O que você acredita, torna-se realidade, bicho! – filosofou o colega, admirador do astrólogo e radialista Omar Cardoso, para quem todos os dias, sob todos os pontos de vista, se dizia cada vez melhor.

 

Gabo, não. Durou pouco e cada vez pior. E sua musa, imagino, nunca soube dele. 

quarta-feira, 16 de março de 2022

Choro e ranger de dentes

Do jeito que as coisas andam, em breve assistiremos  em bares, telas e lares, a animais supostamente racionais se atacando a mordidas, entre grunhidos e rosnados. Isso, óbvio, caso prevaleça o bom senso: não se opte por algo mais natural aos seres humanos como o emprego de armas (brancas ou de fogo) para aplainar diferenças de opinião, inclusive entre membros de uma mesma família.

 


Não será novidade para quem, como nós, vimos o
ex-atleta corintiano Emerson Sheik quase arrancar um pedaço da mão do argentino Matías Caruzzo, do Boca Juniors, na final da Copa Libertadores de 2012, no estádio do Pacaembu, em São Paulo. Ou o zagueiro italiano Giorgio Chiellini, sentado no gramado da arena das Dunas, em Natal, urrando de dor com o ombro cravejado pelos dentes do centroavante uruguaio Luis Suárez, na fase de grupos da Copa do Mundo de 2014. Ou, mais remotamente, o ex-pugilista norte-americano Evander Holyfield, em 1997, na arena MGM, em Las Vegas, nos Estados Unidos, espumando de raiva ao ser abocanhado por Mike Tyson, que lhe rasgou um pedaço da orelha e cuspiu no chão, o que só aumentou a dor da ofensa. 


Nos três episódios, um detalhe em comum me chamou a atenção: nenhum dos canibais utilizou um pedaço de fio dental ou um palito para limpeza da arcada dentária, higiene mínima antes da próxima investida. Nem mesmo aquela escovinha básica com as cerdas desgastadas e nojentas.

 

Mordeduras humanas são mais frequentes do que se imagina. Andei lendo sobre o assunto e descobri que ocupam a 3ª posição entre as dentadas de mamíferos mais comuns, atrás apenas das ocorrências envolvendo cães e gatos. Os bichos (inclusive o da Receita Federal que nos morde sem dó todo santo mês), entre latidos e miados, têm a seu favor o fato de não possuírem repertório de palavras e gestos para aparar as arestas numa discussão. Desconfio, aliás, de que Lobão (não o cantor e compositor de “Me chama”, mas um poodle que havia lá em casa) se fazia de surdo só para não ter que me trazer jornais, revistas ou água.

 

Em crianças, ao que apurei, os estragos causados pelas dentadas são mais corriqueiros nos braços e nas mãos, no tronco ou no rosto. Já em adultos e adolescentes, nos membros superiores, principalmente quando do revide a murros ou tapas contra a boca. 

 

Em adultos, cerca de 15% das lesões por mordidas curiosamente acontecem durante as estripulias sexuais. Os experts não deixam claro quais seriam as partes mais afetadas nem se isso estaria ligado à fúria ou ao prazer dos envolvidos. Se bem que, tirante aquelas pessoas que nunca experimentaram da fruta ou não sabem do que estou falando, todos fazem ideia de como essas coisas acontecem.

 

Descobri que os molares do ser humano podem apertar mais de 100 kgf (quilograma-força). Superam inclusive o orangotango, mas ficam atrás do chimpanzé e do gorila, por exemplo. Não são as mordidas mais perigosas e temidas do reino animal, porém são capazes de causar lesões graves e amputações em dedos, nariz, lábios, orelhas e até órgãos genitais, onde a pele é mais fina e sensível, por supuesto

 

Pior que a boca do agressor abriga uma vasta comunidade microbiana, com muitas bactérias que se fixam na mucosa, na língua, na gengiva e nos próprios dentes, entre as quais Staphylococcus, Streptococcus pneumoniae, Treponema pallidum, etc. A depender da “pegada”, quando algum desses micro-organismos cai na corrente sanguínea da vítima, é aí que o bicho pega. Literalmente.

 

Pois bem. Se a mordida do ser humano, que possui 32 dentes (mais que cão ou gato), produzir mais que um rasgo superficial, atingindo articulações e tendões, há risco de causar graves problemas, como hepatite, sífilis, tétano ou tuberculose. O bafo-de-onça aqui é o de menos! 


Podem argumentar que estou sendo exagerado, paranóico, mas, insisto, do jeito que as coisas andam... A língua, por mais afiada que seja, corta bem menos que os dentes. E a forma como certos homens públicos (e seus seguidores) se olham ou se referem aos adversários me leva a crer que estamos prestes a assistir a milhares de mordidas furiosas, com direito a choro e ranger de dentes na fornalha eleitoral que vem aí.


O ser humano é tido como animal racional porque reflete e possui o dom da fala. É criado solto, sem coleira nem focinheira. Mesmo assim, vira e mexe morde o seu semelhante. E é mordendo que ele acaba revelando o animal que é. 

 


quarta-feira, 9 de março de 2022

O último ao cair da noite

Vem de longe a paixão pelo futebol, desde o vexame na Copa do Mundo na Inglaterra, em 1966.  Aos oito anos, passava férias no sítio onde viviam meus avós maternos, à margem do rio Paraíba, quando aprendi com um de meus tios a “ver” futebol ao pé do rádio. 


Ninguém imaginava que naquele 12 de julho de 1966, em Liverpool, berço dos Beatles, Pelé e Garrincha disputariam contra a Bulgária sua última partida, juntos, pela Seleção brasileira. Uma história curta e intensa de 16 jogos, com duas conquistas mundiais. E se os deuses da bola não reservaram melhor sorte para o Brasil, foram justos com os dois maiores gênios da bola forjados nos campinhos de terra batida do interior.

 


Pelé abriu o placar aos 15 minutos do primeiro tempo e Garrincha ampliou aos 18 minutos da etapa final, ambos em cobrança de falta. Mais tarde, pude rever nas páginas da revista Manchete o que a imaginação me antecipara pelo rádio.

 

Três dias depois o rei não pôde enfrentar a Hungria, recuperando-se dos pontapés sofridos na estreia. Sem ele, o Brasil foi derrotado por 3 a 1. Tentaria a classificação para a fase seguinte contra Portugal. Mas, com o craque de novo caçado em campo e nove alterações em relação à partida anterior, a Seleção perdeu pelo mesmo escore. 

 

Disseram que o fracasso teria sido castigo por causa da desorganização e da arrogância dos brasileiros (dirigentes, comissão técnica e atletas), convencidos de que eram os melhores e se repetiria o êxito dos mundiais anteriores, realizados na Suécia e no Chile. Engoli assim minha primeira frustração esportiva. Mesmo sem saber o que era “arrogância”, que me soava mais um desconforto na barriga. 

 

Quatro anos mais tarde, já em Alagoas, vi (pela TV) Pelé, Jairzinho, Gérson, Rivellino e Tostão encantarem o planeta com um futebol de outra galáxia. Aos 12 anos, a paixão revelava traços patológicos: obcecado até pelo cheiro de tinta da revista Placar, sabia de cor e salteado nome e sobrenome dos heróis que trouxeram do México, em 1970, a taça Jules Rimet. Mesmo sem saber da dor daqueles que sofriam com o sumiço por aqui de entes queridos.

 

Doze anos adiante, em 1982, o Brasil, que já havia conquistado três mundiais e se consolidara como principal potência no esporte mais popular do mundo, chegou à Espanha como favorito ao título, com um time excepcional (Zico, Falcão, Sócrates, Leandro e Júnior). Mas, aos 24 anos, meus vizinhos tiveram que ouvir meia dúzia de palavrões felpudos quando da queda da Seleção diante da Itália. Castigo pelos erros individuais e, de novo, pela soberba coletiva.

 

Vi também pela TV, em 1994, o tetra de Romário, Bebeto, Dunga, Aldair e Taffarel. E, em 2002, os Ronaldos, Rivaldo e Roberto Carlos conquistarem o penta. Porém já não éramos os mesmos: nem a Seleção, nem eu, àquela altura aos 44 anos, com os filhos criados. A vida embrutece paixões, desconstrói castelos. Deixa acesa apenas a lamparina da esperança com dois dedos de querosene, luz opaca e oscilante, como no sítio de meus avós ao cair da noite.

 

Quase 20 anos depois da última conquista mundial relevante, outro dia ouvi que “a Seleção se distanciou do torcedor". Foi Neymar, 30 anos – idade com que Pelé sagrou-se tricampeão mundial. "Hoje, a Seleção não tem mais a mesma importância, não sei como chegamos a esse estado", disse ele no podcast Fenômenos, apresentado pelo streamer Gaulês e por Ronaldo, hoje dono do Cruzeiro de Belo Horizonte. 

 

Em sua longa adolescência, Neymar não sabe, mas pouca coisa me encanta (ou espanta!) na terra onde os últimos ex-presidentes da “dona” da Seleção (a CBF) perderam o cargo envolvidos em escândalos de corar certos políticos. Ricardo Teixeira, José Maria Marin e Marco Polo Del Nero foram banidos por corrupção ativa e passiva. E Rogério Caboclo, por assédio moral e sexual. Talvez não tenha dado tempo de se igualar, na folha corrida, aos antecessores. 

 

Enquanto isso, a Premier League (Inglaterra), La Liga (Espanha), Bundesliga (Alemanha), Serie A (Itália) e Ligue 1 (França), brilham no topo das ligas de futebol mais organizadas e rentáveis do mundo, saboreando o crème de la crème, inclusive uma porção bem servida por expatriados brasileiros ainda crianças.

 

Faltam alguns meses para a Copa do Mundo Qatar – 2022. Não sou de rogar praga, mas penso que o Brasil nunca esteve tão próximo de repetir o fiasco ocorrido na Inglaterra, em 1966, voltando mais cedo para casa. O triunfo dos incapazes (ou desonestos) continua sendo apenas uma hipótese estatística. Ainda bem. 

 

Novo vexame pode ser o abano da brasa que ainda queima nos campinhos de periferia onde os times são escolhidos no “par-ou-ímpar”, não precisa árbitro e, pouco importa o placar parcial, ganha quem marca o gol da lua – o último ao cair da noite, o único que faz da guerra perdida a vitória arrebatadora. 

quarta-feira, 2 de março de 2022

Cabeças desocupadas

Meu vizinho outro dia apareceu na piscina do prédio com uma conversa esquisita que me deixou preocupado. Ele não é médico, mas é daqueles que adoram ler bula de remédios recém-lançados para encher o saco do farmacêutico da esquina, criticando o peso dos interesses econômicos na saúde pública. Coisa de cabeça desocupada.

 

Falava ele da natureza humana, que o homem (leia-se: a pessoa do sexo masculino, enquanto essa classificação fizer algum sentido) desde criança tem uma certa sensação de imortalidade. Passa boa parte da vida livre dos transtornos que a mulher sofre, o que o faz mais relaxado com a própria saúde. Com o tempo, porém, percebe que a coisa não é tão simples como ele imagina e passa a dar mais valor aos cuidados médicos preventivos.

 

O que mais mete medo no homem – prosseguia – são os problemas com a próstata, as disfunções sexuais e a decadência física, ressalvando que isso também mexe com a cabeça da mulher. Para meu vizinho, a mulher pauta a vida em função da beleza e o homem, da força e da virilidade. E quando surgem os primeiros sinais de fadiga do material corpóreo – fenômeno natural até no campo da Física –, ele constata que tem prazo de validade. 

 

Ao me ver atento ao que pregava, engoliu corda e passou a discorrer com fartura de detalhes sobre seus achados literários. Para ele, dos grandes temores do homem, o pior é o crescimento benigno da próstata, que ocorre praticamente com todos (até com os gorilas), exceto com os natimortos e os mentirosos. 

 

Após os 40 anos – enfatizava ele, já assumindo um certo tom pedagógico –, a danada da glândula aumenta de tamanho e pressiona o canal da uretra. Isso faz com que o sujeito comece a urinar várias vezes ao dia, a perder o foco numa reunião se estiver distante do banheiro e a levantar-se de madrugada uma ou duas vezes, comprometendo o sono e o humor no café da manhã. 

 

Mas garantiu que esse crescimento benigno é quase inevitável. Todos vão ter, se bem que apenas um terço acusará sintomas mais significativos, capazes de exigir suporte médico. Nesse caso, assegurou que existem remédios que desobstruem parcialmente a uretra e permitem urinar e viver melhor. E que só 5% dos homens necessitam de cirurgia para desobstruir a uretra. 

 

Ainda segundo meu vizinho desocupado e estudioso, o problema não tem origem claramente definida. Surge por conta de um desequilíbrio hormonal no homem maduro, quando as células do órgão se multiplicam desordenadamente. E não tem como prevenir, só remediar.

 

No final, praticamente nos obrigou – eu e meia dúzia de moradores do prédio, que prestava atenção ao relato – a rever os testamentos e procurar saber o custo de um jazigo, quando arrematou convicto: “todo homem que chegar aos 99 anos vai ter câncer de próstata”. 

 

Metade dos que estavam na mesa foi procurar o que fazer noutro lugar. A outra metade, encharcada de cerveja e caldinho de peixe, preferiu assistir pela TV da guarita da portaria aos requebros da inesquecível Clara Nunes, entoando “Morena de Angola”, em videoclipe de 40 anos atrás. 

 

Muitos ainda relutam em ir ao médico fazer exame de próstata e só vão quando a mulher os empurra. Conheço um médico, aliás, que me contou que até nisso o papel delas na vida dos homens é decisivo. Para o doutor, “quem tolerou bem 20 ou 25 anos e superou as encrencas da vida conjugal é um casal sólido e a mulher possui um senso de preservação da família bem mais firme que o do homem...” 

 


E complementou: “sempre falo a meus pacientes da existência de dois tratamentos: um que prolonga a existência dele, mas pode causar alguma desordem sexual. Outro, que cura menos, mas preserva mais. E quase todo homem balança antes de optar. A mulher nunca hesita. Prefere o que assegura um pouco mais de vida ao maridão, apesar do risco de sacrificar o mais barato dos prazeres. Nunca vi uma aconselhar o tratamento que dê menos chance de sobrevivência, desde que ele se mantenha duro na queda. Ela prefere preservar algo mais grandioso que construiu com ele…”

 

Pois bem. Se você quer saber por que a conversa com meu vizinho me deixou preocupado, sobretudo depois que a juntei com aquilo que havia me contado o tal médico, devo confessar que este texto é puramente ficcional. Esses personagens não existem.   

 

Ou talvez existam. Já não estou tão certo. Dúvida também é coisa de cabeça desocupada que não tem nada mais sério a fazer do que se deitar numa rede limpinha e cheirosa vendo o sol se pôr, sem pressa alguma de chegar aos 99 anos. 

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Eu sei e você sabe

Ele fingia na maior cara lisa! No Carnaval de 1972, deu a entender que gostava da folia e não largou minha mão nos três bailes, chegando a assobiar, no último dia, “Oh, quarta-feira ingrata, chega tão depressa, só pra contrariar... É de fazer chorar!”. Na hora, não percebi que o assobio era mais sinal de alívio e ironia.


Filho de um colega de trabalho de meu pai, eu o conheci ainda criança numa cidadezinha do interior, jogando futebol-de-botão com meus primos. Festeira desde cedo, quatro anos depois, naquele Carnaval, pensei com meus brincos e pulseiras: “Taí o cara!”. Se bem que nada rolou além de alguns abraços encabulados. Nem sequer um beijo – na época, matava-se a sede gole a gole –, mas me fez deixar de lado um relacionamento que eu mal começara com um rapaz bem mais velho que eu, que viajou em pleno feriadão. 

 

O “cara” era alto, magro, queimado de sol e faria 14 anos no final do mês. Na madrugada de Quarta-Feira de Cinzas, ele propôs:

– Fale com sua mãe… Passe lá em casa semana que vem, no sábado... 

– Por quê?

– A turma do bairro vai lá curtir os discos de Tim Maia, Roberto Carlos, The Fevers... Comemorar meu aniversário.

 


Dias depois, na base de dois-pra-lá-dois-pra-cá, dançávamos ouvindo a voz rasgada de Tim: “...Vou pedir pra você ficar/ Vou pedir pra você voltar... A semana inteira fiquei esperando/ Pra te ver sorrindo/ Pra te ver cantando...” E ele se fez de sonso:

– Quer?

– O quê? – me fiz inocente, mesmo correndo o risco de vê-lo me oferecer um pastel com guaraná.

– Você sabe...

– Sei não... Fale!

– Namorar…


Passamos o resto da adolescência tentando nos conhecer e fazendo planos. Em nada nos parecíamos. Ele, depois que o pai se foi, aprendeu a beber e a fumar, deixou o cabelo crescer e só estudava o bastante para passar de ano. Em 1974, resolveu trabalhar num banco e em pouco tempo queria se casar. Eu, fingindo não ter pressa, queria ser médica. Mas todos diziam que ele me completava e vice-versa. Mesmo fingindo gostar de dançar, de ir à praia...

 

No Natal de 1976, aos 19 anos, eu escondia a barriga com flores no trajeto entre a porta e o altar da capela. Era a segunda estação de uma viagem com destino incerto. Partimos num trem sem freios, sem padrinhos importantes nem crédito na praça, mas com o coração bem repartido entre a esperança e a razão.

 

Na viagem, demoramos alguns anos em cinco cidades diferentes e conhecemos, pelo menos, outras 45 pelo mundo afora. Entre 1977 e 1984, chegaram nossos três filhos. De 2008 a 2017, nossos seis netos. Queríamos ser pais e avós exemplares, mas fomos e somos aquilo que conseguimos ser. Nada mais.

 

Tem gente que até hoje me pergunta como é possível ficar tanto tempo com a mesma pessoa. Digo que não sei, ninguém sabe, mas imagino (sem muita convicção) que parte do segredo tenha sido nunca contar com a harmonia perfeita. Depois dos desencontros de opinião, é respirar fundo e jogar os dados novamente.

 

Não existe receita pronta. Sou instável, ele também, assim como nossos filhos e netos, o céu, o mar, tudo e todos. Preservar uma relação não é fazê-la morna, insossa, mas respeitar o vento, na tormenta e na calmaria. Os dois precisam arredondar quinas todo dia (e o dia todo, em caso de isolamento social inesperado), aparar as unhas, interessar-se por coisas que jamais teriam pensado em fazer antes do apito de partida do trem.


Acontece que isso requer doses generosas de maturidade, paciência e renúncia, que não se encontram na farmácia ou no supermercado. Vez por outra, pergunto a algumas amigas: há quanto tempo você não tenta conquistar de novo seu homem como se tivesse acabado de conhecê-lo? Por que insiste em falar de quilos e rugas que se vão acumulando desde o começo da viagem?

 


Descobri com o passar das estações que o importante não é ser a primeira mulher na vida de um homem, mas a última, a definitiva. E vice-versa. E até hoje faço de conta que não percebo o quanto ele sabe ser dissimulado, mesmo dizendo não ser poeta. 


Há sete anos, por exemplo, pouco antes de me aposentar, arrumava as gavetas num fim de tarde (por coincidência, meu aniversário) quando recebi uma mensagem com link para uma canção de Tom/Vinicius que acabou virando trilha sonora dessa viagem ainda com destino incerto (ouça aqui).

 

“...Eu sei e você sabe

Já que a vida quis assim

Que nada nesse mundo

Levará você de mim

 

Eu sei e você sabe

Que a distância não existe

Que todo grande amor

Só é bem grande se for triste

 

Por isso, meu amor

Não tenha medo de sofrer

Que todos os caminhos

Me encaminham pra você

 

Assim como o oceano

Só é belo com luar

Assim como a canção

Só tem razão se se cantar

 

Assim como uma nuvem

Só acontece se chover

Assim como o poeta

Só é grande se sofrer

 

Assim como viver

Sem ter amor não é viver

Não há você sem mim

E eu não existo sem você”

 

Esta semana faz 50 anos que estamos juntos. Ele nunca diz que me ama. Eu finjo que duvido.