quarta-feira, 2 de junho de 2021

Vá entender...

Cruzam por acaso no Dique do Tororó, próximo à Fonte Nova, em Salvador, e interrompem a caminhada por causa dos pingos da chuva que engrossam. Há muitos anos não se viam.

– Aguilar?

– Sim! Perdi os cabelos, tô pesadão, mas... Evaldo, né?

 É. De hoje que quero te ver, meu velho. Acabei de ler o livro. Venha cá, quando tu começaste a escrever?

– Rapaz, bote tempo nisso... 

– Tu eras ruim de redação, no ginásio, hein?! 

– Melhorei. Tinha que escrever quase todo dia, no trabalho. Me ajudou muito.

– Agora, sim, tá brocando. Aliás, só tu mesmo, Aguilar, com esta cabeçona da zorra pra me explicar o que tá acontecendo no mundo. 

– Tá me tirando, é?

– De jeito nenhum! Tô é virado no cão. Ó paí ó! – aponta Evaldo para a notícia na telinha.

 

Yuri Tolochki, renomado fisiculturista do Cazaquistão, que já conquistou duas vezes o título Master of Sports, fala sobre a discriminação que vem sofrendo no meio esportivo depois que se casou, em 2020, com uma boneca sexual.




Algum tempo depois do casamento, o bodybuilder se separou da então esposa, Margo e, para espanto da comunidade, agora se relaciona simultaneamente com duas outras bonecas sexuais: Luna e Lola. 

 

Yuri se queixa de que vem sendo hostilizado pelos colegas de profissão, os quais pressionam a federação de seu país a excluí-lo das competições.

 

Acontece que os colegas entendem que o caso é ofensivo à moral e aos bons costumes, e que a associação do nome dele à federação fere sentimentos religiosos, além de manchar a imagem de outros atletas “dignos”.

 

Tudo me leva a crer que o ser humano é um bicho que ainda não deu certo. Todos os outros pensam, exceto o que fala, lê e escreve. 


– Diga aí, qual é o problema? – provoca Aguilar. 

– Oxe! Nossa Senhora me defenda! O mundo tá perto de acabar!

– Isso acontece, Evaldo. Tudo muda, mas nem sempre para pior.

– Como assim?

– Repare bem: o cara tá casado com duas mulheres que não reclamam de nada! Nem do mijo na borda do vaso sanitário, das meias desemparelhadas na gaveta, da toalha molhada na cama, do cabelo no ralo do banheiro, do aipim com casca que ele traz da feira, do farelo de bolacha na sala, da casca de laranja no balcão da pia, da lixeira cheia, da lâmpada queimada, da tesoura cega, do sinal de internet, da água fria do chuveiro...

– Rapaz, juro que não tinha me tocado! Tem mais: duvido que uma dessas mulheres peça a ele para desentupir boca de fogão, aguar jardim, enxugar panelas, levar cachorro pra passear, consertar varal de teto, torneira pingando, telha quebrada ou curto-circuito na rede elétrica, sabendo que o miserável passou a vida ralando como bancário ou professor, por exemplo. 

 

Surpreso com o rumo da conversa, Aguilar ainda tenta segurar a onda:

– Peraí, Evaldo, tô brincando com você. Acabei cutucando o ogro que tem aí dentro, né?

– Porra, velho, a conversa tá mexendo comigo. Tô aqui só castelando na cara de felicidade do fortão. Nenhum pé de sogra, tia, prima, cunhada ou sobrinha dando pitaco na estampa do sofá, no modelo de geladeira, tevê ou abajur. Nem na pintura ou no piso da casa.

– Pegaste ar, hein?! – ri Aguilar, agora surfando na onda que se formava  Será que as bonecas, daqui a 10 ou 15 anos, vão perguntar se o cara ainda sente a mesma coisa que sentia antigamente?

– Aonde, rapaz? E se o cara encher o saco, resolver se picar, nada de ouvir conselho de ninguém, de discutir relação, divórcio litigioso, briga na partilha de bens, guarda de filhos, pensão alimentícia... Tudo na paz, na boa.

– Olhe só, depois nego diz que escritor viaja demais. Quando pensa que não, é o leitor quem lê o que quer, quando quer, como quer e distorce tudo. Fui tirar onda, ó...

– Me poupe. Mas quem sabe este papo rende uma história porreta. Por que não escreves?

– Melhor não. Vai que acordo com um corte na garganta ou uma chaleira de água quente nos ouvidos. Às vezes, minha mulher fica retada com o que escrevo.  

– Acho que me lembro dela. Não é a...

– Sim, ela mesma! Lá do colégio.

– Achava linda.

– Vai dizer que...

– Bronzeada, bocão vermelho, cabelos encaracolados...  E aquele biquini branco que ela usava lá em Stella Maris, hein?!

– Né possível... Tu nunca...

– De jeito nenhum, irmão! Nada de chouriço. Seria crocodilagem. 

– Ah, bom! Ó... Vai fazer o quê no feriadão?

– Nada...

– Aluguei casa de praia lá em Itaparica. Bora ficar de prega, comer moqueca e jogar baralho? Minha mulher vai comigo. Leve a patroa, Evaldo.  

– Aí me quebra, Aguilar. Vou não. O colesterol e a glicose tão lá em cima. Se não fosse a patroa cuidando de mim, de minha comidinha, sei não... Mas reclama de tudo, viu?!

– Aí é lenha...


A chuva passa. Os dois se levantam com um "a gente se vê". E eu, que a tudo assisti por acaso, até tentei alcançar o que aconteceu e traduzir aqui o que escutei. Vá entender esses animais racionais.

36 comentários:


  1. Mais uma crônica para ser refletida. Adorei

    ResponderExcluir
  2. Tô imaginando essa crônica no enredo de um programa humorístico!!!! Não seria Zorra Total, e sim Sucesso Total....

    ResponderExcluir
  3. Quando o talento do cronista marca encontro com a vida real e os 'enfeites' da ficção sai coisa boa. Aqui a prova.

    ResponderExcluir
  4. Pois é...Dessa crônica só consegui captar que a gente reclama, reclama, mas no fundo no fundo esses seres " inacabados" estão sempre precisando uns dos outros...A "veinha" " reclamona" é quem lhe faz companhia e cuida da sua dieta. Somos seres PERFEITOS em nossas imperfeições.

    ResponderExcluir
  5. Se não fosse a patroa cuidando de mim...Mostra que o bicho que pensa reclama de tudo, mas não larga o osso. Adorei a lista de tarefa de um pobre aposentado de banco. E vai reclamar pra ver...É lenha, viu? kkkkkkk

    ResponderExcluir
  6. Excelente crônica! Reflete com maestria e humor as relações humanas.

    ResponderExcluir
  7. ANTONIO CARLOS CAMPOS2 de junho de 2021 às 06:36

    É uma opção, mas não deve ser exercida; tem muito risco.

    ResponderExcluir
  8. Gostei, fez me sentir caminhando no Dique do Tororó

    ResponderExcluir
  9. Mais um belo texto trazendo o dia a dia de nossas vidas, fazendo-nos a reflexão da vida que queremos..........

    ResponderExcluir
  10. Companhia não é só ter a presença da matéria. A gente sempre vai querer um algo mais, algo que mexa com as sete camadas da nossa existência (Corpo, Mente, Respiração, Intelecto, Memória, Ego e Ser). Esse conhecimento milenar indiano só nos comprova que o homem sempre vai buscar atingir essas camadas para se manifestar. O "penso, logo existo!" está centrado no intelecto. Precisamos de algo mais que isso!!! Muito mais!🤭

    ResponderExcluir
  11. Hayton, parece um relato do dia-a-dia, cheio de cultura e intimidade. Muito massa!

    ResponderExcluir
  12. Que imaginação fértil! Me deu vontade de dar uma volta no dique do Tororó jogando conversa fora, sem chuva, é claro. Kkk

    ResponderExcluir
  13. Que leitura prazeirosa! Alegria em ler, rir com a situação e refletir.

    ResponderExcluir
  14. Muio boa essa história. Lembrar da Bahia, do Noroeste, num dialeto gostoso de ouvir. Parabéns.

    ResponderExcluir
  15. Gostei da história. Dois filósofos ao léu. Muitas dessas “filosofaras” tornaram-se sabedoria popular. Sei não viu ..... Bom saber da existência de um xarah filósofo, aina que na ficção. Rsrs

    ResponderExcluir
  16. Eta digitação....!! Filosofadas e ainda 👆👆

    ResponderExcluir
  17. Excelente. Como sempre. 👏🏼👏🏼👏🏼

    ResponderExcluir
  18. Ahh! ia dizer que conheço um dos personagens...rsrs. Mais uma especial, com riqueza de detalhes e nos transportando para os cenários da história. Como foi dito, o dialeto é formidável, entende quem sabe.

    ResponderExcluir
  19. Excelente o papo em linguagem "baianês". Vou precisar de um tradutor para entender o que os dois amigos conversaram. Quanto à filosofia do texto, deixo para os mais entendidos no assunto.

    ResponderExcluir
  20. A vida que podia ter sido, no dialeto soteropolitano. Rindo até agora, meu rei!

    ResponderExcluir
  21. Hilária passagem. Se contada por alguém sem crédito restaria o espanto. Mas, da cabeça do autor tudo vale. São apenas pequenos retoques que são acrescentados para dar mais colorido à passagem. As falas foram transcritas minuciosamente. Dá quase para ouvi-las repetidas pelas personagens. A coloquialidade que há nelas só deixa o enredo ainda mais emocionante. É vida bem vivida. Que consegue recolher recortes incríveis e cheios detalhes.
    Roberto Rodrigues

    ResponderExcluir
  22. Muito boa. Mas não fica dando ideia... vai que alguém encare a situação rsrs.

    ResponderExcluir
  23. Hahahahahaha
    Impagável! Tão verdadeira, que parece mentira (ou o inverso, sei lá!).

    ResponderExcluir
  24. Gosto muito de reflexões profundas sob o manto do bom humor e da informalidade!!
    Adorei a crônica!

    ResponderExcluir
  25. Muito bom! Difícil é parar de rir!!!

    ResponderExcluir
  26. Kkkkk muito boa, Hayton!

    ResponderExcluir
  27. Lembrei do grande Stanislaw Ponte Preta - "o samba do crioulo doido".
    Você se supera sempre, até parece que é pra sacanear a gente.
    Não basta relatar, fantasiando, casos acontecidos, tem que criar também. Quem sabe uma hora você cria uma inspirado pelo gabinete do ódio, eles merecem!!!!

    ResponderExcluir
  28. Aproveitei e inclui, na minha lista, novas tarefas domésticas para o marido.kkk
    Excelente texto!!

    ResponderExcluir

  29. Pai d'Égua Breve farei uns relatos de setentão

    ResponderExcluir
  30. Agostinho Torres da Rocha Filho9 de junho de 2021 às 11:07

    Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, no silêncio e no moído, não separe o homem o que Deus uniu. De acordo com o humorista Zé Lezin, moído de mulher incomoda o homem tanto quanto zumbido de muriçoca em noite de verão e o texto retrata com muita propriedade, bom-humor e criatividade esse importante atributo da mulher. Que o Senhor tenha piedade de nós! Parabéns! Ótima crônica!

    ResponderExcluir
  31. Você me fez rir demais, ficar com raiva (sabe a história do espelho?), e rir de novo. Excelente!!!

    ResponderExcluir