quarta-feira, 8 de maio de 2024

Profetas de uma paixão

O escritor Graciliano Ramos, lá pelos idos de 1920, torcia o nariz para o futuro de uma paixão pela bola rolando de pé em pé. Preferia esportes hoje classificados como vintage, como a corrida a pé – útil inclusive para o ofício de roubar galinhas –, além de hobbies como o porrete e a pega de bois pelos chifres. Chegou a sugerir que se deveria elevar a rasteira ao status de esporte nacional, dada a nossa predisposição inata para a malícia e o drible na ética. 

 

Lima Barreto, outro escriba dos bons, também criticava a paixão pelo futebol, sob outro enfoque. Para ele, esse esporte seria um instrumento a mais de segregação racial. Se dentro das quatro linhas a coisa melhorou um pouco, de fora, os bárbaros continuam usando-o para vomitar sua bestialidade, como acontece de forma assombrosa em solo espanhol contra o jogador Vini Jr.

 

Mais que um jogo, para o cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues o futebol era um retrato de nossa humanidade profunda, com suas grandezas e misérias. As circunstâncias, os acontecimentos e os resultados foram descritos em seus textos como uma ópera ou um folhetim teatral. “Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos”, escreveu.

 

Ilustração: Umor

Assistir a uma partida nos dias de hoje virou maratona de paciência e resignação, seja no estádio ou pela TV. O VAR (Árbitro Assistente de Video, na tradução para o nosso idioma), essa promessa de justiça infalível, trouxe mais pausas do que soluções, transformando os jogos em tediosas sessões de análise. A emoção genuína do esporte está sendo trocada por debates insossos sobre precisão tecnológica. 


O futebol, desse jeito, se assemelha às ciências exatas, com estatísticas e análises frias predominando sobre a magia do imponderável, do sobrenatural. Só falta acrescentar a famigerada margem de erro, para mais ou para menos. 

 

Quando o árbitro desenha no ar aquela tela imaginária, a pressão sanguínea dos torcedores beira o colapso. O pênalti se consolida como tema para mesa redonda, com direito a análise, quadro a quadro, sobre “movimentos antinaturais e ocupação de espaço”. Descobri, inclusive, que sou totalmente inapto para alguns movimentos naturais, a exemplo de torcer o braço atrás do corpo ou cair com as duas mãos na cintura. 

 

Mas a era do tédio no futebol também deve ser atribuída ao número reduzido de gols – não deveríamos ficar satisfeitos com placar abaixo de 3 a 3, isto é, um gol a cada 15 minutos. Assim como às pausas dramáticas, muitas vezes para que o árbitro possa promover uma verdadeira “discussão de relacionamento” com os assistentes de vídeo, mesmo em lances incontroversos até para os cegos. 

 

Para a escassez de gols, existem propostas a partir de mudanças bastante simples. Por exemplo, admitir que os arremessos laterais sejam executados com os pés. Alterar a regra dos escanteios (passariam a ser cobrados do ponto em que a linha de fundo intercepta a linha da grande área). E introduzir punições por faltas coletivas (após a quinta ocorrência, seria marcado tiro livre da meia lua da área do infrator, sem barreira). 

 

Como acabar com a insuportável “cera” nas partidas? Nada melhor que dois tempos de cronômetro de bola rolando, com intervalo de 10 minutos e com menos jogadores em campo (10 de cada lado, inclusive o goleiro), reduzindo aquela ciranda sem fim na zona intermediária. Outra melhoria no ritmo de jogo seria punir com tiro livre o retrocesso da bola ao campo de defesa após cruzar a linha do meio-campo, estimulando mais os ataques e contra-ataques.

 

Essas mudanças dariam novo gás ao futebol, inclusive por incentivar o surgimento de novas estratégias de jogo, sem exigir grandes investimentos em infraestrutura e tecnologia. 

 

Mas é difícil convencer certos mandachuvas de evidências. As alterações nas regras dependem de um órgão mais conservador que a Igreja Católica – o International Football Association Board. Mesmo vendo a molecada, inclusive meus netos, bocejando para o esporte e optando por fabricar o próprio encantamento no videogame.

 

Voltemos então a Graciliano Ramos. Foi premonitório ao antever que o futebol se tornaria um playground para apostas esportivas, transformando a maior paixão nacional em mero objeto de especulação financeira, mediada por plataformas digitais estrangeiras. 

 

Que bom que somos referenciais para o mundo em termos de leis e autoridades competentes para impedir o aliciamento de atletas e árbitros, evitando qualquer manipulação de resultados. A CBF e a CPI das apostas estão aí para garantir a retidão do negócio.

 

Caso contrário, teremos que engolir a profecia do velho Graça quanto à nossa inclinação para a astúcia e a malandragem como parte do futebol, assim como na vida em geral. 


Afinal, tem sido a arte de dar e sofrer caneladas em quem pensa diferente de nós que nos define como nação no abismo civilizatório em que caímos.



quarta-feira, 1 de maio de 2024

Perfume raro

Quem de nós, navegantes com mais de seis décadas de águas revoltas, não se lembra da melancólica canção-poema “Rosa de Hiroshima”? Com esta música, o lendário grupo musical “Secos e Molhados” tocou cicatrizes, visíveis e ocultas, de crianças que, inocentes aos dramas dos adultos, sobreviveram ao bombardeio atômico no Japão. 

 

Essas pequenas criaturas, transformadas pelos versos de Vinicius de Moraes em moleques calados e telepáticos, ou meninas cegas e desorientadas, trazem consigo o legado da radioatividade que se estenderá por gerações. E o poeta escolheu a flor para simbolizar o momento da explosão: uma imagem que evoca o trágico desabrochar de uma rosa. “Rosa com cirrose... Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada”, ele pontuou. 

 

Sim, tudo isso é muito injusto. O câncer infantil, líder cruel nas estatísticas de mortalidade entre nossas crianças, como atesta o Instituto Nacional do Câncer (Inca), prevê o doloroso surgimento de cerca de 8 mil casos anuais até 2025, atingindo jovens de 0 a 19 anos de idade. Quem ousou dizer que a vida seria justa?

 

Se fosse justa, veríamos desabrochar mais “rozas” em nossos canteiros. Não se espantem com o “z” que emprego aqui. Não falo de uma rosa qualquer, muito menos da descolorida e sem perfume Rosa de Hiroshima, mas da Roza da Apala, uma mulher que, inconformada com esse fatalismo estatístico, resolveu provar que atos falam mais alto que palavras.

 

Fotografia: Álbum de família 

Roza, ou Rozenita Fernandes, uma maceioense que nasceu poucos meses antes daquele fatídico bombardeio, é antes de tudo esposa, mãe e avó extremada. 
Em 1994, ela deixa seu emprego como psicóloga no antigo Hospital do Açúcar e, como voluntária, se junta a um grupo de almas devotadas para enfrentar o câncer infantojuvenil, abraçando a causa da recém-criada Apala (Associação dos Pais e Amigos dos Leucêmicos de Alagoas) – uma organização sem fins lucrativos mantida por doações e voluntariado que, na época, funcionava numa casa alugada.  

 

Logo, a Apala daria mais do que uma simples assistência a crianças com leucemia. Torna-se um lar temporário na capital alagoana (onde os tratamentos são possíveis) a crianças e adolescentes portadores de todos os tipos de câncer. Oferece refeições, assistência social e psicológica, cuidados odontológicos, suporte para compra de medicamentos e transporte para hospitais. 

 

E Roza percebe que poderia contribuir ainda mais na estruturação da casa, buscando meios para mantê-la ativa e próspera. A partir de um projeto arquitetônico desenvolvido por sua nora, Nadja Fernandes, nasce a sede própria em terreno doado pela Prefeitura de Maceió, com recursos arrecadados junto a centenas de doadores (empresas e pessoas) sensíveis à causa. 

 

A Apala se torna uma das melhores casas de apoio no país, atraindo a atenção de entidades como o Instituto Ronald McDonald’s e a Construtora V2, o que acelera vários projetos, inclusive o mais ambicioso deles: a criação do Ambulatório de Oncologia Pediátrica do Hospital Veredas (que sucedeu o Hospital do Açúcar), pertinho da instituição.

 

Foi assim que, sob o olhar determinado de Roza e sua equipe, a Apala enraizou-se, ganhou corpo e floresceu, tornando-se símbolo de compaixão e perseverança, voltado ao bem-estar de mais de 400 pessoas. Parecia ecoar pelos corredores “Os cegos do castelo”, de Nando Reis: “Eu vou cuidar, eu cuidarei muito bem dele, eu vou cuidar... Ah! Eu cuidarei do seu jantar, do céu e do mar, e de você e de mim...”

 

Roza viu de tudo, até crianças sendo abandonadas à própria sorte por suas famílias. Lidar com uma criaturinha dessas gravemente enferma é defrontar-se, no mínimo, com duas perdas profundas: a da criança e a da própria esperança. É a ruptura da idealização da infância e do futuro que nunca chegará. Encontrar-se com o fim da vida de uma delas é, em parte, encarar a própria morte. 

 

Um dia, ela sentiu o peso do estresse emocional e físico, sobretudo das relações interpessoais complicadas no submundo corporativo, e resolveu voltar pra casa. Tinha consciência de que doara o seu melhor, sabia do tamanho da árvore que ajudara a plantar durante três décadas, de sua infatigável jardinagem e dos frutos colhidos. 

 

Roza havia descoberto por experiência própria que as ações são mais eloquentes do que as palavras. Sim, precisou de amor para pulsar, de paz para sorrir e de chuva para florir, lições colhidas de uma antiga canção que ecoa ao fundo de sua vida e lhe ajuda a tocá-la em frente. 


E agora o seu universo orbita mais suave ao redor de pessoas éticas, divertidas e inteligentes, como seu marido Roberto; seus filhos Hermann, Roberta e Renata; e suas netas Júlia, Luísa e Lívia, pilares de sua felicidade e fontes de alegria e renovação. Fez (e faz) por merecer.

 

Cartola estava certo quando compôs “As rosas não falam”. Tanto é que não me espanto com outra com tanta beleza, a Roza da Apala, que mesmo calada, apenas sorrindo, exala um perfume raro: a essência do bem.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Amizade inabalável

Nem pense, meu caro, que só porque você falhou ontem à noite a vida perdeu o sentido. Como não vai morrer tão cedo, é bom ir se acostumando, pois haverá uma segunda vez, uma terceira... Ainda bem. Que sorte, hein?

Ilustração: Umor


Lembre que já se foram os dias em que éramos jovens e que nenhum de nós (exceto os mentirosos, que não são poucos e ainda irão dominar o mundo!) tem o fôlego e o vigor da meninada no estirão do crescimento.

 

Naquela época, as meninas hesitavam no último minuto, e eram trocadas por substitutas improváveis, como almofadas apaixonantes, travesseiros sedutores e a imaginação fértil na palma da mão (não havia joysticks!). 


Agora, antes de mais nada, avalie se o problema não está escondido entre as suas orelhas, sob o que lhe resta de cabelos, talvez atormentado pela desilusão com os rumos da política partidária ou pelo lembrete de que o leão do imposto de renda não tem misericórdia e abocanha quase um terço de seus rendimentos.


Se não for isso, puxe uma conversa de gente grande com seu inseparável amigo careca, desdentado e feio, que anda cabisbaixo feito gato de armazém (dormindo sobre um saco enrugado). Entre vocês não existem temas tabus ou verdades inconfessáveis, e sim intimidade suficiente para tratar qualquer coisa sem frescuras. Afinal, juntos a partir dos primeiros tropeços da infância, compartilham segredos desde a chegada dos rascunhos de pentelhos.

 

Mas preste atenção! Não faça ameaças intimidatórias. Pressões exageradas podem levar a mal-entendidos catastróficos, abalando o respeito mútuo e, pior, comprometendo décadas de uma amizade inabalável. Seria o fim da picada – sem trocadilhos. 


Chantagens na linha sugerida por Juca Chaves também podem não funcionar. Segundo ele, era comum fazer um comentário mais ou menos assim, quando o amigo dele pedia ajuda para alívio da bexiga (sua segunda função): “Veja como você pode contar comigo, na hora em que mais precisa!”


Lembra-se das incontáveis vezes em que seu amigo careca foi convocado para missões emergenciais, como aquelas escapadas heroicas enquanto sua sogra cochilava na cadeira-de-balanço, antes de chamar a filha pro sermão das dez da noite? Ou então das vezes em que ele estava ali, exausto, depois da pelada da tarde? À noite, era acionado, tendo que se levantar às pressas e, ereto, forte e viril, ir à luta de cabeça erguida. 


Esses inesperados chamados ao dever, com o tempo, podem ter comprometido a prontidão do velho aliado de tantas batalhas, especialmente agora que, digamos, o combustível do tanque se aproxima da reserva e nenhum aditivo químico é garantia absoluta de autonomia de voo. 


Você sabe, inclusive, que nem todas as pessoas que se identificam como machos possuem um amiguinho careca e vice-versa, e que as experiências de intimidade, desejo e insegurança são universais, transversais a diferentes identidades. Por isso, aceite meu conselho: conversem até ficarem roucos. Afinal, burros só trocam coices porque não sabem dialogar. 



Já posso até antever a conversa:

– Quem diria que precisariam de mim tão cedo?! – exclamaria o careca, desdentado e feio – Ela e você ainda estavam naquela fase de amassos, beijos sem língua, nada de toque em partes íntimas…” 

– Me pegou de surpresa... Mas não justifica! Você precisa estar alerta, pronto para entrar em ação. E por favor, nada de sair por aí reclamando que está sendo explorado em tarefas incompatíveis com suas funções, quando continua recebendo de mim um tratamento cinco estrelas! 

– Tudo bem. É que nessas horas preciso de aquecimento, entende? Não daquele tipo que o treinador de futebol cobra de alguns atletas ainda no primeiro tempo, mesmo sabendo que não vai utilizá-los. Um carinho às vezes cai bem, como diz o poeta…

– Duro é que, do nada, ela achou de pronunciar aquela palavrinha cruel e me deixou numa sinuca de bico, de queixo caído. E quando falo de queixo caído, na verdade, não foi só ele que caiu.  

– Qual palavrinha?

– “Bora”!

–  Maldade... O “bora” realmente é uma armadilha capaz de causar ataques de nervos, de coração... Mas esqueça, já passou. Mude o canal... 

– Pensando bem, foi melhor assim. Não era a pessoa ideal para juntarmos nossas tralhas e trilhos. É aí que a gente descobre… 

– O que você descobriu?

– Ela exigiu luz acesa e espelhos pra conferir tintim por tintim. Queria preparar vídeos, virar musa do OnlyFans.

– Epa! Ficaríamos famosos, não?!

– Mas então me veio com aquele olhar esquisito, misterioso... Sei não! Parecia que se segurava pra não cair na gargalhada. E olhando pra você, meu amigo, que sempre esteve do meu lado, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza.

– É... Não ia dar certo mesmo. Amigo também é pra essas coisas.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

O insubordinado beijo da paz

Uma relíquia fotográfica de lábios travados na efervescente Times Square, coração de Nova Iorque, virou o epicentro de uma polêmica no Departamento dos Assuntos de Veteranos dos EUA, no mês passado. Proibiram a exibição do retrato pelos corredores sagrados dos prédios federais, alegando que o flagrante destoa dos "valores" da instituição. 


Fotografia: Alfred Eisenstaedt/Life
 

Em memorando tão pomposo quanto um convite para a cerimônia do Oscar em Hollywood, foi anunciado: "Esta medida, senhoras e senhores, é impulsionada pela nobre causa de reconhecer que a fotografia retrata um ato não consensual, desalinhado com nossa política de tolerância zero a assédio e agressão sexual”.

 

A imagem icônica, de 14 de agosto de 1945, capta o momento em que a enfermeira Greta Zimmer é surpreendida com um beijo mais animado do marinheiro George Mendonsa, na euforia pela rendição japonesa que marcou o término oficial da Segunda Guerra. 

 

Ele que, durante o beijo, correu sério risco de um joelhaço entre as pernas, curtia folga no dia em que foi eternizado anonimamente pela revista Life. Passou anos garantindo ser o cara da foto, algo só confirmado décadas depois com o uso da magia do reconhecimento facial. Ela, por sua vez, nunca protestou contra aquele flash e, mais tarde, até se tornaria amiga de Rita, esposa dele.  

 

A controvérsia esquentou quando um tal de Denis McDonough, o chefão dos Assuntos dos Veteranos, buscou a arena midiática para esclarecer que a imagem não havia sido banida, mas sim temporariamente removida para avaliação. Segundo ele, a foto seria recolocada, sublinhando o respeito pela história, mesmo que seu conteúdo desperte debates modernos sobre consentimento. 

 

Ao lembrar do arsenal de imagens de tantas guerras em que os EUA meteram os pés pelas mãos peludas, sobretudo com propósitos econômicos, soa hipócrita condenar a foto de um beijo – ainda que furtado – em vez de tantos outros atos bem mais condenáveis. Afinal, beijar é só um gesto sabiamente desenvolvido por algumas criaturas para estancar uma prosa quando as palavras (ou os gorjeios, miados, latidos, rugidos, uivos e afins) se tornam desnecessárias. 

 

É essencial, portanto, distingui-lo da gravidade do assédio ou agressão sexual. No Brasil, o movimento “Não é não”, criado em 2017 por um grupo de cabeças iluminadas para dar um chega pra lá em qualquer mão boba nos blocos do Carnaval carioca – mais de 4.000 adesivos foram distribuídos entre as foliãs naquele ano – ganhou um reforço com a aprovação de uma lei que põe um freio no assédio em locais como bares, boates, restaurantes, shows e outros lugares fechados onde se vendem bebidas alcoólicas. Fico em dúvida sobre se em locais fechados que não vendam bebidas alcoólicas a prática será tolerada.

 

E se o objetivo é garantir que o público feminino não passe por qualquer constrangimento ou violência nesses ambientes, lamenta-se que nada se diga acerca de locais “abertos” onde se vende outros tipos de drogas psicotrópicas que atuam no sistema nervoso central, mudando o comportamento de quem consome.

 

A lei 14.786, ou a lei do “Não é não”, segue o exemplo da norma em vigor na cidade espanhola de Barcelona, aplicada ao caso envolvendo Daniel Alves, ex-jogador da seleção brasileira recém-condenado a 4 anos e meio de prisão por estupro numa boate.

 

Quanto ao protocolo que entrará em vigor no segundo semestre deste ano, os estabelecimentos deverão exibir, em local visível, como puxar o freio de emergência da lei, além de adotar mecanismos para afastar a vítima do agressor e colaborar para identificação de possíveis testemunhas, garantindo o acesso às imagens das câmeras de segurança pela polícia e pelos envolvidos nos incidentes.

 

Busca-se evitar dois tipos de agressão: o constrangimento, que abarca qualquer insistência, física ou verbal, sofrida por uma mulher depois de manifestada a sua discordância, e a violência propriamente dita, que tenha resultado em dano, lesão ou morte. Além das boates, bares e casas de shows, ambientes com competições esportivas também se enquadram na legislação. Só não vale para cultos e outros eventos realizados em locais de natureza religiosa (tenho ligeira desconfiança sobre o motivo!).

 

A nova medida complementa a lei 13.718, de 2018, que criminaliza a ação na ausência do “sim” consentido. No pacote estão atos de importunação sexual (definida legalmente como a prática de ato libidinoso contra alguém sem a sua anuência “com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiros”) e a divulgação de cenas de estupro, nudez e sexo. Quem for pego com a boca na botija, vai encarar de um a cinco anos de xadrez.

 

Como não ficou claro se beijo furtado será visto como ato libidinoso, aqui vai minha provocação aos ilustres legisladores e juristas: se for para selar a paz e pôr fim a quaisquer guerras entre humanos, que se distribuam beijos a granel, independentemente de gênero, classe social, cor de pele ou religião. Chega de drones, mísseis ou, pior, alguns memorandos!

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Toda paixão tem o seu calvário

O futebol tem seus momentos de profundo desencanto, como quando seu time está sofrendo uma derrota por dois a zero ainda no primeiro tempo e você está ali, acomodado no sofá, diante da TV, à espera do improvável milagre da virada. Faz sentido pessoas de todas as idades expressarem uma paixão tão arrebatadora por uma bola que simplesmente cruza a linha de gol? Que impacto isso teria em nossas vidas?

 

Reprodução/FaceBook

Não posso falar pelos outros, mas, pessoalmente, percebi há décadas que, quando o Vasco entra em campo, o apito soa e a bola rola, as diferenças entre minha mulher e eu se tornam mais pronunciadas do que qualquer debate filosófico sobre a origem planetária do feminino e do masculino. 

Com a chegada do Brasileirão 2024, nosso mundo vai se bifurcar novamente. Ficarei horas grudado na telinha, enquanto nenhuma atividade específica fará com que ela se desligue por completo de outros papéis. Talvez só quando amamentava nossos filhos (há quatro décadas), sua atenção era plena. Ainda assim, volta e meia olhava o que rabiscara na mão e lembrava de que precisava reler um livro qualquer para a prova do dia seguinte, renovar o esmalte das unhas ou verificar se as prateleiras da despensa estavam vazias.

 

As mulheres de minha geração possuem um poder de concentração bem mais amplo que os homens e isso se aprofunda com o passar dos anos. Se estão com os filhos, o pensamento voa para o marido. Se estão com o parceiro, preocupam-se com os netos. E sempre com uma autocobrança latejando, como se nascessem com uma espécie de chip da culpa no coração. 

 

Penso que a arte do foco múltiplo deriva do fato de a imaginação feminina ser mais rica e fértil do que a masculina. Elas são mais inquietas e vivazes. A maioria não consegue ficar horas vendo alguns marmanjos ofegantes correndo atrás de uma bola, um deles soprando um apito estridente, enquanto outros, dentro e fora do campo, especulam sobre o que poderia ter sido e não foi, como no velho filme "O Feitiço do Tempo". 

 

Como alguém permanece diante da telinha após o fechamento da rodada, domingo à noite, revendo lances, ouvindo o choro dos perdedores ou aturando a empáfia dos vencedores? Sem falar dos “sábios”, geralmente jogadores aposentados que ficam cacarejando obviedades ou contando fatos da própria carreira que ninguém (pelo menos entre as mulheres!) quer saber.

 

Seja como for, minha mulher sabe que, a partir deste mês, nossa coexistência sob o mesmo teto se dará de novo  em dimensões paralelas. Ela terá que se acostumar com a "criança" aqui absorta no sofá, com um punhado de bolachas ou pipocas na mão e os olhos grudados na telinha, imersa no apaixonante universo do futebol. 

 

E se o plantão do telejornal interromper a programação para noticiar que um tsunami está se formando no Atlântico Sul, perto de onde nos escondemos, ou que a OTAN acaba de revidar um ataque chinês, norte-coreano ou russo, definindo a terceira guerra mundial como pauta jornalística da vez, não desviarei a minha atenção um segundo, sobretudo se o placar estiver zero a zero, nos quinze minutos finais, e o adversário com um jogador a menos em campo. 

 

Ela sabe também que, se o telefone tocar e for alguma emergência em família, direi sem pestanejar: “Pede pra ligar mais tarde”. Não passará por minha cabeça que um parente possa ter tido um mal súbito qualquer – não antes de a partida terminar. Tudo tem o seu tempo! 

 

Se a chamada for de origem desconhecida, me farei de surdo. Posso sugerir: “Veja se não dá pra gente conversar depois do jogo?” Então, ela convencerá o interessado a ligar mais tarde, dirá que é inútil insistir, pois se ela mesma se aproximar da TV, arrisca-se a ouvir algo como: ‘Minha filha, pelo amor de Deus! Logo agora que Payet vai bater o escanteio?!” 

 

Fazer o quê? Todo vascaíno acima dos 60, órfão de Roberto Dinamite, Edmundo, Romário e Juninho Pernambucano, é assim. 


Mas, reconheço, o interesse das mulheres por futebol tem evoluído bastante, tanto como fãs quanto como participantes ativas. Prova disso, a rainha Marta, seis vezes escolhida a maior futebolista do mundo, e Leila Pereira, do Palmeiras, melhor dirigente de clube brasileiro.


De forma que vou pedir a uma de nossas netas  vascaína “praticante”, sem qualquer influência minha, a esta altura mais entendida no assunto do que eu – para explicar à avó o que significa “cruzar no primeiro pau”, “cabecear no contrapé do goleiro” ou “acertar chute de três dedos na gaveta”. Sem contar o "avançar as linhas" (parece coisa de costureiro afobado!).

 

Afinal, toda paixão tem o seu calvário, mas nada existe de mais grandioso nessa vida, onde tudo só tem começo e meio. O fim é pra quem não enxerga recomeços e deixa a chama apagar. 

 

quarta-feira, 3 de abril de 2024

O fabuloso Toim Leitão, do Crateús

Não posso esconder uma pontinha de inveja de alguns amigos que tiveram a sorte de crescer ao lado de um avô que não lia jornais, livros ou revistas, mas era mestre na arte de contar estórias, daquelas de arregalar os olhos e arrancar risadas, suspiros e lágrimas, até os netinhos caírem no sono, embalados pelas aventuras narradas.


Os avôs que me couberam nesta vida, dois tipos duros e carrancudos, não esboçavam um sorriso nem por decreto ou se mangassem um do outro. Mas, sendo justo, nunca se viram. 


Feliz de um amigo meu que volta e meia me fala de Toim Leitão, seu avô, um cearense do Sertão dos Crateús de ascendência holandesa, voz grave, sorriso largo, olhos quase fosforescentes, com seus imponentes 185 cm de altura, corajoso e forte feito Sansão, seu cavalo alazão.

 

Fotografia: Álbum de família

Agricultor e vaqueiro, Toim parecia saído das páginas do livro “Alexandre e os outros heróis”, de Graciliano Ramos, de que mais tarde Chico Anysio tiraria uma casquinha para criar o memorável Pantaleão. Mas nunca mentiu para atrapalhar ninguém, só temperava um pouco a sua versão dos fatos. Afinal, só se deve exigir a verdade absoluta das pedras e dos tolos. 

 

Casou-se com Onédia, que já sonhava com cirurgia plástica antes mesmo de o termo virar moda, nos tempos em que Pitanguy ainda nem mexia com bisturis. Vai saber o que Toim andou cochichando no ouvido dela. Só sei que provou da pitanga antes de madura, tendo que se casar pra moça não cair na boca do povo.

 

Coronel Bonfim, o sogrão, tinha terras até perder de vista. Não foi nenhum sacrifício pro bonitão vestir um paletó de linho, engraxar os sapatos, pentear o topete e fazer promessas diante da paróquia. Em troca, o casal abiscoitou 1/12 avos, parte que lhe coube do latifúndio.

 

Daí por diante, cuidou com carinho e fervor desse quinhão de terras, onde os netos (a quem a todos chamava de “meu fi”, pois não guardava os nomes), passavam os fins de semana e as férias ouvindo estórias, banhando-se no açude e aprendendo as coisas sertanejas, como beber leite cru num curral direto de divinas tetas, com direito à trilha sonora do mugido, ao cheiro de estrume e ao risco de brucelose.  

 

Dizem que o pai de Toim e bisavô de meu amigo, Mané Leitão, encontrou seu fim numa de suas incursões pelas matas para caçar animais silvestres. O corpo só foi encontrado dias depois, em estado de volta à natureza. Tombou enquanto tocaiava um tatu que, assustado, vendo o velho morto, e imbuído de virtudes cristãs, só deixou a toca após o enterro.


Toim virou lenda no Crateús a partir de uma farra de domingo, quando contou a alguns amigos o que acontecera com Veludo, cão de caça que sabia interpretar desenhos. Sustentou ele que rabiscava numa folha de papel o que queria (inhambu, mocó, perdiz, preá etc.) e o cachorro buscava a encomenda. Como duvidaram, chamou o bicho, desenhou uma paca bem gorda e ordenou a busca imediata. 

 

Ilustração: Umor


Três horas mais tarde, nada de Veludo. E os amigos, bêbados, tropeçavam de rir, o que chateou demais Toim. Anoiteceu, amanheceu... Nada! Uma semana depois, o cão reapareceu na Fazenda Cajazeiras todo latanhado, faminto, arrastando uma paca mutilada, com três patas. O dono então reviu a “comanda” guardada no bolso e percebeu o erro que cometera: não havia desenhado uma das patas do animal. 


Meses depois, Toim contou aos amigos que precisou levar uma boiada até o Piauí e teve que pernoitar ao relento. No dia seguinte, ainda escuro, tentou calçar uma das botas, mas não alcançava o fundo. Com os primeiros raios de sol, notou que, por engano, tinha enfiado a perna direita, até a virilha, na boca de uma jibóia. Quase engasga a coitada.  

 

Toim contou ainda, noutra oportunidade, que um dia bateu uma vontade doida de comer carne de tatu. Já tinha tempo que não refogava um bicho desses na panela, com alho, cebola, sal, pimenta preta e tomates. Onédia e as crianças salivavam só de pensar na iguaria saindo do fogão.

 

Na boca da noite, ele montou Sansão, chamou Veludo e partiram pra mata, buscando algum buraco com terra fresca, típico de morada recente, onde o animal espera escurecer pra cair na vida. Não demorou muito, ouviu latidos e, de cabeça baixa pra não arranhar os olhos na caatinga, encontrou o cão rosnando, gengivas de fora, com o rabo de um tatu entre os dentes. 

 

Toim chegou a jurar que desmontou e amarrou os arreios na coleira do cachorro pra garantir a captura. Mas, naquela escuridão medonha, se distraiu com uma picada de saúva e, num piscar de olhos, viu o cavalo sendo puxado buraco adentro, ficando de fora apenas a cabeça e o pescoço.

 

Veludo sumiu no oco do mundo e Sansão, depois do susto, nunca mais foi o mesmo. Nem os netos de Toim Leitão, que tiveram a sorte de crescer ouvindo essas estórias fabulosas.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Tributo à comédia humana

Sexta-feira, de noite, num desses templos sagrados de delações não premiadas onde, entre um gole e outro, o destino se desenrola em tramas dignas de um roteiro de cinema, meu amigo ítalo-brasileiro Tiberio Bacardi, brilhante cronista ainda desconhecido do grande público, aguardava a namorada que fora ao santuário das toaletes. Foi quando testemunhou uma cena tão hilária quanto reveladora.


Ilustração: ChatGPT

Três amigas, todas na casa dos 40 verões, com a graça de quem aprendeu a surfar no vai-e-vem das marés da vida, trocavam confidências numa mesa do lado, movidas a drinques multicoloridos. Uma delas dominava a conversa (a saga de um pré-encontro amoroso) com a verve de Tatá Werneck, transformando o que seria um simples jantar numa aventura digna de um filme de Almodóvar, com dramas, reviravoltas e uma generosa dose de humor e sensualidade. 

A “nossa” Tatá esmiuçou a preparação para o encontro como um ritual, quase um treinamento para virar um holograma: fingia comer e, na beira do desmaio, se permitia a extravagância de uma fatia fina de queijo e um trio de castanhas como prêmio de consolação.

A importância de cuidar de pés e mãos não foi negligenciada – vai que um fetiche inesperado aparece no meio da noite. Ela brincava: “Quem nunca foi surpreendida com um convite para um jantar japonês e teve que revelar, no desespero, aquele esmalte da semana anterior ainda se agarrando bravamente às unhas, feito gato no carpete em dia de mudança?”

E o protocolo de beleza seguiu mais complexo que a preparação de um desses jogadores de futebol com suas curiosas sobrancelhas e tatuagens. O esforço, dizia ela, valeria a dor física e mental, contanto que resultasse numa aparência arrasadora e poderosa.

No grande dia, não deixou nenhuma ponta solta, nada ao acaso. Logo cedo, após pequenos ajustes depilatórios (ou jardinagem criativa), uma visita estratégica à academia garantiu que cada músculo se fizesse presente, ainda que a medida quase significasse tossir um dos pulmões para fora. 

Viu-se então, em seguida, diante do dilema do guarda-roupa, com considerações que variavam do vestido de gala ao clássico "pretinho básico", mesmo desconfiando de que, no final das contas, o esforço passaria despercebido. Nem ela duvidava de que o interesse primário do sujeito seria outro, longe do tipo de traje. 

Horas diante do espelho, ajustando cada detalhe na esperança de capturar 10% da atenção dele, a decisão sobre a lingerie trouxe novo impasse: conforto versus sedução, batalha que só as mulheres entendem, quando uma certa peça insiste em se acomodar nas reentrâncias mais íntimas. “Talvez te achem linda, mas eles não fazem ideia do trabalho que dá. Pensam que você nasceu pronta, como um efeito especial de cinema” – arrematou.

Os sapatos, escolhidos pela estética, poderiam virar instrumentos de tortura medieval se surgisse uma oportunidade para dançar. Teria que fingir que as lágrimas eram da emoção. Ela inclusive lembrou do filme “Perfume de Mulher”, onde um cego, vivido por Al Pacino, tira uma moça pra dançar que, inicialmente, descarta: “Não posso, porque meu noivo chegará daqui a pouco...” Ao que ele ponderou: “Mas em um momento se vive uma vida!”, conduzindo-a, então, no memorável tango “Por una cabeza”, de Gardel e Le Pera.

Mas se por um capricho qualquer, após todo esse esforço, o sujeito decidisse cancelar o encontro no último minuto? “A única desculpa aceitável para a desfeita seria a morte súbita da mãe, do pai, infarto agudo ou fratura exposta" – “Tatá” pontuou, refletindo sobre a fragilidade dos compromissos modernos.

E mesmo depois de toda a preparação, persistia um grande risco: ele poderia nem notar aquela calcinha de grife que estava sofregamente removendo e que custou a ela novo mergulho na escuridão do cartão de crédito. “Entre abraços e beijos você se dá conta de que acaba de viver mais um episódio da série ‘Todo esse esforço pra porra nenhuma!’" – concluiu.

Ali, distante daquele drama, Tiberio Bacardi anotava as partes mais marcantes, usando o bloco de notas do celular, ao ser surpreendido pela voz de sua namorada:

– Por que essa cara de quem teve uma revelação divina?

– Nada, nada demais...  Tô aqui pensando num compromisso marcado pra amanhã à tarde... – respondeu, optando por uma resposta neutra ao invés de compartilhar uma possível construção literária em andamento.

– Com quem... Posso saber?

– O proctologista.

–  Ah, bom…

Esse desfecho, não só selou uma noite de observações, mas também deixou meu amigo Tiberio Bacardi convicto de que, na vida, como no bar, as histórias mais fascinantes são aquelas compartilhadas entre um gole e outro, onde cada um de nós, entre um gole e outro, protagoniza sua própria comédia humana. 

quarta-feira, 20 de março de 2024

O metaverso de Nozinho

– E aí, Nozinho, o motor tá bom mesmo?

– Vai-te lascar! Eu mexo com isso desde menino e lá vem você perguntar besteira?

– Calma! Perguntei por perguntar...

– Pois me pague, pegue o carro e vai-te embora daqui...


Nozinho era assim, um paraibano que mais parecia esculpido numa tora de pau-ferro, com acabamento à base de machado. A natureza caprichou no design e na acidez. Era conhecido lá em Itabaiana como “Biliro” (de bilro, peça de aço ou madeira usada para confecção de renda, graças à silhueta esguia e a cabeça volumosa).


Mecânico e motorista de mão cheia (sem largar o volante!), apesar de enxergar menos que morcego ao meio-dia, seu par de óculos com lentes esverdeadas era tão icônico que ganhou o apelido de “Sprite”, gozação com sua forma nada refrescante de ver o mundo. E mesmo sem saber ler nem escrever, detinha saberes que deixavam muitos doutores comendo poeira na estrada.

 

Do tipo que nunca levava desaforo nem pra oficina, talvez fosse sua forma de navegar nas águas turbulentas de uma sociedade que valoriza mais as letras do que a sabedoria de vida. Ou porque gostava de encrenca, se questionassem suas teses sobre inovações tecnológicas “desnecessárias” nos automóveis. “Pra que pé esquerdo se não tem mais pedal de embreagem? Não serve nem pra apagar cigarro ou matar barata!” – dizia dos veículos automáticos.

 

Me lembrei dele ontem enquanto lia sobre o Vision Pro da Apple, aqueles óculos de realidade virtual com preço pra lá de salgado, acima de R$ 17 mil. Apple que resolveu se fazer de desentendida e não quer chamar o brinquedinho de “metaverso”, talvez para não embarcar na mesma nave que o bilionário Zuckerberg e sua turma da Meta (empresa que atualmente controla as redes sociais), que até agora não decolou.

 

Reprodução/Redes Sociais

Se estivesse entre nós, Nozinho desdenharia desse “computador espacial revolucionário”, com a autoridade de quem, desde o começo dos anos 1970, já fazia mágica juntando peças do motor de um carro como quem brinca de Lego. Diria que esse negócio de realidade virtual não passa de conversa pra jumento cochilar ruminando na sombra. 

 

O homem era tão brabo que, numa prova de habilitação para dirigir veículos de carga, ao invés de identificar as peças de três motores em caixas distintas (de fusca, chevette e caminhão), misturou tudo, desafiando a lógica do teste. “Só jegue não sabe fazer!” – esculachou. Em seguida, com a perícia de um relojoeiro, montou os motores e saiu do recinto, não sem antes oferecer à banca avaliadora, que o reprovara por ser analfabeto, conselho de especialista em chaves de fendas e de bocas: “Vão tudinho tomar bem no 'mei' da arruela!”

 

Acreditem, rola lentamente até hoje na Câmara dos Deputados, em Brasília, projeto de lei para alterar o Código de Trânsito Brasileiro, permitindo aos iletrados tirar a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e, pelo menos, mudar o patamar de miséria. 

 

Há coisa de 20 anos, num domingo, enquanto Nozinho bebia e contava seus casos no boteco, um de seus sobrinhos achou de recordar do que a irmã dele (sua mãe) fizera poucos meses antes: a saga de uma gata grávida e o destino cruel que lhe foi reservado. 

 

Eu, calado no meu canto, prestava atenção ao que dizia o sobrinho, que nos comoveu a todos, entorpecidos por várias cervejas naquele começo de tarde.

– Não quero essa gata aqui de jeito nenhum! – teria decretado a dona da casa.

– Mamãe... É só enquanto ela melhora, engorda um tiquinho… Tava passando fome na rua.

– Nem venha com essa conversa mole! Suma daqui com ela, agora, ou deixe que eu mesma vou dar um jeito nisso!

 

Nozinho, que tinha a irmã como segunda mãe e, por isso mesmo, estava cada vez mais curioso, cobrou pressa no desfecho. Balançou a cabeça ao ouvir que a empregada doméstica fora encarregada de misturar cacos de vidro na comida da grávida, para que, contrariada com a hospitalidade, sumisse. 

 

– E você, infeliz, deixou matar a bichinha? Por que não procurou outra pessoa pra tomar conta dela? – apelou o tio, contrafeito. 

– Como, tio? Se demorasse, levaria uns cascudos, uns tapas… Só deu tempo de pedir a moça pra quebrar os cacos maiores em pedacinhos e torcer pra coitada escapar, fugir, sei lá…

 

Acontece que a gestante seguia firme, barrigão arredondando, à espera inocente do dia sublime. 

– E aí… Escapou? – indagou o tio, com dó da gata, vendo o lado do sobrinho, mas também procurando entender sua irmã.

– Morrer não morreu, tio, mas apareceu lá em casa uma ninhada de filhotes, tudinho de óculos verdes!

 

Nozinho se levantou num pulo só e partiu com tudo pra cima do moleque, que escapuliu ligeiro feito um gato, morrendo de rir. 

 

Se fosse hoje, era bem capaz de o gaiato dizer que os bichanos chegaram ao mundo cada qual com seu Vision Pro da Apple, prontos pro espetáculo das sete vidas. E o tio, com a delicadeza de um beliscão de alicate, mandaria o “'fidirapariga' tomar no 'mei' da arruela”. Mesmo com todo respeito que tinha pela irmã.

quarta-feira, 13 de março de 2024

No frescor dos novos tempos

Está em discussão no Congresso Nacional um projeto de lei que visa regulamentar o trabalho de motoristas de aplicativos e de empresas por meio de entidades de classe.

 

Com o calorão que anda fazendo ultimamente, há cada vez mais queixas nas redes sociais contra motoristas que cobram adicional dos passageiros que querem viajar com o ar-condicionado ligado. É como se os prestadores do serviço se tornassem os novos mercadores do Egito, onde tudo se compra e se vende, até mesmo a brisa que nos refresca durante a viagem. E veja que não trato aqui de um conto de fadas moderno, mas da triste realidade das plaquinhas que adornam o encosto de cabeça dos bancos dianteiros dos carros, oferecendo o refrigério por certo preço. 


É a cortesia cedendo lugar à cobrança. Balas (ou confeitos) e água gelada foram substituídas por um pagamento antes mesmo de o carro partir. Enquanto alguns defendem a gratuidade da climatização, principalmente em tempos de aceleração do aquecimento global, outros apontam que esse custo não pode recair nas costas dos motoristas, pois o uso do equipamento aumenta muito a conta do combustível. 

 

Conheço um militar reformado que se aventura pelas estradas urbanas como condutor de aplicativos. Ele me contava outro dia, com resignação, que as plataformas têm repassado muito pouco aos motoristas. "Infelizmente é assim. Ah, se eu pudesse oferecer o conforto de antes, sem pedir aos passageiros o reforço por fora...”, lamenta.

 

Aqui deitado em rede esplêndida, ao som do mar e à luz de um sol escaldante, depois de dias e mais dias sem fazer nada de útil à aventura humana sobre a Terra, resolvi perturbar o sossego das plataformas de transporte com minhas indagações de aprendiz de rábula. 

 

Uma delas, em sua sapiência tecnológica e a partir do caso do ar-condicionado, me garante que quando detecta que "o motorista conduz mal uma corrida, pune o desobediente com severa advertência", uma espécie de marca de Caim nos tempos modernos. Nada como uma avaliação ruim para trazer à tona o pior de nós mesmos, não é?

 

Diz mais: que "a cobrança de qualquer adicional por fora representa violação às regras de segurança e podem levar à desativação da conta do motorista parceiro envolvido". 

 

Uma segunda empresa me manda uma mensagem rebuscada, sem nada de novo: “Somos uma empresa de tecnologia voltada à mobilidade urbana e conveniência, que conecta passageiros e motoristas parceiros por meio de seu aplicativo”. E sugere que “motoristas e passageiros decidam juntos sobre o uso do ar-condicionado”.

 

Com a aprovação da lei que regulamentará o trabalho de motoristas de aplicativos por meio de sindicatos, me ocorre propor uma negociação bastante simples para resolver o impasse. 

 

Sem falsa modéstia, a ideia só não é melhor porque é minha. Vejam bem: por que não estabelecer uma taxação mútua? Os passageiros pagariam pelo ar fresco, mas seriam compensados quando fossem obrigados a escutar funk, sertanejo ou dissertações intermináveis sobre preferências clubísticas, políticas ou religiosas.

 

Para os motoristas que insistirem em tentar convencer “convertidos” com suas réplicas e tréplicas, uma penalidade extra seria cobrada: aumento de 50%, com o lembrete de que ficar em silencio é nunca mais precisar ter razão, mesmo em tempos de overdose de informações.

 

A flatulência (e a eructação) também teria cobrança recíproca, apesar da previsível polêmica quanto à autoria de disparos letais silenciosos, sobretudo no caso do transporte compartilhado de passageiros, do meio-dia pra tarde.

 

No fim da corrida, haveria o acerto de contas entre as partes, com razoável chance de a maioria das viagens terminarem com as despesas adicionais anuladas entre si. Elas por elas, digamos assim.

 

Com tanta gente por aí que não se constrange em compartilhar sua estupidez a qualquer hora do dia ou da noite, inclusive espalhando notícias falsas, a taxação mútua, que a princípio pode parecer injusta aos motoristas, teria também um caráter pedagógico e profilático.

 

Sei que na categoria Confort da principal plataforma que opera no Brasil existe a possibilidade, antes da viagem, de o passageiro marcar a opção de não conversar com o motorista e até de definir a opção pelo ar-condicionado, porém me refiro aqui às categorias mais populares, claro, de todos os aplicativos.

 

Não é a solução perfeita, admito, mas ao menos se poderia transformar as viagens em momentos de bem-estar e paz social, ouvindo-se, no frescor dos novos tempos, apenas o barulhinho do ar-condicionado e não monólogos de donos da verdade ou música de qualidade duvidosa para passageiros cujos ouvidos correm o risco de virar penicos.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Elas amadurecem bem antes

Na semana do Dia Internacional da Mulher, andei relendo uma pesquisa realizada há alguns anos, no Reino Unido, sobre diferenças de maturidade entre sexos. Em resumo, chegou-se à conclusão de que o homem permanece emocionalmente imaturo até 43 anos de idade e a mulher atinge a maturidade emocional bem antes: aos 32. O estudo revelou ainda que 80% das mulheres acreditam que os homens “nunca deixam de ser crianças”. 


Certas atitudes não deixam dúvidas sobre a lerdeza da maturidade de alguns homens: recontar as mesmas piadas e achar graça de novo, não se interessar por tarefas domésticas, confundir masculinidade com grosseria, exibir bíceps e tríceps para demonstrar como são fortes, entre outras bobagens.

As mães percebem essa diferença desde cedo, principalmente nas famílias mais numerosas como a que me trouxe ao mundo, com pais, cinco filhos e quatro filhas. Vi isso bem de perto quando uma de minhas irmãs, apenas um ano mais velha que eu, tornou-se adolescente “décadas” antes de mim.

Estamos falando do começo dos anos 1970. Enquanto eu, entre 12 e 13 anos, dividia meu tempo entre dormir, comer, estudar, bater bola, jogar botões (futebol de mesa), ler "Placar" e zoar meus irmãos mais novos, minha irmã já suspirava ouvindo Dio come ti amo, Non ho l’età (per amarti) ou assistindo aos requebros de Elvis Presley. Lia muito fotonovelas e até desenhava seus próprios "quadrinhos", em meio a namoricos movidos a doses generosas de estrogênio e progesterona de ovários fresquinhos.

Foto: Álbum de família 

Nessa época, a banda LSD – sob a batuta de um certo Djavan – fazia sucesso em Alagoas, animando as noites de sexta-feira na AABB Maceió, na Praia da Avenida. Ela, claro, sonhava em ir à balada toda semana, mas nosso pai era inflexível feito porta de cofre: “só vai se seu irmão for junto!”.

Como ela iria me convencer se, todo dia, no máximo às dez da noite, eu já tropeçava de sono? E se eu fosse à balada, cadê coragem pra dançar com as garotas? Dormir sentado numa cadeira dura, sob a luz negra e o barulho ensurdecedor da banda, inalando fumaça de cigarros até a hora de voltar?


Ela sabia do meu gosto por desenhar e, certa manhã, pediu a um traíra do colégio que me desafiasse a desenhar uma cena de sexo daquelas típicas de revistinhas suecas, fonte de deleite da molecada nos tempos em que se passava mais tempo nos banheiros do que estudando. 

Em pouco tempo, o inocente aqui rabiscou algo com toda carga erótica possível, assinou no rodapé e o traíra ainda insuflou o ego do “artista” dizendo que nunca vira nada parecido a não ser nos "catecismos" de Zéfiro (1921 – 1992). Meia hora mais tarde, lá estava minha irmã triunfante com a "obra de arte" nas mãos: "Como é, vai ou não vai sexta-feira à noite?"

Se me recusasse, meu pai ficaria sabendo do que eu andava “aprendendo” na escola e por certo mudaria a rota em meu GPS com o desgraçado de um cinturão de couro, me inspirando a escrever mais um parágrafo na crônica de minhas surras inesquecíveis.  

Travei, engoli seco e ali também aprendi, na marra, o que era chantagem emocional e suas implicações diretas e indiretas, durante as cinco semanas seguintes. 

Enquanto isso, passei a vasculhar cada centímetro da casa à procura do famigerado desenho. Até que um dia, folheando “Grande Hotel”, revista de fotonovelas favorita de minha irmã, notei que a protagonista de uma história escondera uma carta comprometedora entre o tampo traseiro e a gravura de um quadro de parede. 

Ao encontrar a “obra”, nem cogitei guardá-la em lugar alternativo, seguro. Matei no ninho o aspirante à sucessão de Picasso (1881 – 1973), o gênio espanhol obcecado pelo erotismo. Picotei o desenho, joguei os pedacinhos no vaso e acionei a descarga para ter certeza de que a agonia realmente chegara ao fim. Ainda bem que não havia fotocópias e a digitalização de papéis não existia nem nas revistinhas de "Flash Gordon".

À noite, vestida e maquiada, pronta para chamar o táxi, minha irmã espantou-se quando eu lhe disse que estava cansado e não iria nunca mais, com direito a um risinho de esculacho. Ela então correu ao local onde escondera o desenho e quase subiu pelas paredes ao descobrir que já não dispunha da “arma” pra me convencer. 

Aqui entre nós, penso que nosso pai, mesmo sem nunca ter desconfiado de que o filho vinha sendo vítima de "condução coercitiva", aprovou a "nossa" decisão de não sair. Para ele, não precisava ser toda semana, deixando-o aflito até que a madrugada nos trouxesse de volta.

Essa experiência só reforçou em mim a percepção de que as mulheres amadurecem antes. A sagacidade de minha irmã foi prova viva disso, deixando claro que certas mulheres dominam artes como a manipulação e a camuflagem de sentimentos muito mais do que os homens, esses inocentes que se acham sabidos.


Homens, como elas mesmo admitem, “nunca deixam de ser crianças”. Deve haver um anjo da guarda de plantão para cada um. Caso contrário, viver torna-se perigoso demais.
 

Café de ninguém

Estou há três semanas sob o céu esbranquiçado e sem graça de São Paulo. Durante a caminhada matinal,  vi, não uma, mas duas vezes, um gari d...