quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

É, agora ela vem!

Faz parte do imaginário coletivo de Pindorama acreditar que constitui uma nação de 200 milhões de almas abençoadas, acolhedoras e cheias de graça, vivendo num paraíso miscigenado e igualitário. Pensar diferente soa impatriótico para alguns, seja lá o que isso signifique. Nos dias atuais, então... 

 

O culpado disso talvez seja o cidadão que compôs País Tropical na virada dos anos 1970, ufanista homenagem a carnaval, clima, futebol e até ao Cristo Redentor de braços abertos numa época nada redentora em que se enaltecia um povo ordeiro e inteligente, filho de uma pátria-mãe bonita por natureza, com um futuro maravilhoso. 

 

Reprodução/Redes Sociais

Hoje, sei não... Ainda que circulem nas redes sociais vídeos exaltando a inteligência e a criatividade do povo, com seu jeito macunaímico de ser, capaz de encontrar soluções simples para os problemas mais complexos. E o desfecho é sempre o mesmo: “Agora a NASA vem!” 

 

A menção à agência espacial norte-americana, claro, reporta-se a uma inteligência digna de ser esmiuçada, tão incomum que seria importante aprofundar estudos para que a mais poderosa nação do mundo não seja apanhada de surpresa.

 

Tenho motivos para acreditar que o povo de Pindorama anda retrocedendo intelectualmente a passos largos. 

 

Você, leitor ou leitora, acha inteligente um cidadão, que diz amar a Deus sobre todas as coisas, querer explodir um aeroporto em pleno Natal? Pior: usando tornozeleira eletrônica, instalar uma bomba num caminhão de combustível, convicto de que nunca seria descoberto? 

 

Cidadão, aliás, que até bem pouco tempo fazia um barulho medonho por causa da discussão sobre banheiro público unissex e, mesmo assim, passou os últimos meses acampado em frente a um quartel-general, produzindo obras líquidas e pastosas em cubículos compartilhados com todos, todas e “todes”. 

 

Por falar em “todes”, nesses tempos de linguagem neutra, até o “bom-dia” na abertura de uma reunião passou a ser desejado a todos, todas e “todes”. Perguntar não dói: não seria pouco inteligente (ou, no mínimo, um retrocesso) chamar a principal líder de uma empresa de presidenta? 

 

Eu já vinha chateado com o fato de que outro cidadão, endeusado por fãs como uma jazida moral acima de qualquer suspeita, teria gastado, nos quatro anos em que ocupou um determinado cargo público, nada menos que R$ 8,6 mil em sorvetes, utilizando um cartão corporativo cuja fatura foi paga por mim, você e outros milhões de contribuintes bestas (perdão pelo pleonasmo!).  

 

Uma semana após assistir pela TV a posse de um líder político antipatizado por metade da população, eu cochilava depois do almoço do domingo, 8 de janeiro, quando vi milhares de almas inconformadas com a vitória nas eleições da outra metade partirem para o quebra-quebra dos templos sagrados dos três poderes da República.

 

No dia seguinte, revendo as cenas do quase apocalipse de Pindorama, onde os seres vivos mais sensatos pareciam ser os cavalos da Polícia Militar, ficou claro: nem aborto, camisa-de-vênus, coito interrompido ou fingida dor-de-cabeça teria evitado tanta asneira. 

 

Entre os extremistas, não havia negros, homossexuais, portadores de deficiências ou povos indígenas, nem mesmo yanomâmis. Só “caras-pálidas” de bundas brancas, agora acampadas num retiro nada espiritual à espera de um milagre, talvez refletindo sobre “vasos turcos” no chão, aquele buraco que obriga o preso a ficar de cócoras para utilizá-lo.

 

Reprodução/Redes Sociais 

No contragolpe para responsabilizar os que tiveram participação concreta nos atos de terrorismo (inclusive com a “sábia” veiculação nas redes sociais de provas contra si mesmo), descobriu-se que um incauto cidadão guardou em sua própria casa uma minuta do documento que poderia decretar o natimorto golpe de estado. 

 

Fora isso, ao ser preso, no exterior, verificou-se nos registros alfandegários que até hoje ele teria sido o único turista que esteve nos Estados Unidos e não trouxe um celular novo, com o agravante de ter esquecido o antigo, como se fosse uma cueca suja ou um par de meias furadas. 

 

Cheguei a pensar que o turbilhão de asnices pudesse ser uma molecagem vinda “lá de cima”, partindo de alguém que neste mês completaria 100 anos: Sérgio Porto, ex-bancário falecido em 1968, que continua vivíssimo sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta. Com seu humor corrosivo e irônico contra os absurdos do regime militar, ele inspirou toda uma geração de jornalistas, escritores e chargistas com as crônicas que compõem o inesquecível Festival de Besteiras que Assola o País (Febeapá).

 

Digo isso porque a fonte de idiotices não para de jorrar. Esta semana, por exemplo, soube de uma estudante de medicina que está sendo investigada por dar um golpe em colegas da faculdade. Desviou quase R$ 1 milhão dos valores arrecadados para festa de formatura que não estavam sendo bem geridos pela empresa contratada, fez “aplicações ruins” e perdeu dinheiro. E, “inteligentemente”, tentou recuperá-lo em apostas lotéricas. 


Reprodução/Redes Sociais 

E acabo de ler numa rede social a mensagem de outro importante cidadão: “Para minimizar os efeitos das chuvas…, antecipamos o pagamento das parcelas atrasadas, pelo governo passado…”. Você, que me leu até aqui, sabe como se antecipa o pagamento de parcelas em atraso? 

 

É, talvez agora a NASA venha. A ciência precisa explicar o fenômeno. 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Filhos e pais

Meia hora antes da virada do ano-novo, no trajeto do Aeroporto do Galeão à Zona Sul do Rio de Janeiro, um motorista de aplicativos transporta um velhote simpático, franzino, calvo, que conta uma história curiosa.

Diz que, durante o voo, uma mulher escolhe uma forma inusitada de revelar ao marido que está grávida. O anúncio é feito pelo piloto do avião.

 

“Gostaria de parabenizar o passageiro da poltrona... pela informação sobre a gravidez de sua esposa, inclusive quanto à possibilidade de gêmeos”, disse o piloto.

 

A notícia rende aplausos dos demais passageiros e espanto do futuro pai, que recebe do comissário de bordo cópia do laudo do exame feito por ela. Os bebês, segundo o marido, surgem dois meses após a tristeza de um aborto espontâneo. 

 

O velhote, sentado na poltrona ao lado do casal, puxa conversa invocando um provérbio popular: “Benditos aqueles que conseguem dar aos seus filhos asas e raízes”. Pretexto para propor a eles que ajudem seus rebentos a terem a cabeça nas nuvens, mas os pés bem plantados no chão. 

 

Explora em seguida um pouco de Oscar Wilde, dramaturgo, escritor e poeta irlandês, para quem: “No início, os filhos amam os pais. Depois de um certo tempo, passam a julgá-los. Raramente ou quase nunca os perdoam...” Para o velhote, funciona assim desde que os seres humanos resolveram descer das árvores.

 

Como mulher e marido a tudo escutam atentos, anima-se e explora uma possível tese freudiana: “Eduque-os como quiser; de qualquer maneira há de educá-los mal”. A seguir, sustenta uma máxima balzaquiana: “A gratidão é uma dívida que os filhos nem sempre aceitam no inventário”. 

 

Nisso, uma voz no ambiente alerta: “Passageiros viajando com crianças ou alguém que necessite de ajuda, lembramos que deverão colocar suas máscaras primeiro para em seguida auxiliá-los. Esta aeronave possui seis saídas de emergência, observem a indicação dos comissários e identifiquem a saída mais próxima de seu assento...”

 

– Né por nada não, meu senhor, mas isso é comigo? – preocupa-se a futura mamãe.

– Calma, filha! É cedo. As máscaras só caem mais tarde...

 

O velhote lembra então de seu primo, um livre-pensador desaparecido havia mais de uma década, quando o jovem casal (ambos na casa dos 24 anos) ainda experimentava os primeiros amassos pré-adolescentes. 

 

Imagem: Dedé Dwight

Para seu primo, “Pais e filhos não foram feitos para serem amigos; foram feitos para serem pais e filhos”. Seria bom, portanto, que o casal soubesse disso desde já, quando a euforia de conceber um ser humano alimenta expectativas que quase sempre deságuam em frustrações.

 

Mas o velhote não quer ser chato – “Indivíduo que tem mais interesse em nós do que nós temos nele” –, azedar a conversa e ter que deixar o casal em paz, curtindo o seu momento de euforia e esperança. 

 

Evita, portanto, lembrar o que seu primo vivia repetindo: “Metade da vida é estragada pelos pais; a outra metade, pelos filhos”. Ou o conselho que oferecera ao próprio primogênito: “Fique certo de uma coisa, meu filho... Se você mantiver seus princípios com firmeza, um dia lhe oferecerão excelentes oportunidades de abdicar deles”.


Prefere reforçar que pai e mãe não deixa jamais de amar seus filhos quando crescem. Apenas brotam e enraízam decepções mútuas que antes não existiam e que causam estragos de cicatrização improvável.


E pondera: os próprios filhos discordavam bastante dele, mas até gostava de que fossem desobedientes. Afinal, todo casal precisa saber desde a gravidez que serão os bichinhos de plástico em que as suas crias afiarão as presas antes das primeiras mordidas.

 

Nisso, de novo, a voz no ambiente silencia a todos: “Dentro de instantes pousaremos no aeroporto do Galeão. Mantenham os encostos das poltronas na posição vertical, suas mesas fechadas e travadas. Observem os avisos luminosos de apertar cintos...” 


– Onde o seu primo mora? Quero conhecê-lo – diz o futuro pai, esquecido de que o “primo” falecera havia mais de 10 anos.

– Sei lá... Anda meio sumido. Dizem que continua por aí, espirituoso, irônico, provocador... Meteu-se um dia a ser desenhista, dramaturgo, escritor, jornalista, até se aposentar. Mas quase ninguém da idade de vocês sabe dele...

 

O velhote deixa o aeroporto apenas com bagagem de mão. Chegando em Ipanema, despede-se do motorista perplexo com o caso. "Ainda bem que meus filhos não me ouviram!”, arremata sorrindo. 


E desaparece numa esquina em meio à multidão que celebra a chegada do ano-novo. 

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Deus nos livre

Nos desencontros de opinião numa longa convivência, a pergunta que não cala, com sua inescapável conjunção alternativa: “você quer ser feliz ou ter razão?”  

Tenho um amigo que diz não entender a sem-cerimônia com que uma pessoa, às vezes acompanhada, resolve passar alguns dias na casa de outra, compartilhando a hora de dormir, de acordar, de comer e até de certas intimidades como falar sozinho, coçar os ouvidos ou fazer palavras cruzadas. 

 

Diz ele que não confia em quem usa o banheiro alheio, mesmo no aperto. Jura que nunca fez coisas mais substanciosas em locais públicos como aeroporto, estação rodoviária, posto de combustíveis e restaurante. E vive repetindo: “viajar é bom, mas voltar pra casa e sentar no próprio trono não tem preço!”

 

Imagem: Dedé Dwight 

Para algumas pessoas, a vida é leve, descomplicada. Para outras, como o meu amigo, tudo é problema, em maior ou menor escala. Elas são capazes de ir ao trabalho mesmo corizando, com febre, nunca dão o braço a torcer. Sabem que a torção do membro não passa de um surrado bordão.

 

Qual a consequência de avisar que não vai ao trabalho porque não quer dividir a virose com colegas? Nenhuma. Mas são exigentes consigo mesmas e, se assumem que irão entregar uma tarefa naquele dia – ainda que isso não salve ninguém do inferno, nem eleve o dólar ou derrube a Bolsa –, não admitem a “fraqueza”. 

 

Se são inflexíveis consigo, imaginem com as pessoas mais chegadas. Quem lhe telefona às dez da manhã desmarcando o almoço combinado para o meio-dia corre o risco de perder a amizade. Almoço, entenda-se, apenas pretexto para o reencontro de gente que se “fala”, via whatsapp, a qualquer momento. “Isso não se faz nem entre nora e sogra”, dizem. 

 

Essa gente cria expectativas que não aguenta ver frustradas. Se programa alguns dias de descanso numa praia, na volta vai reclamar de como ultimamente tem sido difícil viajar, vai criticar o aeroporto apinhado de emergentes ("um carnaval danado!"), falar da bagagem que custou a aparecer na esteira, do trajeto lento até o destino. Não lembra dos momentos paradisíacos que experimentou, talvez porque nem tenha percebido nada demais.

 

Quando inesperadas, até boas notícias contrariam essa gente. O imprevisto, ainda que seja agradável, causa transtorno. Renuncia a qualquer forma de prazer se tiver que lidar com o desconhecido. A vida flui insossa e morna, nem quente nem fria. Não quer se sentir muito bem porque, desconfia, o castigo vem a reboque. Rir alto de alguma situação é prenúncio de tristeza. 

 

Se caminha no calçadão pensando no que tem por fazer durante o dia, a semana ou o mês, caso encontre alguém sem maiores ambições, mascando chiclete, chupando picolé ou bebendo chope numa segunda-feira qualquer, essa gente se sente quase ofendida. Vai logo criticando o quanto aquele “desocupado” é irresponsável. Chega a praguejar: “mais tarde não se queixe e, principalmente, não venha pedir nada aos outros, já que só quer vida leve”.

 

Vida leve? Sim, daquela pessoa que, se você passa na casa dela na hora do almoço e não tem nada pronto sobre o fogão, diz que em quinze ou vinte minutos dará um jeito. E lhe pergunta se quer pão com ovo, presunto e queijo, ou mesmo um mexidão do tipo “trocando em miúdos” – as sobras de tudo que chamam lar. 

 

Mas “aquela esperança de tudo se ajeitar, pode esquecer”. Essa gente, como meu amigo, nunca chega de surpresa na casa de ninguém para que jamais cogitem retribuir a visita. Só de pensar na hipótese, bate cólica, enxaqueca ou uma urticária daquelas.

 

Duvido que você não conheça uma pessoa assim. Eu mesmo, cujas amizades cabem dentro de uma van, conheço mais de uma. Pior que não caíram do céu, como parentes. Foram escolhidas, uma a uma, e não abro mão de nenhuma delas. 


Deus nos livre dessa gente! Às vezes, não nego, bem parecidas comigo. Que Deus me proteja de mim mesmo nessas horas.

 


segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Não deu, rapaz

Preocupada comigo, Dona Eudócia, minha mãe, perguntou-me nesta segunda-feira, bem cedinho: “Quem é esse rapaz que faleceu?” 

 

De futebol, ela mal reconhece Pelé. Mas tinha acabado de ver um post nas redes sociais em que minha mulher aparece ao lado de nosso ídolo, Roberto Dinamite.



O “rapaz”, que se tornou sinônimo de gol e um dia até me fez sonhar ser jogador do Vasco da Gama, virou lenda. Aos 68 anos, tombou – guerreiros não morrem, guerreiros tombam – na manhã de ontem. 

 

Não aconteceu o que sonhei, no começo do ano passado, quando aqui contei – veja mais adiante – do dia em que conheci quem me fez amar mais intensamente o futebol. Minha mãe agora sabe disso.

 

Não deu, rapaz. Tem muito tempo que não choro. 

 

Golaço de ombro

 

Mal começa o ano e Roberto Dinamite, com o rosto pálido, olhos sem brilho, anuncia o início de tratamento para tentar derrotar tumores no intestino. E na onda de solidariedade que se forma, aparece Zico, no Instagram: “Bob, amigo... Você sempre foi um guerreiro e vai vencer mais essa luta fazendo um gol de placa... Queremos você sempre com o seu sorriso...”

 

Conheci Dinamite na noite de 06/10/2013, no Aeroporto JK, em Brasília. Ele, presidente do Vasco da Gama, chefiava a delegação do clube, que acabara de empatar em 1x1 com o Flamengo, no estádio Mané Garrincha. Eu participaria de uma reunião de trabalho na manhã seguinte, no Rio, e aguardava o embarque quando ele se sentou ao meu lado. 

 

Tomei a iniciativa de me apresentar. Logo, ele quis saber se havia como a “minha” empresa patrocinar “seu” clube sem a exigência de certidões negativas requeridas pela Caixa Econômica. Esclareci que a regra valia para todas as estatais envolvidas com marketing esportivo. E tocamos a conversa com amenidades, eu fingindo ser natural estar diante do maior ídolo esportivo de minha vida. 

 

A prosa ganhou cores e dores quando recordei momentos marcantes de sua trajetória profissional – boa parte extraída nas transmissões esportivas da Rádio Globo, no Jornal dos Sports ou na revista Placar. Alguns fatos nem ele lembrava, a ponto de brincar comigo: “Você sabe mais sobre minha carreira do que eu!” E sorriu largo, marca registrada do lendário artilheiro com mais de 700 gols em 1.110 jogos com a camisa vascaína, entre 1971 e 1989. 

 

Não era um centroavante técnico como Tostão, Reinaldo, Careca ou Romário, mas, de sua geração, nenhum fez tantos gols, graças ao porte físico privilegiado, à capacidade de colocar-se bem na área adversária, de antecipar-se aos marcadores e à potência explosiva do arremate, além de, a custo de muito treino, transformar-se em exímio batedor de faltas e pênaltis. 

 

Para Waldir Amaral, ícone do rádio esportivo, era “Dinamite... A camisa com cheiro de gol!”. Para Zico, "o atacante com quem melhor me entendi em jogos da Seleção". Os deuses do futebol, no entanto, tinham outros planos. Não permitiram que a dupla sequer tentasse evitar o fracasso nas duas Copas do Mundo em que estiveram juntos. 

 

Em 1978, na Argentina, Zico sentiu o peso dos gramados castigados pelos rigores do inverno e, substituído pelo esforçado Jorge Mendonça, viu do banco de reservas Dinamite balançar três vezes as redes adversárias, inclusive na vitória contra a Áustria, que livrou o Brasil de voltar para casa ainda na primeira fase.

 

E em 1982, na Espanha, Roberto descartado pelo treinador Telê Santana – que apostou no tosco Serginho Chulapa –, assistiu das arquibancadas ao Brasil perder para a Itália sem ter a chance de atuar 10 ou 15 minutos ao lado de Zico, Falcão, Sócrates, Leandro e Júnior, craques que em um palmo de campo e uma fração de segundo poderiam com Dinamite explodir a muralha italiana e desviar o rumo da história.

 

A conversa flanava por aí quando ele se referiu a Zico. Os dois são amigos há mais de meio século. “O Galo foi o maior jogador de meu tempo. Nós começamos na mesma época, no juvenil. Não foi só a relação Roberto e Zico. Os pais dele, seu Antunes e dona Matilde, iam sempre ao Maracanã vê-lo jogar na preliminar e os meus pais também iam me ver jogar”.

 

Disse mais: “Eu não o chamo de Zico, chamo de “Galo”. E ele não me chama de Roberto, mas de “Bob”. É uma relação diferente e a gente até brinca que não precisávamos falar mal um do outro para levar 100 mil, 150 mil pessoas ao Maracanã. Crescemos assim. Adversários em campo, mas, acima de tudo, amigos”. 

 

Evitei tocar num ponto quase trágico. Em 1972, aos 18 anos, Dinamite apaixonou-se por Jurema, viúva e com um filho, seis anos mais velha que ele. A família dele não aceitou o romance e isso o atormentava bastante. Um dia, então, quase marca um gol contra, segundo a revista Placar: engoliu de uma vez vários comprimidos que sua mulher usava. 

 

“Eu vinha guardando aquela angústia só para mim. Tomei uma dose reforçada de calmante, mas não tinha a intenção de me suicidar... Só queria dormir uns dois dias seguidos para me desligar do mundo” – declarou à Placar. Jurema, que o levaria às pressas ao hospital naquele dia, morreu em 1984, precocemente, vítima de insuficiência renal crônica, deixando órfãs três crianças.

 

Quase tudo passa. Dinamite casou-se de novo e, mais adiante, em 1993, fechou a carreira de futebolista, virou político (vereador e deputado estadual) e dirigente esportivo. Hoje, aos 67 anos, ocupa cargo honroso e intransferível: avô de Valentina e Bento.

 

O Galo, querido amigo de meu ídolo, sabe quanto um ombro é importante para o gol de placa pelo qual ele torce. Quem sabe assim o velho Bob volte a sorrir largo com as cores, as dores e os sabores da prorrogação do jogo. E aí iremos todos cantar de coração...

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Pode dar certo, entende?

Quase tudo já foi dito sobre Pelé desde quinta-feira passada, quando nos deixou. Felizmente, sua obra está registrada em narrativas audiovisuais, escritas e orais.

No dia seguinte, uma nordestina, negra, defensora das causas LGBT, foi escolhida para ser presidente do Banco do Brasil. A paraibana Tarciana Medeiros é a primeira mulher a ocupar o cargo em dois séculos de história da instituição.

 


O que uma coisa tem a ver com a outra? Aparentemente, nada! Mas
 ao reler a crônica adiante, aqui publicada há mais de dois anos (em outubro de 2020), vi que o desfecho contém algo premonitório: um choque de diversidade e inclusão.

Vai ver o Rei, sabiamente, já começou a marcar seus golzinhos no Céu, buscando reduzir desigualdades atávicas aqui na Terra.

 

Não ia dar certo, entende?

 

Na live “Pelé, 80 anos” apresentada outro dia pelo site UOL Esporte em homenagem ao aniversário do Rei do Futebol, o jornalista Cláudio Arreguy contou uma história deliciosa de como o mundo esportivo quase foi vítima do acaso e engrossaria o caldo das coisas que poderiam ter sido e não foram. 

 

Dizia ele que Dr. Prata, médico e pai do escritor Mário Prata, sugeriu a Dondinho, o pai de Pelé, que convencesse o filho a prestar concurso para o Banco do Brasil. “Futebol não dá futuro a ninguém! Bota o rapaz no Banco do Brasil que lá ele tem futuro garantido”. 

 

Apesar de a sugestão partir do único e respeitável médico da Bauru na metade da década de 1950, prevaleceu o saber popular: “Se conselho fosse bom...”. Note-se que, naquele tempo, não se imaginava que mais de meio século depois haveria “médico” aconselhando cloroquina para combater uma gripezinha sazonal. 

 

Posso até não discutir o estrago que o conselho do Dr. Prata a Dondinho, se acatado, causaria ao futebol mundial, mas me atrevo a imaginar o que teria acontecido ao cidadão Edson Arantes do Nascimento se tivesse obedecido a eventual orientação paterna. 

 

Com a bola que ele andava jogando, logo seria transferido para uma grande metrópole, passando a integrar o time de futebol de salão da AABB. E nos primeiros anos de banco não seria tão difícil obter uma licença especial para disputar jogos pela extinta CBD. Quem sabe até um publicitário condicionaria a liberação do atleta à exposição da marca da empresa na camisa canarinho, como ocorreria mais tarde envolvendo a CBV (vôlei), a partir das Olimpíadas 92, em Barcelona.  

 

Edson, porém, sabendo que a ação cruel do tempo sobre seus músculos e ossos uma hora decretaria o fim da carreira futebolística, cuidaria de preservar suas relações internas, admitindo até que alguns chefes dessem pitacos sobre sua conduta extra-banco. A empresa sempre teve seus sabichões das segundas-feiras que transitavam de teorias de Einstein sobre a interação entre espaço, tempo e gravidade, aos estudos sobre os múltiplos orgasmos de uma abelha-rainha.  

 

Por azar ou grande atuação de goleiros que jogavam contra a seleção brasileira, Edson deixaria de marcar alguns gols que certamente seriam incluídos entre os mais bonitos de sua jornada. Gols que não aconteceram, mas ficaram para sempre na memória dos amantes do esporte. 

 

Aos 29 anos e no auge de sua forma física, o funcionário do BB cedido à CBD viria a ser o grande protagonista brasileiro na Copa 1970, um autêntico “Nélson Mandela” a liderar a seleção na conquista de seu terceiro Mundial, que garantiu a posse em definitivo da taça Jules Rimet, roubada e derretida 13 anos depois, sinal claro de como o país cuida de sua história.

 

Na época, três goleiros passariam a ser conhecidos no mundo inteiro justamente por se envolverem – dois deles como coadjuvantes e o outro dividindo o papel de protagonista – em lances espetaculares de Edson, reconhecido mais tarde como o “Atleta do Século”.

 

Viktor, da antiga Tcheco-Eslováquia, quase levou um gol em um chute de Edson do campo de defesa brasileiro. O goleiro bem que tentou, mas não conseguiu fazer a defesa, e a bola passaria a poucos centímetros do ângulo de sua trave esquerda. Na manhã seguinte, imagino, um chefe de serviço qualquer ligaria para Edson: “Negão, vê se capricha na próxima e melhora o rendimento, tá legal?”

 

Mazurkiewicz, do Uruguai, tomou humilhante "drible da vaca" – também conhecido como “meia-lua”, “arrodeio” – na entrada da grande área. Mesmo desequilibrado, Edson ainda chutou cruzado, rente ao pé da trave direita, iludindo inclusive o zagueiro que tentava fazer a cobertura. Após a partida, creio, um gerente qualquer ligaria: “Você não tinha nada que enfeitar! Poderia ter feito o gol de fora da área, cobrindo o goleiro com uma cavadinha, sem frescura!”

 

Banks, da Inglaterra, por sua vez, defendeu uma cabeçada quase perfeita, interceptando em pleno ar uma bola que quicou antes, após um salto espetacular de Edson entre os zagueirões branquelos. Certamente um diretor qualquer do banco não perderia a oportunidade de cutucar o funcionário cedido: “Vacilou. Se tivesse cabeceado no contrapé do goleiro, no canto esquerdo, faria o gol...”

 

Logo depois Edson retomaria sua carreira bancária pressionado de tudo quanto era jeito – normas e rotinas de serviço desconhecidas, metas de vendas de produtos, avaliação de desempenho, colegas invejosos de suas tarefas extra-banco etc. Acabaria mais desorientado do que o goleiro italiano Albertosi, vítima de seu último gol em Copas do Mundo, na goleada de 4 a 1. 




De repente, Edson já não sorriria largo, leve, para os clientes. Nem veria graça num trabalho cheio de manuais de procedimentos. Teria medo de demonstrar insegurança ao prestar esclarecimentos e, quem sabe, suscitar dúvida em seu chefe imediato quanto à aptidão para a carreira. O que diriam Dondinho e Celeste se o filhão perdesse o emprego com futuro garantido de que falava o Dr. Prata?

 

Mas daria tudo certo. Se bem que Edson, que nunca vira motivos para denunciar os excessos da ditadura militar ou a existência de racismo no país, logo perceberia que metade da população brasileira é parda, mas isso nunca se refletiu nos quadros da empresa, circunstância que piora quando se fala da ocupação dos chamados cargos de confiança.

 

Hoje, oitentão, aposentado, Edson talvez refletisse sobre algumas questões para as quais não encontrou resposta no emprego com futuro garantido: por que nunca viu um presidente negro em tantos anos de carreira na empresa? E vice-presidente negro, por que só um em mais de dois séculos de história? 

 

Quem sabe até se perguntasse: e se ele, Edson, tivesse nascido em Dois Riachos, Sertão alagoano, fosse mulher, mestiça de caboclo com indígena, e se chamasse Marta, a história teria sido diferente? "Não ia dar certo, entende”, talvez dissesse.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Coisas profundas

Duas semanas antes do Natal de 1995, tia Ritinha (era assim que a chamavam) me contou que ouviu um barulho estranho na porta de casa, por volta das nove da noite. Foi até lá e deu de cara com dois desconhecidos. Preocupou-se com eles:

— O que cês tão aí no sereno? Entrem que a friagem não faz bem. 

 

Quase cega pelo avanço da catarata, 88 anos, ela tocava a hospedaria (com a ajuda de sua única neta) num casarão antigo cujo quintal dava para um rio temporário onde restavam apenas algumas poças barrentas sobre o leito de areia, capim seco e pedras, no Sertão pernambucano. Para cortar caminho até a praça da matriz, os moradores da cidade atravessavam o casarão, de porta a porta. 

  

Mário Édson (@meatelierdafotografia)

Sua neta, cerca de 30 anos, baixinha, simpática, tinha compulsão de limpeza e não podia ver uma coisa fora do lugar. Fora criada pela avó. Perdera a mãe havia muito tempo numa rara enchente do rio, ao tentar atravessá-lo pouco antes de uma tromba d’água que devastou em questão de minutos boa parte do lugarejo. 

 

No começo de 1996, estive na região por três dias. Avaliava o fechamento (ou não) de agências de dois bancos federais e um estadual que disputavam entre si os escassos recursos que ali circulavam.


Num fim de tarde, ouvi tia Ritinha perguntar a alguém que atravessava o casarão de porta a porta, pegando atalho até a praça:

— Tá com fome, filho? Vá lá na cozinha, fale com minha neta, coma alguma coisa, beba um copo d’água... Puxe a cadeira, descanse um pouco...

 

Do meu quarto, bem cedo, já havia visto quando ela acertava as contas com o leiteiro. Quem pagava e quem recebia não tinha a menor intenção de enganar ninguém:

— Quanto tem aí? — Ela perguntou, olhando pro nada, a repassar algumas cédulas.

— 30...

— E agora?

— Inteirou 50. Faltam 15.

— Pronto! Pegue aqui...

— Sobrou, comadre. Tá aqui o troco.

 

Na noite em que os desconhecidos apareceram em sua porta, após acender a luz da sala e convidá-los a se sentarem, sentiu pena:

— Tão imundos! Precisam de banho. Venha cá, meu filho, pegue toalha e sabonete, corra pro banheiro e tire este grude. E cuide pra não escorregar...

 

Em seguida, acariciou a cabeça do outro:

— Coitado... Tu deve tá morto de fome. Vou esquentar a sobra do jantar. Tem galinha guisada e inhame.

 

Mais tarde, eles se entreolharam sem saber o que falar. Ela quebrou o silêncio:

— Cês vão dormir aqui na sala, um aqui no sofá e o outro naquela rede. Os quartos estão arrumados pros hóspedes que chegam amanhã. Agora, vou rezar antes de pegar no sono... Boa noite!

 

Era madrugada quando eles acordaram com o bater de asas do galo no quintal. Na cozinha, a mesa já estava posta por dona Ritinha: cuscuz, pão, ovos e café com leite. 


Um deles foi direto ao ponto:

— Quer dizer que a tia nem imagina o que a gente veio fazer por aqui?

— Deixe de conversa fiada, meu filho! Sente aí, coma e mais tarde cuide de arranjar um serviço que é o melhor que cê faz. E bote um boné que o sol tá um horror!

 

Do jeito que chegaram, eles partiram. Nunca mais foram vistos na região. Ela se queixou: 

— Essa gente é mal-agradecida mesmo! Some no mundo sem se despedir… Que coisa, hein?!

— A senhora, pelo menos, perguntou o nome deles? — eu quis saber, imaginando o que poderia ter acontecido com ela e a neta numa noite em que não havia hóspedes na casa.

— Precisava mesmo, filho? Já era quase Natal… — respondeu, afagando um gato que dela não se afastava.

 

Fiquei sem compreender direito o que fazia ali, defendendo "interesses de mercado" (leia-se, de acionistas minoritários do banco que me empregava), que não enxerga com bons olhos manter agências  naquele “fim de mundo”, mesmo sabendo que isso condena esses lugarejos à escuridão da desigualdade e da miséria.


"Tentei descobrir na alma alguma coisa mais profunda do que não saber nada sobre as coisas profundas. Consegui não descobrir", diria o poeta Manoel de Barros. 

 
Voltei para casa comovido com a generosidade dessas sertanejas. Querer compreender certas coisas só apequena ainda mais a vida rasa e miúda que a gente leva. 

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Cobras, lagartos e mercadores de ilusões

Não entendo quase nada de marketing. Portanto, as considerações a seguir são feitas por um aprendiz esforçado e metido, jamais um craque no assunto. E creio que minha condição é partilhada pela maioria de vocês. Feito torcedores de mesa de sinuca, temos teorias que julgamos perfeitas, mas, com o taco nas mãos, o buraco é mais apertado.

 

Na busca por notícias na internet, esbarro a toda hora em links que atiçam a mais elementar carência dos seres vivos: a busca pelo bem-estar. Surgem mais ou menos assim: “Esta fruta poderosa pode fazer sua glicose baixar para...”, “Falhando na hora H? Isso pode te ajudar...”, “Sofrendo com zumbido no ouvido? Temos a solução...” “Uma dose todas as noites para ter uma próstata de criança...”.

 

A captura da suposta necessidade dos internautas acontece com o uso dos chamados cookies (arquivos que os sites hospedam em computadores e celulares, indicando que o usuário já navegou sobre determinadas páginas da rede). É a técnica chamada de retargeting (em tradução livre, “mirar de novo”). Equivale ao que fazia do vendedor de enciclopédias de antigamente um chato de carteirinha.

 

A propósito da velha expressão “chato de carteirinha”, esses novos mercadores de ilusões me lembram os camelôs de drogas que havia nas feiras livres das cidades em que morei. Quem, como eu, viveu alguns anos no Interior ou em pequenas capitais, sabe do que estou falando.


Imagens: Jessier Quirino


No esforço midiático para despertar a atenção do público consumidor, mexiam até com répteis assustadores. Vem de lá a expressão “fala que nem o homem da cobra". 


Conheci um deles que recorria a cascavel, jararaca, jiboia etc. Aliás, a cascavel nunca cheguei a ver, porque estaria dentro de uma caixão de madeira, fechado. Ouvia-se apenas o tinido dos guizos, quando se tocava no baú. 


Ele se exibia com cobras enroladas no pescoço e nos braços. Oferecia uma pomada cicatrizante que, nos dias de hoje, provocaria uma revolução na indústria farmacêutica. Passava um canivete no dedo indicador, de onde escorria um filete de “sangue”. A matutada (eu no meio, óbvio) ficava boquiaberta. O gordinho descarado, sem pescoço, falava alto e ligeiro no microfone, apresentando uma bula bastante robusta: “...Serve pra dor-de-barriga, dor-de-cabeça, dor-de-dente, dores nas juntas, frieira, furo de espinho, olho embaçado, lerdeza do homem, papeira, queimadura, rachadura... É só esfregar… E custa bem baratinho...” Daí, untava o dedo “ferido” e, pouco depois, a pele reaparecia lisinha, nova. Um "milagre" diante da matriz da cidade, onde acontecia a feira livre às quartas e sábados.

 

Conheci outro, que vendia umas garrafadas (mistura de cascas, ervas e raízes) para alívio de "doenças" como “carnegão, catarro preso, lombrigas, prisão de ventre, regra atrasada, tosse de cachorro, unha fofa” e outras. Trazia numa caixa de madeira um filhote de jiboia e um velho teiú. Assim que juntava meia dúzia de fregueses, grunhia algo e chamava pela cobra:

– Salomé, querida, chegue mais, venha cá dar bom-dia ao pessoal!

Claro que a coitada, que não gosta de confinamento, saía com a língua em riste, perscrutando o ambiente. Em seguida, ele chamava o lagarto.

– Joca, venha cá, meu véio, dê bom-dia aos fregueses! Que preguiça é essa!


 

Num dia nada bom, a jiboia não atendeu ao chamado do camelô. Em seu lugar, apareceu o velho teiú, de olhos esbugalhados, com um barrigão, grávido. O camelô, desconfiando de que o filhote de cobra estivesse adoentado, abriu a caixa, conferiu e esbravejou:

– O fila-da-puta do Joca comeu Salomé! Que miserável!

– Se comeu, tem que casar! – sentenciou um matutinho indignado. Achava ele que a cobra estivesse chocando ovos, feito galinha. 

 

Li outro dia que os primeiros registros sobre o uso da maconha com fins medicinais são atribuídos ao imperador chinês ShenNeng, dois milênios antes da era cristã, que prescrevia o chá da erva para o tratamento de gota, reumatismo, malária e até memória fraca (parece comprovada sua eficácia, neste último aspecto, pois nos lembramos disso até hoje). 


A popularidade da Cannabis sativa como remédio se espalhou pela Ásia, Oriente Médio e costa oriental da África. Seitas hindus, na Índia, usavam-na para fins religiosos e alívio do estresse. Médicos da antiguidade prescreviam maconha para tudo, desde alívio da dor-de-ouvido até as dores do parto. 

 

Acho que os camelôs de drogas nas feiras livres sabiam disso no final dos anos 1960, inclusive porque negociavam discretamente uns cigarrinhos finos, escondidos junto ao fumo de corda para mascar ou combater pragas em hortas domésticas. Tudo pelo bem-estar de alguns fregueses. 

 

Não me lembro se a estratégia de venda desses cigarrinhos também envolvia cobras e lagartos. Eu era apenas um moleque curioso, entre 11 e 12 anos. Não entendia nada de marketing mesmo.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Só um cafezinho, vai...

Não sei de você, mas, para mim, um cafezinho após o almoço tem o atributo mágico de arrumar as gavetas internas onde guardo minhas conquistas e frustrações. Põe cada pedaço no seu devido lugar, separando frios e quentes, doces e amargos, rígidos e flexíveis, antes do cochilo dos desocupados. 

 

Ilustração: Dedé Dwight 

Outro dia me apareceram uma tontura e um zumbido nos ouvidos. O médico me tranquilizou dizendo que possivelmente se tratava de “um transtorno vestibular”. Achei que estivesse de gozação, dado que o último concurso do tipo em que me meti tem quase meio século. Mas ficou claro, logo depois, que falava de um conjunto de pequenos órgãos dentro do ouvido interno (sistema vestibular), responsável inclusive pela manutenção do equilíbrio do corpo. Da mente, nem se atreve! 

 

Confirmado o diagnóstico com exames complementares, o médico me encaminha a uma fisioterapeuta para fazer "reabilitação vestibular". Ela, então, de primeira pontua que seria muito importante para mim evitar café. E seu argumento me deixa pensativo: tudo o que se come ou se bebe todo dia, a vida toda, um dia o corpo cobra. Caro, às vezes.

 

Penso, mas nada digo: tirando água, canja e chá de hortelã, ela pode ter razão. No entanto, nem deve ter ouvido falar do lendário boêmio Zé do Cavaquinho, que alertava aos frequentadores de seu estabelecimento (“O Trovador Berrante”, em Viçosa, no interior alagoano) de que “em excesso, até água de pote faz mal”. 

 

Resolvo perguntar sobre possível substituto descafeinado, mas ela, de novo, me deixa reflexivo ao indagar se sou daqueles que acreditam que a indústria consegue, de fato, extrair 100% da cafeína, substância estimulante encontrada no café. 

 

Nem me encorajei a contar o que um dia ouvi minha mãe dizer com indisfarçável orgulho: antes de andar ou falar algo inteligível, meus olhos inocentes e semicerrados cintilavam de gozo e prazer diante de café com cuscuz e tapioca, entre uma mamadeira e outra de mingau de maisena.

 

Com o correr dos anos, já me fizeram abrir mão, a contragosto, de um alfabeto de cheiros e sabores que me remetem a lugares em que fui feliz e sabia disso: acarajé, bolacha de sete capas, bolo Souza Leão, broa de goma, buchada, caldo de cana, canjica, cerveja, chocolate, cocada, doce de leite, goiabada cascão, pamonha, pão doce, pastel de rua, pé-de-moleque, picolé de coco, quebra-queixo, rabada, rabanada, rapadura, sarapatel, sonho, suspiro, tapioca, umbuzada... 

 

Estou convencido de que uma pessoa só é totalmente livre quando pode beber e comer à vontade. Pior: até hoje, ninguém me pediu moderação no consumo de verduras e hortaliças, como se mastigar cebola crua não fizesse qualquer pecador ter uma visão prévia do inferno. Vá lá bem picadinha, no vinagrete, se o pernil de cordeiro estiver suculento e com pouco sal. 

 

Tem quem diga que café é rico em antioxidantes, minerais, vitaminas e flavonoides (mesma substância encontrada no vinho, que, há mais de dois milênios, animou a Santa Ceia). Falam até que a ingestão desse néctar poderoso ajuda o cérebro a liberar estimulantes naturais como a dopamina (o hormônio da felicidade, da motivação) e a adrenalina, associada à disposição e a euforia. 


Não boto tanta fé no que circula pela internet porque, quase sempre, existem fabricantes por trás investindo horrores em publicidade. Ou porque as descobertas científicas matutinas nem sempre batem com as vespertinas. Oscilam mais que humor de vascaíno em véspera de jogo decisivo.

 

Creio, no caso, em coisas mais práticas, intuitivas. Por exemplo, nunca vi ninguém cometendo um crime, uma maldade, uma grosseria sequer, enquanto segura pela asa uma xícara de café, lentamente inalando o vapor e admirando os desenhos que se formam sobre a espuma antes do derradeiro gole. 

 

Já não sinto qualquer tontura ou zumbido nos ouvidos, mas estou pensando seriamente em firmar declaração, de papel passado, em cartório e com firma reconhecida (para o caso de, um dia, nem com os olhos poder expressar minha vontade), assim: nos próximos 50 anos, se alguém quiser me obrigar a largar essa infusão dos deuses da mãe-natureza, não serei responsável pelos meus atos. Posso, inclusive, recorrer a um canivete que escondo desde criança em minhas bugigangas. 

 

Antes de consumada a desgraça, quem sabe a gente se senta, entra em acordo e toma um cafezinho (com pão de queijo, vai!) para celebrar a paz e a harmonia entre viventes inacabados e imperfeitos que somos, predestinados à inescapável hora de cada um. 


quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Bolas de Natal

Andam de mãos dadas pela primeira vez a Copa do Mundo e o Natal. Só os deuses do futebol (e os anjos das cabines de VAR) sabem aonde isso vai dar, inclusive para alemães, belgas, dinamarqueses, espanhóis e uruguaios, que já ficaram pelo caminho. Algumas imagens têm lugar cativo na tela da memória de milhões de crianças que, ao redor do planeta, amam uma bola de futebol acima de todas as coisas.   

 

Há muito tempo, ao ganhar de presente de Natal minha primeira bola, senti pelo peso do embrulho – com disfarçada frustração – que não era daquelas de couro com câmara de ar em que se passava sebo nos pontos para protegê-la da água, da lama, dos arranhões no campinho de terra batida ou no calçamento da rua.

 

Ilustração: Dedé Dwight

Era de plástico (vinil). Doía quando batia nas costelas, na barriga ou nas 
coxas, sem falar de outras partes em franco desenvolvimento. Corri pelas calçadas da imaginação encarando adversários, tentando fintá-los, um a um, até a esquina.

 

Finta é aquele lance individual no futebol, vôlei, basquete, boxe ou capoeira, em que bastam duas ou três gingas de corpo para desvencilhar-se do oponente. É fazê-lo acreditar num movimento de ataque ou defesa que não irá acontecer, dificultando sua reação ao que de fato vem em sua direção. É também uma habilidade comum em certas figuras públicas, diante do TCU, do STF ou, pior, da imprensa.

Nunca fui bom nisso.
 Meu dom de iludir floresceu noutros campos. Meu irmão Dula (Hélder), sim, foi craque. Na área esportiva, que fique claro! Baixinho, canhoto, ligeiro, quatro anos mais novo que eu, era doutor na arte da finta, com imperdoável requinte: o escárnio sobre os adversários enfileirados que queriam esquartejá-lo após firulas e risos de deboche. Só não conseguiam por conta da proteção de anjos da guarda bons de briga de rua: seus três irmãos mais velhos. 
Não fosse tão míope, Dula teria voado, com suas fintas, no céu do planeta da bola.


Por falar em fintas — que imortalizaram Carlitos, Garrincha e Muhammad Ali em diferentes campos artísticos —, dava para ver que se tratava de uma dança lúdica, de que algumas crianças já nasciam sabendo seus passos de cor e salteado, assim como choravam, dormiam ou mamavam. 

 

Esse “vou-não-vou... fui!” era aperfeiçoado na mais tenra idade. De tardezinha, quando o sol esfriava, na porta de casa surgia sempre uma mãe cansada e impaciente com uma chinela na mão em forma de ultimato, obrigando a meninada a correr para o chuveiro no melhor da brincadeira.

 

Muitas vezes, o medo de se molhar levava a dona da chinela — nada mais que uma zagueira sem jogo de cintura — a desistir da perseguição, mas não de uma advertência capaz de diluir a cera dos ouvidos daqueles que se faziam de surdos: "Tire o grude das orelhas, cabra safado, senão eu lhe pego depois..."

 

Sobre motivar as primeiras fintas diante dos obstáculos da vida, a chinela virava instrumento pedagógico bem mais razoável do que, por exemplo, a palmatória ou o cinturão. De ruim, só o vexame quando a lapada na bunda acontecia ainda na rua, na esteira da gozação de uma vizinhança nada solidária.

 

Mesmo assim, com todo respeito a quem pensa diferente, a chinelada continha inegáveis atributos psicológicos: restabelecia limites esquecidos e estreitava laços de afeto entre mães e filhos. Tanto que, dos sons que guardamos na memória, um dos mais nítidos é o daquele corretivo nas nádegas. Quando na bunda dos outros, inclusive, o som parecia ainda mais interessante.

 

Era indispensável que fizesse aquele barulho clássico que quase todo mundo já ouviu, sob pena de não surtir o efeito esperado nem ficar retido na lembrança. O estalo inconfundível seria a tecla play da trilha sonora de um choro sentido que na maioria das vezes desaguava num abraço pleno de amor, lágrimas e remorso.

 

Há quem diga que são necessários pelo menos 400 anos para que um objeto de plástico se decomponha e desapareça para sempre do meio ambiente. Se isso é verdadeiro, invoco o meu sagrado direito de interrogar a mãe-natureza: aonde foi parar a minha primeira “amiga do peito”? 

 

Ninguém sabe que fim ela levou. Se houve crime — Furto? Roubo? Esquartejamento e ocultação das partes? —, está prescrito, perdoado. No trem que partiu da estação de minha infância só me deixaram trazer algumas imagens que vagam, de novo, nas sombras de minhas recordações neste Natal.