Era tarde demais quando percebi que condenava minha mulher e nossos filhos a sofrerem com os transtornos de sucessivas mudanças ao optar por uma carreira marcada por desafios pelo país afora. Só eu sei o quanto isso mexeu com todos nós.
Poderia ter escolhido outra profissão? Claro. Teria sido melhor ou pior? Não sei. Repito o que escrevi outro dia: ser feliz é sobreviver à versão de nós mesmos que decidimos assumir.
Sobrevivemos, todos. Mas só eu sei o quanto pedi a Deus toda noite para que fossem ao meu encontro todas as pedras atiradas pela vida na direção de minha família. E para que nunca nos faltassem o feijão nem o entusiasmo para sonhar com dias melhores.
Só eu sei da angústia quando mudamos para Salvador, em maio de 1999, após três anos e meio no Recife. Lídia, filha caçula, tinha apenas 14 anos e chorava dia e noite a ausência de pessoas e lugares que foram ficando pelo caminho.
Doía tanto quanto doeu para seus irmãos mais velhos quando deixamos Maceió pela primeira vez para morar em Brasília, em 1988. Ou quando voltamos para Alagoas numa situação bem diferente daquela que vivíamos – Dona Madalena, minha sogra, já não estava neste mundo. Duas mudanças ainda aconteceriam até chegarmos a Pernambuco, em 1996.
Pouco depois da virada do século, em abril de 2000, já surgiam rumores de que eu seria transferido de novo, agora da Bahia para o Distrito Federal. E o desassossego reaparecia com todas as suas cores e dores.
Foram momentos de aflição em Salvador até que algumas amigas de prédio, escola e igreja convidaram Lídia para um retiro espiritual num fim de semana. Nos dias que antecederam ao encontro religioso, pediram aos familiares que escrevessem algo para reflexão dos participantes.
Eu precisava daquela oportunidade mais do que ninguém. Em uma hora, se muito, lacrei envelope com uma carta – que ela guarda até hoje – onde pedia perdão por tanta dor, mesmo sendo inútil, já que não podíamos retroceder o filme de nossas vidas e vê-lo de outro jeito.
Em minha cabeça, era como se estivesse escrevendo não só para ela, mas para toda a minha família:
“...Perdoe-me por tê-la arrancado tão cedo de Maceió, do convívio com tios e primos, e a levado à distante e seca Brasília.
Perdoe-me por tê-la feito aprender a ler e a escrever, entre ladeiras e cabritos, na chuvosa e feia Porto Calvo.
Perdoe-me por tê-la levado, da noite para o dia, para a calorenta Recife, fazendo-lhe passar por tantos colégios, cadernos e livros.
Perdoe-me por tê-la feito, inesperadamente, largar seus amigos do Colégio Boa Viagem, abrindo no seu coração uma ferida enorme chamada saudade.
Perdoe-me por tê-la trazido comigo para Salvador, sem poder lhe dar a certeza de que nunca mais nos mudaremos.
Perdoe-me por não ser o pai com a vida pacata que você merece e por não saber abraçá-la e beijá-la, todo dia, como prova do amor e do orgulho que sinto em lhe ter como minha filha.
Se depois disso tudo lhe sobrar piedade, minha filha, peça a Deus que me conceda a chance de dar a sua filha – minha neta –, quando um dia ela chegar, tudo aquilo que não fui capaz ou não pude oferecer a você até aqui.”
No “Desespero da Piedade”, de Vinicius de Moraes – 1913 a 1980 –, quis buscar inspiração para tentar aliviar a angústia que descia sobre nós, como uma nuvem carregada, toda vez que os ventos de uma nova mudança varriam a nossa casa.
Deu certo. Talvez nem tanto pela carta, mas pela conversa que ela deve ter mantido com todos os santos da Bahia no isolamento daqueles dois dias, pedindo que a tempestade passasse o quanto antes.
Mudamos para Brasília meses depois. As lágrimas secaram apenas quando Lídia concluiu o ensino fundamental, formou-se em Medicina, casou e, em 2008, foi morar com o marido bem longe de casa – primeiro, no Rio de Janeiro; depois, nos Estados Unidos –, onde enfrentaria os primeiros desafios de sua trajetória profissional.
Quatorze anos após aquele retiro espiritual em Salvador – “Dia das Mães” de 2014 – ela nos visitaria em Brasília trazendo numa pequena caixa uma grande notícia: uma chupeta, indício de que sua primeira filha estava a caminho.

Era a chance que a vida me reservara de fazer pela neta que chegaria no final do ano, em seus primeiros seis meses de vida, o que não fui capaz ou não pude fazer como pai.

"...Só eu sei as esquinas por que passei. Só eu sei...
Sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar! Sabe lá...
E quem será nos arredores do amor que vai saber reparar que o dia nasceu?
Só eu sei os desertos que atravessei. Só eu sei...
Sabe lá o que é morrer de sede em frente ao mar! Sabe lá...
E quem será na correnteza do amor que vai saber se guiar?
A nave em breve ao vento vaga de leve e traz toda paz que um dia o desejo levou.
Só eu sei as esquinas por que passei. Só eu sei... ” (Djavan)