quarta-feira, 29 de abril de 2020

Sementes de tangerina


Vinha de longe o hábito de cochilar depois do almoço na varanda do apartamento, deitado numa rede com uma camiseta sobre o rosto, a ouvir o barulho das ondas do mar e, ultimamente, de motores e buzinas na rua, apesar do apelo das autoridades sanitárias para que as pessoas ficassem em casa. 

Havia uma explicação para o pitstop rotineiro no começo da tarde: todo dia acordava bem cedinho, por volta das cinco. Esperava o sol nascer a flanar na internet em sites de notícias, fazendo anotações ou a garimpar imagens nos álbuns digitais da família.

O único barulho que lhe deixava numa aflição inexplicável — coisa de outras encarnações, diriam os especialistas no assunto — era o “flap! flap!” do helicóptero da PM a sobrevoar os quarteirões do bairro, dando apoio às viaturas no asfalto que garantiam a tranquilidade dos donos de hotéis, bares e restaurantes da orla, fechados por conta do turbilhão virótico.

Naquele começo de tarde, sua mulher levaria pelo menos meia hora no banheiro entre shampoo e cremes. Ele poderia, portanto, após generoso prato de carne de sol com macaxeira e vinagrete, cair no sono até que a parceira de quarentena reaparecesse na varanda.

Vê o tal helicóptero fazendo voos rasantes, como se tentasse inibir um arrastão na praia, enquanto um pelotão de policiais corre para o local. Pergunta-se: o que leva o piloto a fazer manobras tão arriscadas, com tantos prédios na orla abrigando famílias confinadas nesses dias de ansiedade e tédio?  

De repente, a hélice da aeronave choca-se com o apartamento dois andares acima do seu. Na mesma hora, exala um cheiro forte de combustível e surgem as primeiras labaredas em meio a tufos de fumaça escura.


A onda de calor lhe faz numa fração de segundo correr até a porta, mas o fogaréu, para seu desespero, já se alastra pelos corredores e desaconselha qualquer tentativa de fuga pela escada.

Atordoado com a gritaria e o alarme estridente do edifício, passa por sua cabeça num piscar de olhos as cenas que vira pela tevê dos atentados terroristas às torres gêmeas do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque, quando uma das aeronaves perfurou os prédios como pregos em barras de sabão.

Ainda cogita se trancar na suíte, ligar o chuveiro e deixar jorrar água na banheira até a chegada dos bombeiros, mas talvez não houvesse tempo. A única saída seria amarrar alguns lençóis e descer dois ou três andares, onde aguardaria o resgate.

Teria que ser rápido porque a estrutura do prédio, naquela temperatura, talvez não resistisse e desmoronasse. Ao começar a descida, no entanto, a corda de lençóis não suporta o seu peso e desata justamente onde fora amarrada no parapeito da varanda.

O horror do corpo em queda livre lhe fez acordar quase urinando de agonia e desespero. Pulou fora da rede e correu até o lavabo, onde esvaziou a bexiga e lavou o rosto, enquanto o coração voltava ao ritmo normal. 

Diante do espelho, esboçou um sorriso sem graça, reflexivo: “E aí, meu velho, quase foi embora sem ver filhos e netos pela última vez? Sem ter dito o quanto ama cada um deles? Qual é a graça de partir sem ver a cara das pessoas que ficam? Quem iria chorar a sua ausência?

Foi quando lhe veio à cabeça o que escreveu Sêneca (4 a.C — 65 d.C), escritor, dramaturgo e filósofo do Império Romano: “... Nisto todos erramos: ver a morte a nossa frente como um acontecimento futuro, enquanto grande parte dela já ficou para trás. Cada hora do nosso passado pertence à morte”. E ainda diria noutra ocasião: “Não é da morte que temos medo, mas de pensar nela.”

Mais relaxado e refeito do pesadelo, ele abriu a geladeira e em seguida retornou à varanda com duas tangerinas descascadas, que chupou sem pressa alguma, gomo a gomo, absorto em pensamentos. Nisso, chega a mulher e vai logo apontando para o chão: “Ei, “véio”, o que é isso aí debaixo da rede?!” 


Se ela soubesse que por pouco não perdeu para sempre a grande paixão de sua vida, não perguntaria pelas sementes de tangerina no chão. Quem sabe até sairiam  juntos pela orla — de máscaras, claro! —, a jogarem pelo caminho, como diria Quintana, “a casca dourada e inútil das horas”.

44 comentários:

  1. Depois da leitura fica um questionamento que envolve a descoberta do valor real das coisas. "O que vale uma semente de tangerina diante de um pesadelo em tempo de pandemia?"

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  2. Muito bom! Fico imaginando como andam nossas cabeças esses dias... Não consigo expressar em palavras os sonhos loucos que venho tendo. Às vezes me surpreendo olhando o armário de roupas cheios de peças( algumas ainda sem terem sido usadas) me conscientizando de quão efêmera é a vida e essa terrível incerteza do amanhã. Cada amanhecer é uma dádiva!

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    1. De repente, tudo poderia ser tão simples, como chupar uma tangerina numa rede. Mas não é. A gente faz questão de complicar até um dia começar a fechar o ciclo e voltar a ser criança novamente.

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    2. É bizarro tudo isso... Ainda não digeri muito bem.... Estou em luta constante.

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  3. Gostei muito e parece que todos nós já passamos por isso, mesmo sem ter as cascas da tangerina.

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  4. Também fiquei aflita, até descobrir que o amigo estava sonhando, ufa!
    Um sonho e a realidade dos detalhes da vida.
    Amigo, em cada cronica você se supera, e nesses tempos de pandemia, refletir sobre a vida e a morte, é necessário.
    Excelente!

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  5. No sonho produz um belo texto e um grande momento de reflexão, sendo com grãos de tangerina, seja com o despertar para a realidade, destacar a importância de vivermos cada momento da vida. Como cantou Chico, como se fosse o último.

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    1. É por aí Tom. Faz bem nesses dias de pandemia e reflexão ouvir de novo Chico a cantar coisas como:
      “Tem dias que a gente se sente
      Como quem partiu ou morreu
      A gente estancou de repente
      Ou foi o mundo então que cresceu
      A gente quer ter voz ativa
      No nosso destino mandar
      Mas eis que chega a roda viva
      E carrega o destino pra lá
      Roda mundo, roda-gigante
      Roda moinho, roda pião
      O tempo rodou num instante
      Nas voltas do meu coração...”

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    2. Isto Mestre Hayton. Excelente. É a Vida....e é Bonita....
      Vamos que Vamos!!!

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  6. Quem não tem sonho louco nessa época de pandemia.Se eu soubesse escrever tão bem como vc,faria um livro,rapidinho.Tempos de Pandemia

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  7. Belo tema.
    Como dizia o poeta:
    "Só vivemos 9 meses. O resto do tempo passamos morrendo".
    Aproveitar essa viagem é a palavra de ordem.
    Mas a morte é ignorante. Vai levar no sopetao.
    ACCampos.

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  8. Excelente crônica! Confesso que fiquei ansioso e com medo do final, mas graças a Deus, só foi um sonho. Onde nos leva a reflexão da dura realidade da morte, mas também nos alerta a viver com mais simplicidade e deixar algumas bobagem de lado.

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  9. Ufa! Isso não foi um sonho, mas um pesadelo. Se a mulher perguntou sobre as sementes é porque não é costume isso acontecer.

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  10. As controvérsias são muitas... somos gerados e já começamos a morrer ou nascemos e iniciamos a caminhada? E aí vem a situação de darmos tanta importância a pequenas coisas ou atitudes e não prestarmos atenção àquilo que de fato é importante e que só notaremos depois de perder...

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  11. Como diz o velho adágio popular: "Não existe um mal que não traga um bem"! Eu, também, já tive meus problemas com as sementes de tangerina no chão. Com a Pandemia, porém, esqueci o dando, e passei a vê-las, ali, apenas como simples carocinhos descansando, depois de completar seu ciclo de vida!
    E comi diz a música de Moacir Franco, "não é medo da morte que assusta, 'as vezes é pior seguir vivendo"! Esse é o momento!

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  12. Uma leitura deliciosa que nem tangerina, tanto refresca quanto ilumina.

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  13. A vida seria simples se a vivêssemos com simplicidade. Gastamos muita energia em busca daquilo que não necessitamos. Mais uma bela crônica, Dr. Hayton

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  14. Agostinho Torres da Rocha Filho29 de abril de 2020 às 10:35

    Parabéns!!! Bela reflexão sobre a vida, a partir de um pesadelo muito comum aos mortais em tempo de isolamento social.

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  15. Muito bom! Manda bem também no realismo! Outro texto bom de ler!

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  16. O grande pesadelo de quem sonha sobre a morte é se sobrevivemos a ela.
    É isso que acontece comigo, e sempre que acordo desse trauma rezo, agradecendo a Deus por estar vivo.
    Parabéns, Hayton! Seu texto, neste tempo de pandemia, leva-nos a refletir
    sobre a vida e a morte. A advertência da esposa pelos caroços de tangerina espalhados no chão deu toque de suavidade à narrativa e, certamente, foi a melhor bronca que você já ouviu dela.

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  17. Nesses dias de hoje, em que não sabemos distinguir ao certo em que dia da semana estamos, na sensação permanente do filme "O feitiço do tempo" (ou Dia da marmota), o texto traduz a quanto anda o nosso mundo imaginativo. Mais uma excelente crônica.

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  18. Por mais cascas douradas das tangerinas da vida!

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  19. Interessante é que começando a leitura tive certeza de que o personagem era você mesmo. Esperava um desfecho romântico, alegre, até que a asa do helicóptero - sim, helicóptero tem asa, é sua hélice que faz esse papel de sua sustentação, quem é iniciado em aviação sabe disso - chocou-se com a parede do prédio provocando o acidente.
    Aí tive certeza de que nada tinha a ver com você e fiquei aflito pra saber o desfecho. Foi com alívio que descobri tratar-se de sonho(?).
    Ao final concluí, até pra fazer uma sacanagem com seus leitores você faz a coisa com brilhantismo.
    Parabéns e grande abraço.

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  20. Afiadíssimo, em alegro crescente!
    Gostei da descrição dos aviões perfurando o World Trade Center feito pregos num sabão!
    Ta quase pronto o segundo livro?

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  21. O primeiro comentário, de Ademar Rafael, me remeteu a um dito popular chulo: "O que é um peido a mais pra quem já está todo cagado?!"

    Gostei também da comparação com prego numa barra de sabão à tragédia do 11 de setembro.

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  22. Este comentário foi removido pelo autor.

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  23. Gostei muito da parte do Sêneca:Nisto todos erramos: ver a morte a nossa frente como um acontecimento futuro, enquanto grande parte dela já ficou para trás. Cada hora do nosso passado pertence à morte”. E ainda diria noutra ocasião: “Não é da morte que temos medo, mas de pensar nela.”

    Deliciosa leitura que remete à reflexão. Vou compartilhar, claro.

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  24. Pra um coração de uma ansiosa, foi tenso terminar a leitura sem acelerar... Por um momento achei que tivesse acontecido. Ainda bem que foi sonho... Fica a reflexão sobre o que realmente importa...

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    1. FABRICIO LUCAS DI PACE30 de abril de 2020 às 09:37

      Oxe, chamei até Myrella qndo chegou na parte que a hélice tinha pego no apto de cima kkkkk Muito bom esse texto, parabéns mais uma vez Hayton

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  25. Mais uma pérola, como disse Altamira, tão real a descrição que, como num filme, a tensão foi crescendo a cada palavra que lia. Sempre bom dessa forma, o sonho pior que a realidade. As pautas diárias tem nos levado a fixar o pensamento nos temas recorrentes, deixando em nosso inconciente, ou subconsciente, ajudem-me os psicanalistas, um terreno mais que fértil para essas fantasias. Por outro lado, na real, aqui em casa, não há espaço para puxão orelha, toda limpeza está sobrando pra mim...hehe... Abs

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  26. HAYTON, que susto! até chegar ao final dos fatos narrados, meu coração estava quase à boca...felizmente não passou de um pesadelo contextualizado e tudo não passou de simples caroços de tangerina, como disse alguém acima, refresca e ilumina! Um abraço.

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  27. Puxa! Que pesadelo amigo. Acho que o vinho, nesta quarentena, está me ajudando a dormir “feito criança”. Excelente crônica.

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  28. Uma reflexão para valorizar nossa melhor construção: a família.

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  29. Já há algum tempo penso na morte, cada vez mais próxima, como o maior objetivo, desde os 18 anos, quando tive a primeira depressão existencial. É o objetivo de saber o que tem ‘do outro lado’. Penso assim ‘oba vou saber em breve’!

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    1. Não ache que as pessoas engraçadas tem uma vida absolutamente feliz. Qualquer texto com alguma dose de humor quase sempre é apenas um jeito silencioso de o autor chorar sem lágrimas,

      Você vai morrer. Eu vou morrer. Todo mundo que conhecemos vai morrer. A realidade da morte é tão óbvia quanto assustadora para a maioria de nós.

      Mas se estamos agora confinados há mais de mês, é sinal de que não temos pressa nenhuma em acelerar o rio. Ele tem seu ritmo e não chega ao mar antes da hora.

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  30. Mas eu não tenho pressa em acelerar o rio, como você fala. Mas se é inexorável, pelo menos vou saber o que tem ‘do outro lado da vida’!
    Sem pressa!!!

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  31. Depois de um sonho pesadelo desse fico a pensar que uma doce e suculenta pinha de Palmeira dos Índios daria mais sementes para ficar remoendo mais que as de uma tangerina. Eita aperreio da peste.

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  32. Depois de um sonho pesadelo desse fico a pensar que uma doce e suculenta pinha de Palmeira dos Índios daria mais sementes para ficar remoendo do que as de uma tangerina. Eita aperreio da peste.

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  33. Baita susto, amigo. Como bem dissestes, tudo passa muito rápido, por vezes, em frações de segundos. Vivamos...

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  34. Cara, que criatividade fantástica... fico imaginando quais seriam suas fontes de inspiração para cada história tão diferente uma da outra. Essa me lembrou desta:

    "Quase

    Ainda pior que a convicção do não e a incerteza do talvez é a desilusão de um quase. É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi. Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda, quem quase morreu está vivo, quem quase amou não amou. Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por medo, nas ideias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono.

    Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna; ou melhor não me pergunto, contesto. A resposta eu sei de cor, está estampada na distância e frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença dos "Bom dia", quase que sussurrados. Sobra covardia e falta coragem até pra ser feliz. A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai. Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, sentir o nada, mas não são. Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza. O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.

    Não é que fé mova montanhas, nem que todas as estrelas estejam ao alcance, para as coisas que não podem ser mudadas resta-nos somente paciência porém,preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer. Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo. De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma. Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance. Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu."

    Sarah Westphal

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  35. Caraca Hayton, No início da leitura até pensei que se tratava de uma história real. Muito envolvente a crônica. E que pena, como elas prestam atenção nas “sementinhas de tangerina”. Mas nós gostamos muito delas mesmo assim.

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