Postagens

Corações indomáveis

Imagem
Quando menino, tinha medo de almas. Não de “anjinhos”, como se dizia no Sertão paraibano, onde todo ano centenas de crianças eram enterradas antes dos sete anos de idade. A diarreia e a subnutrição deixavam-nas só ossos, olhos e orelhas. Não corria esse risco. Filho de bancário, dispunha o suficiente para viver sem assombrações. Medo, mesmo, só de almas penadas de adultos.   Fui daqueles que viviam com o nariz escorrendo pelas calçadas das ruas onde morei, nu cintura acima, procurando o que aprontar enquanto não estava comendo, dormindo ou na escola. Ser um de nove irmãos de uma família remediada me deu o bônus (e o ônus) da quase invisibilidade perante uma mãe espremida por afazeres domésticos.   Álbum de família     Não sei de onde vinha o medo. Sei que, toda noite, antes de pegar no sono, tremia debaixo do lençol numa rede. No quarto iluminado apenas pelo luar, implorava aos céus que não me aparecessem com seus inconfessáveis propósitos.     Mas nunca esbarrei em almas nas madrugada

Veja bem...

Imagem
Sexta-feira passada, conversando numa live com Dedé Dwight, que ilustrou com belas imagens o livro “Frestas” ( Fontenele Publicações ), ele me perguntava sobre o que me levou a escrever e compartilhar textos neste espaço criado há quatro anos, depois de 40 anos no ofício bancário.     Dona Artemy, folheando "Frestas" Respondi ao filho de Dona Artemy que não sou (nem pretendo ser) um especialista em gramática ou em técnicas de redação. Talvez, por ter prestado bastante atenção ao que escreviam alguns colegas de trabalho, e ter sido leitor compulsivo de  O Pasquim  (em especial dos textos de Millôr Fernandes, Henfil, Ivan Lessa, Jaguar e Paulo Francis), aprendi a redigir melhor, ainda que tudo continue muito intuitivo, como “tocar de ouvido” sem conhecer teoria musical.   Reconheço que li menos do que deveria, mas tenho visto e ouvido lugares incomuns,  estranhas construções mesmo a olhos e ouvidos menos exigentes como os meus. E antes que a comunidade linguística me corte o p

A caipirinha derramada

Imagem
Você já parou pra pensar como seria uma  Disneyworld  por aqui? Talvez algum religioso endinheirado já tenha pensado nisso, mas faltou fé no retorno da grana a ser aplicada e optou por investir em campanhas políticas de terceiros. Ou viu que não seria fácil convencer seguidores, por mais fanáticos que sejam, a reajustarem o dízimo.   Titular do delírio etílico, escolho o local onde se desenrolaria a história: aquele que no período colonial era chamado de Nova Lusitânia ou Capitania de Pernambuco do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, abrangendo os territórios dos atuais estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.    Seria entre as praias de Pajuçara e do Gunga, onde você, ao pôr do sol, mergulharia em águas mornas, degustando uma caipirinha socada no açúcar mascavo, com tira-gosto de agulhinha frita, ouvindo pérolas instrumentais da obra de Djavan como “Oceano”, “Só eu sei”, “Um amor puro” ...    Claro que Mickey e Pato Donald não seriam os personagens

O direito de cochilar

Imagem
Eu não notei, a princípio. De fato, ele tinha atributos para virar um estelionatário de primeira grandeza, como tanta gente que circula por aí leve, livre e operante. Poderia, a vida inteira, desfrutar de grana, poder e glória. Ao pé da letra, estelionatário é aquele que consegue para si e os seus uma vantagem ilícita, em prejuízo alheio, via artifício ou outro meio fraudulento qualquer, de emissão de cheque sem fundos a falsificação de documentos.  Se descoberta, a punição prevista no artigo 171 do Código Penal provoca riso e estimula a reincidência: apenas cadeia de um a cinco anos e multa, irrisória, muitas vezes.   Quando criança, além de preferir cadernos de caligrafia a tabuadas, ele curtia desenhar a mão livre. Reproduzia quadrinhos extraídos de gibis de  Tarzan, Tex Willer e Tio Patinhas, usando   lápis e folhas de caderno de desenho, sem borracha. Mais adiante, captando expressões faciais de fotografias.    De tanto ver o pai assinar papéis e fichas gráficas que levava para ca

Melhor deixar pra lá

Imagem
Outro dia dei com os olhos numa notícia na internet que me deixou bastante curioso: “Wanessa canta música romântica de Katy Perry para Dado a caminho de retiro tântrico”.   Antes de saber o que seria retiro tântrico, quis conhecer melhor as figurinhas citadas e descobri que Wanessa, 39 anos, é cantora e compositora, cria da dupla Zezé de Camargo e   Luciano . Dado, 42 anos, de profissão incerta,   ignorada e não sabida,   é filho de grandes artistas: Carlos Eduardo Dolabella (falecido) e Pepita Rodriguez.  E Kate Perry, bem, não vem ao caso. Ela só entrou no caso com a música romântica.   “Mais não informo porque não me foi perguntado”, diria o sábio Google , deixando nas entrelinhas, entretanto, que o mencionado garotão puxara cadeia por conta de agressão física e insultos a ex-esposas. Na aldeia do culto à misoginia, não falta quem diga que elas fizeram por merecer.  Ou que ele tem boa  chance de uma carreira política de sucesso.   Logo  me veio à cabeça coisas indizíveis sobre o pro

Uma hora a gente aprende

Imagem
Pouco antes das oito da manhã de sexta-feira passada, ele varria o calçadão da orla da Ponta Verde, em Maceió. Do peito e da garganta surgiram vibratos poderosos ao cantar um antigo sucesso de Roberto Carlos: “... Como vai você/ Eu preciso saber da sua vida...”   Imagem: arquivo pessoal Não sei o que o mexia com ele. Se a lembrança da mulher amada, que o teria largado em busca de novas emoções, ou estaria em casa à sua espera, cuidando das crianças. Se o time do coração, no sufoco para garantir a permanência na série B do Campeonato Brasileiro, ou se apenas jogava ao vento o seu canto vibrante.   Sei que sorria, e qualquer um sabe que a música é capaz de reproduzir, da forma mais perfeita e acabada, a dor que rasga a alma de alguém ou a magia de um sorriso que derrete em questão de minutos rancores incrustados.    Em dado momento, ele fez da vassoura um microfone de pedestal, como se o sol que atiçava o alaranjado de sua roupa fosse os refletores de um palco imaginário, diante de uma p

Dever de casa

Imagem
Achei interessante uma tarefa escolar de Camilinha, filha adolescente de um amigo meu: entrevistar um idoso que não seja de sua família para saber quais seriam as “12 coisas mais desagradáveis da vida”. Na próxima semana, cada aluno da turma escolherá uma das respostas, para reflexão em sala de aula sobre como lidar com os mais velhos.   É incomum o estímulo à conversa entre jovens acerca do lado maçante da vida e suas múltiplas formas de atingir os mais próximos do desembarque. Se der certo, pode acelerar a maturidade deles com o exercício da empatia, de colocar-se no lugar dos outros.   Sem muito pensar, e para ajudar a menina linda e bem-educada a fazer, já na sexta-feira, o dever de casa previsto para o fim de semana, apontei “coisas” que me aborrecem bastante, aqui dispostas em ordem meramente alfabética porque troco uma pela outra e dispenso troco. São elas:    – Andar de bicicleta.  Existe uma incompatibilidade séria entre o selim e o último osso da minha coluna vertebral. Outro

Ajoelhou? Tem que orar!

Imagem
No calor das paixões que vêm de dentro, tem muita gente fazendo promessas ousadas para que seu clube alcance um objetivo como a conquista do título, o acesso à divisão superior ou a fuga do rebaixamento. A ansiedade é enorme. Conta-se, como na bela metáfora de Alceu Valença, que um novo tempo, mais brilhante, peito nu, cabelo ao vento, estaria por chegar.  "Um homem é um homem e um cascabulho de jaca é um cascabulho de jaca!", dizia um delegado de polícia que conheci em Pernambuco. E arrematava: "Um homem não tem que prometer nada a ninguém, mas se prometer, vai ter que cumprir".    Duas semanas atrás, o equatoriano Kevin Josué Mina Quiñónez, jogador de futebol que atua no Club Desportivo Real, de Santa Cruz de La Sierra, assumiu um picante compromisso quanto à situação de sua equipe no Campeonato Boliviano. Contratado para “pegar em armas, se preciso for” na guerra contra o rebaixamento no torneio, o bravo guerreiro prometeu aos torcedores que cortaria o pênis em c

Não ia dar certo

Imagem
Eu até me acho um sujeito decente e quase todo mundo também se enxerga assim. Reconheço, porém, que tenho certa facilidade em despertar antipatias: às vezes amanheço de mau humor, guardo fisionomias mas esqueço nomes, sou meio desatento (sobretudo quando estou na rua, “rascunhando” um texto na cabeça, sem lápis nem papel, e olho, mas não vejo, quem passa por mim).   Aconteceu há poucos meses, na área de embarque do aeroporto de Maceió. Vi um senhor de certa idade, nem alto nem baixo, barrigudo, cabelos de algodão, rosto largo. Lembrava um famoso médium dos anos 70, chamado Zé Arigó, mas com um bigodinho mais fino. Senti que o conhecia de algum lugar. Ele também deu sinais de me reconhecer. Parei para lhe cumprimentar, trocamos algumas palavras, enquanto eu me esforçava para localizá-lo nos desvãos da mente. "Lembrava... Zé Arigó" Fui ficando angustiado. Todo mundo que já viveu esse constrangimento sabe a que me refiro. Para disfarçar, tratei-o da maneira mais simpática que pu