quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Bigodes nunca mais!


Berço do ex-senador Teotônio Vilela  o menestrel das Alagoas  e de seu irmão cardeal primaz do Brasil, Dom Avelar Brandão, a alagoana Viçosa, com pouco mais de 25 mil habitantes, está encravada no Vale do Rio Paraíba do Meio, a 86 km da capital.

Lá o escritor Graciliano Ramos viveu e inspirou-se para escrever São Bernardo, obra-prima publicada em 1934 em que o personagem Paulo Honório faz reflexões sobre sua vida, de guia de cego no interior até se tornar um grande e inescrupuloso latifundiário. 

Lá também viveu Seu Vilaça, caminhoneiro trabalhador como poucos, olhos apertados, sobrancelhas grossas, bigodinho bem aparado, casado com Lourdes, paixão antiga com quem trouxe ao mundo 15 filhos, metade meninas.

O sustento da prole dependia de um caminhão Ford 46 de dois eixos carinhosamente apelidado de "Bigode", cuja partida dependia de uma manivela conectada ao virabrequim. Até que fossem criadas as primeiras baterias, o motorista desse tipo de veículo toda manhã rezava e ensopava de suor girando a tal manivela para fazer pegar o motor. 

De setembro a abril do ano seguinte  período de moagem da safra canavieira no Nordeste —,  Seu Vilaça transportava a produção de pequenos fornecedores de cana-de-açúcar das redondezas para a Usina Boa Sorte, pertencente ao então senador Teotônio Vilela.

O sábado era dedicado ao “descanso”, isto é, a lavar o veículo e a fazer pequenos reparos. E já a partir das três da madrugada do domingo, reunia vendedores ambulantes na periferia de Viçosa para transportá-los à feira livre da vizinha cidade de Capela.

Com a família numerosa e a necessidade cada vez maior de fazer carretos para que nada faltasse “às meninas”  Seu Vilaça não ligava muito para os meninos porque, dizia ele, “quem tem filho de bigode é gato” —,  essa rotina não poderia ser quebrada. 

Mas foi. Numa manhã de domingo, Zé Alves, político e grande fazendeiro na região, bem cedinho deslocava-se para suas terras a fim de vistoriar lavouras e rebanhos quando avistou Seu Vilaça, no meio da neblina que cobria a rua, a soltar labaredas pelas narinas peludas. 

Com o capô aberto, mexendo em tudo que era peça do "Bigode", tentava em vão dar partida no motor girando a manivela:
 Oh, meu Bom Jesus do Bonfim, a bobina tá bobinando, o carburador tá carburando, o relê tá relando, todo domingo eu vou à missa com Lourdes e este caminhão não quer pegar!
 Calma, Seu Vilaça...  quis desanuviar Zé Alves.
 Eu tô calmo! Não é você que tem um magote de mangaieiros pra levar pra feira de Capela!
 Tô vendo a calma... Tenha cuidado com o coração!
 Que coração coisa nenhuma! Ninguém merece uma vida de aperreio dessas.
Pouco tempo depois o motor do caminhão pegaria e ele pôde, mais uma vez, cumprir sua rotina semanal junto aos pequenos feirantes. 

De noite, ajoelhado na igreja, ao lado da mulher, diante da imagem do santo padroeiro, suplicou perdão pelos impropérios ditos pela manhã:
 Pelo amor de Deus, meu santo, fazei com que nenhuma de nossas filhas se apegue a um homem com um "Bigode" velho feito o meu... 

Mal acabou a oração, virou-se de lado e deu de cara com um bancário recém-chegado na cidade, do bigodão preto, com um olhar de luxúria para uma de suas filhas. Quis esconder sua satisfação com a rapidez do santo padroeiro  já ouvira falar daquele cidadão respeitável , mas ao notar que ali o motor da paixão já faiscara mesmo sem ajuda de manivela, chamou o moço na porta da igreja e puxou conversa: 
 Só trisque o dedo nela se for pra casar, ouviu bem?!
 Claro, Seu Vilaça.
 Me disseram que você tem medo de sapo cururu. É verdade?
 Nao é medo... é nojo. Coisa de menino criado em beira de rio. 
 Sei... Me diga outra coisa: um passarinho me contou que, além de trabalhar no banco, cê toca uma sanfona arretada. 
 Tô parado. Tive que me dedicar aos estudos para o concurso. Mas um dia eu volto...

Nunca voltou. Poucos meses depois, Seu Vilaça levaria a filha até o altar onde o bancário do bigodão preto a esperava. O casal foi passar a lua de mel na Bahia e gostou tanto do dique do Tororó, do acarajé de Amaralina, do afoxé Filhos de Gandhy, do caranguejo da Pituba, da ladeira do Pelô e do pôr do sol no Farol da Barra, que resolveu não voltar ao interior de Alagoas. 

Morto de saudade da filha que deixara a casa paterna e o torrão natal, Seu Vilaça espairecia na boleia do "Bigode" assobiando coisas como o baião Boiadeiro, de Gonzagão: 

"(...) De tardezinha quando venho pela estrada 
A fiarada tá todinha a me esperá 
São dez fiinho é muito pouco é quase nada 
Mas num tem outros mai bonito no lugá (...)"

Algum tempo depois, num dia útil qualquer, o “Bigode" foi nocauteado, com manivela e tudo, por falência de múltiplas peças corroídas pela ferrugem. Seu Vilaça, de faróis baixos para seguir adiante na escuridão do futuro, com os filhos crescidos e os olhos embotados de poeira e lágrima, raspou o bigodinho já grisalho e sentou de vez para descansar como se fosse sábado. 

42 comentários:

  1. Eita que hoje ele começou cedo!Vou ser a primeira a comentar ! Gosto tanto desses contos do interior...E quando tem romantismo então! Parecendo uma novela das seis ( do tempo que " valia a pena").) Fico tentando adivinhar quem seria esse protagonista na vida real. Mais tarde volto pra ver os comentários e descobrir. Gostei! Rsrsrsrs

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  2. Mais uma bela e bem contada crônica! Que fonte inesgotável de tantas boas histórias é essa, mestre Hayton?!!!Parabén de novo!

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  3. Quantos Vilaças fizeram distribuição de alimentos por este Brasil da "logística integrada" de hoje? Que textos deste nível os alcancem e que a troca das "manivelas" pelos sistemas de ignição automáticas não nos afaste das coisas do interior.

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  4. Linda história de um homem honesto e trabalhador, um autêntico Guerreiro das Alagoas. É de lá também o folclore sempre cantado nas festas de final do ano que diz assim:
    Viçosa, do nosso Brasil,
    Eu longe de ti, a saudade me mata.
    Pessoal, eu sou de Viçosa,
    Cidade mimosa, Princesa das Matas.

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  5. ANTONIO CARLOS CAMPOS5 de agosto de 2020 às 07:06

    Com o tempo não ficamos velhos, viramos icebergs, onde só um pequena parte é conhecida. Ainda bem que existem esses intrépidos mergulhadores que se aventuram até o fundo, descrevendo para todos a sua visão do profundo. Alagoas é o Brasil em miniatura.

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  6. Um texto de sensibilidade ímpar que retrata muito bem a evolução da vida do interior, na qual muitos de seus filhos migram pra cidade grande. E, de lá nunca mais voltarão.

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  7. Belo conto! Lembro-me do meu pai. Sempre na mão com carros antigos fazendo viagens por este Brasil. Ele mesmo era o mecânico...

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  8. Mais um belo conto, Jurema!
    Mas eu acho que o bancário de bigode tinha mesmo era medo de sapo... não teve certa vez que ele deixou de se aproximar da noiva, que se encontrava sozinha em casa, por conta de um sapo que se encontrava no jardim da casa?
    Mas acho uma injustiça dizer que ele nunca mais voltou a tocar sanfona... ele bem que tentou, alguma anos depois...mais aí surgiram alguns amigos “sacanas” que lhe perturbaram o juízo com tantos trotes que ele ficou traumatizado, como já relatado aqui neste blog em outra crônica...

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  9. A cada crônica conhecemos um pouco mais dos municípios e hábitos nordestinos, com aquela narrativa que nos prende do início ao fim.

    Sei que meu hábito é estranho, mas voltei a gostar de ler no "colo de Celite", como diria um colega de Campina Grande-PB.

    A menção a Dom Avelar, me fez pensar em Seu Vilaça matriculando as filhas numa imaginária FACULDADE DE ODONTOLOGIA DOM AVELAR, em Sergipe, de sigla não publicável.

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  10. Grande Hayton, sensacional! Texto delicioso.

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  11. Sensacional!! Ficou ainda melhor por falar na Viçosa, cidade que adoro.

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  12. Linda história de três bigodes e uma filha que não era de gato. Lembro ainda desses FNM com manivela e os Fordinhos que não pegavam de manhã. Era divertido ficar olhando o motorista tentando fazer pegar, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Histórias lindas que evocam lembranças de infância.

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  13. Texto afiado, sensível! Velhos tempos em que moçoilas e suas famílias ficavam de botuca observando cada novo funcionário do Banco do Brasil que chegava nas cidades do interior. E muitos deles achando que era porque se pareciam com Alain Delon!

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    1. Já fomos um partidão, hein, Riede! O tempo passa, o tempo voa...

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  14. Bela e bem escrita crônica Hayton! Leio com muito prazer... 👏👏👏

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  15. O texto é lindo! Creio que todos nós, seus ávidos leitores, teriam histórias para contar dos nossos tempos do interior e nossos pais com seus veículos de estimação e irritação. Sei que você já relatou o dia que o genro do senhor Vilaça tentou voltar a tocar a sanfona. Teria havido alguma outra tentativa? Bem-sucedida, claro!

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  16. Quarta-feira sempre foi muito sem graça! Quando cai num feriado então. Fica difícil conseguir dois abonos-assiduidade para transformá-la em feriadão. Pra conseguir, tem que ter muita média com o Chefe.
    Agora não é mais, pois tem a leitura de seu blog.
    Somente você, com essa memória brilhante para contar tantos “causos”. Aqueles sobre a sua infância são ótimos. Até parece que fomos criados no mesmo local vivendo a mesma história e brincadeiras.
    Quando você fala sobre o nosso Vascão é um deleite. Deixe “eles” comemorarem hoje pois nós voltaremos a ser gigantes.
    Jorge Nery

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  17. Muito legal, e a cada crônica me remete à minha infância em Jacobina. Lembro e relembro de coisas que estão guardadas nas mais longínquas da minha memória.

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  18. Top! Um jeito de primeira de contar histórias de quarta.

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  19. Mais uma vez sua crônica me fez viajar - nao de "bigode" - de volta à infância, para observar meu pai girando a manivela para fazer funcionar o caminhão Dodge da década de 1960, utilizado para fazer fretes, nas safras de café do Noroeste do Paraná. Uma deliciosa saudade dele que ontem, se vivo estivesse, estaria completando 103 anos. Parabéns por mais esta bela crônica.

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  20. Final dos anos 50, sol a pino, motorista, todo suado, girando a manivela do velho Dodge, enquanto nós, os "craques" do Penharol, "famoso" time do bairro de Ponta Grossa, Maceió (AL), na torcida para que o motor "pegasse" logo e pudéssemos subir na carroceria do veículo em direção ao interior, para mais um show de bola (kkkkkk).
    Sensacional! A crônica.

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  21. Beleza de texto. Me vi subindo na carroceria de um caminhãozinho Chevrolet 1928, que meu pai tinha quando morávamos em São Luiz Gonzaga-RS, que era usado exclusivamente em pescarias ou caçadas.
    O funcionamento dele, iniciado pela manivela, era divertido e perigoso. Mais de uma vez assisti companheiros do pai terem o antebraço quebrado pelo “contra”, como era chamado o golpe dado pelo motor na manivela, em sentido contrário ao movimento inicial.

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  22. Acho até que sei quem é o bigodudo sanfoneiro. Rsrs

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  23. Texto inspirado e sensível. Nosso Nordeste de histórias saborosas e que você conta com maestria.

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  24. Como sempre excelente crônica! Abs

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  25. De parto a atracação de navio, não há tema sobre o qual sua mente inquieta e brilhante não produza uma história deliciosa contada depois em crônica que todos aplaudimos.
    E aínda consegue descrever personagens que parecem íntimos nossos.
    Que pena que só deve lhe restar uns quarenta anos de vida, muitas gerações não conhecerão seu talento...

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  26. Feliz por ter a oportunidade de ver meu avô e meus pais aqui representados em mais uma excelente crônica escrita por vc!! Obrigado!

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  27. Crônica ou memórias? Acho que sei quem é tal do bigode preto... só não sabia que tocava sanfona!

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    1. Eu lembro com muito detalhe da mudança que fizemos de Caucaia (Hoje faz parte da Grande Fortaleza)para a capital ( era longe na época). A tal manivela deu um trabalhão dos diabos. Pivetinhos pequenos ( eu e a mana ) no colo da mãe na boleia ( pense na segurança😂). Uma aventura e tanto. Quando estava lendo o texto eu conseguia visualizar perfeitamente o "Bigode", até ouvir o motor e sentir o sacolejo nas estradas de piçarra. Obrigado por reativar minhas memórias. Gente do bem o Sr. Vilaça.

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  29. Gratidao pelas lindas palavras, verdadeiras e originais, Sr,. Vilaça orgulho de toda família, Meu avô, que se encontra com o senhor , no lugar abençoado . saudadesssss

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  30. Eita que meu amigo Manoel e sua princesa Fatima devem estar inflados de tanta satisfação!
    Quem não estaria??

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  31. Esse povo "da Viçosa" (como se falam por lá) é mesmo diferenciado.
    Por isso que sempre costumo dizer que VIÇOSA NÃO ME PARIU, MAS VIÇOSA ME CRIOU.
    Mais uma crônica maravilhosa. Cheguei bem atrasada dessa vez, mas valeu a pena cada parágrafo. Você arrasa demais, meu tio!

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  32. Linda e poética. "Coisas dos Juremas",pois todo palavreado introduzido na crônica poetada, sugere uma imaginação cinematográfica das ações e seus belos atores. Viagem com essa crônica poetada na boleia do "BIGODE. Bela cronica!

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  33. Agostinho Torres da Rocha Filho10 de agosto de 2020 às 19:03

    Maravilha de crônica!!! Ainda mais por homenagear um exemplo da casal, Manezin e Fátima. Parabéns!!!

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  34. Adoro essas crônicas que retratam belas histórias do "interior". Lembro logo do meu Maranhão. Esse Hayton está se superando cada vez mais nos seus escritos.

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  35. Caro Hayton, mais uma de suas excelentes crônicas que nos remte a tempos longíquos de nossa infância, mesmo sendo municípios diferentes, mas uma coisa é que nos pequenos interiores do nordeste se parecem muito. E seus personagens da vida real, trazem certo colorido ao seu belo texto. Muito bom, mais uma vez, vale a pena nos deleitarmos por textos tão gostosos de ler. Sem contar que suas crônicas conseguem nos arrancar boas risadas. Um abraço

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