Quem pensa que uma infância feliz é aquela que segue a liturgia politicamente correta dos dias de hoje está enganado. Essa coisa de pai e mãe que dialogam, perguntam pelas tarefas escolares, dão abraços e beijos, dizem aos amigos que os filhos são inteligentes, lindos e maravilhosos, deve ser interessante, mas nunca experimentei desse doce.
Como nunca o provei, não posso dizer que sinto falta. Ninguém sente falta do que não provou. Quando criança, não me lembro se algum dia recebi um beijo de minha mãe ou de meu pai, ainda que me amassem – nunca duvidei disso! – e não me deixassem nada faltar. Éramos felizes mesmo assim.
Puxando pela memória, tia Creuza, linda e magrinha como uma borboleta, foi a primeira pessoa da família que me fez um carinho mais explícito: um abraço apertado e um cheiro no cocuruto numa das vezes em que meus pais visitaram o sítio Jacaré, no Agreste paraibano, onde ela morava com meus avós maternos.
Desde novinha, sempre quis ser como o velho pai Zé de Brito Jurema e o irmão mais velho, tio Olívio, inclusive no trajar, no uso de cigarro de fumo de rolo e no lidar com o cabo da enxada e da foice, por mais que a mãe insistisse para que ela ficasse em casa com as irmãs mais velhas.
Sob a orientação do pai, ela e o irmão vendiam aquilo que a família não consumia para poder comprar o que não conseguiam extrair da terra: açúcar, café, sal, roupas, essas coisas. Cadernos, lápis e livros nunca foram importantes para eles.
Se livros nunca foram importantes, tia Creuza nunca leu Kundera, para quem "ter um filho é como dizer: nasci, apreciei a vida e constatei que ela é tão boa que merece ser repetida". Ou Millôr, que disse que "pais e filhos não foram feitos para ser amigos, mas para ser pais e filhos". Que "metade da vida é estragada pelos pais; a outra metade, pelos filhos".
Também nunca ouviu falar de Shakespeare, que afirmou que "o casamento faz de duas pessoas uma só: difícil é determinar qual será". Ou Fleming, para quem "na maioria dos casamentos as pessoas não se juntam; elas se subtraem". Ou ainda Nietzsche, que garantia que "o casamento transforma muitas loucuras curtas numa longa estupidez".
Por ser a mais nova das filhas de meus avós, ao ver mais tarde o exemplo de algumas irmãs, viu que o casamento era uma espécie de propina para fazer com que uma empregada doméstica pensasse que era dona de casa.
Pode ter notado também o tanto de homens e mulheres que fazem do casamento apenas uma oportunidade de trair, às vezes na base do “chifre trocado não fura”, porque não aprendem a enfrentar o monstro voraz que, se nada for feito, a tudo engole: a rotina.
Li outro dia em algum lugar que a reprodução de animais de maneira assexuada, conhecida como partenogênese (“partos virgens”) é algo comum na natureza, sendo inclusive a forma de reprodução de algumas cobras e lagartos. Não é o caso de tia Creuza, que apenas optou por firmar um pacto com a solidão e não dá sinais de arrependimento.
Mesmo solteira e sem filhos, como não era chegada a cadernos, lápis e livros, não se submeteu a patrões privados ou públicos, tendo que se maquiar e se vestir como a maioria das mulheres. Livrou-se do ansiolítico da moda, de acordar preocupada com a reunião das nove ou se Wall Street reagiu mal à ata do último encontro do Federal Reserve, repercutindo no fechamento da Bolsa de Valores (seja lá o que isso signifique para a maioria dos seres vivos!).
Há três anos esteve aqui em Maceió, onde fez tratamento médico, reviu a irmã (minha mãe) e seus sobrinhos. Num domingo, comoveu-se quando lhe dei uma blusa de mangas compridas e um boné amarelo onde estava bordada uma logomarca azul muito conhecida dos brasileiros que vivem no campo.
A minha vida mudou, eu sei. Tia Creuza já completou 80 outubros. Aposentada, mora sozinha na cidade em que eu nasci – Itabaiana, na Paraíba – numa casa cedida por outro sobrinho muito querido, que não lhe deixa nada faltar.
Parece feliz quando pedala sua bicicleta para cima e para baixo, todo fim de tarde, olhando as coisas miúdas que encontra pelo caminho, como se carregasse na garupa a alma de um certo poeta pantaneiro a lhe sussurrar: sim, é verdade, "as borboletas podem pousar nas flores e nas pedras, sem magoar as próprias asas".
Meu amigo, esse conto, eu me enxerguei lá no Juá. Minha realidade foi assim! E a minha tiaso mugou o nome tia Letícia ( hoje falecida).
ResponderExcluirPelos sertões do nordeste, em cada família, tem casos similares. Optar por ficar só não impede de cuidar, muito bem, "dos filhos alheios".
ResponderExcluir👍
ResponderExcluirEsse texto me fez voltar aos idos de 60 na cidade de Água Branca, sertão alagoano, quando do convívio com parentes entre eles uma prima que diante de muitas crenças religiosas que induziam a pecados, viveu até os 80 anos sem casar cuidando apenas
ResponderExcluirde um irmão paralítico.
Borboletar não é para todos.
ResponderExcluirBravo texto.
Do jeito dela, sem seguir aos padrões, ela abriu seu próprio caminho. Imagino o tanto de trololó que ela escutou. Por não se alinhar com o que esperavam que ela fosse. E, naquele afago, que ni menino Hayton ela fez, cabia toda uma eternidade de amor.
ResponderExcluirBelíssimo texto!!!
ResponderExcluirTitia Creuza, quanto tempi6a gente não se vê, mas acredite, eu me lembro sempre muito de você. Belíssima homenagem a quem viveu e vive sem as montanhices de inutilidades que criamos como se necessário fosse. Pra ser feliz basta querer. Adorei.
ResponderExcluirExcelente texto. Mas confesso que ri de nervoso lendo isso: "metade da vida é estragada pelos pais; a outra metade, pelos filhos".
ResponderExcluirVocê escreve como se estivesse batendo um papo com os leitores e, nas entrelinhas, "ouvindo" (e respondendo) os comentários desses...rsrsrs
ResponderExcluirBelíssima homenagem à forma de vida da Tia Creuza!
ResponderExcluirSó não consigo crer que o autor pense, realmente, que as duas metades da vida são integral e inexoravelmente estragadas. Pelo que conheço dele e de seus feitos, a vida também tem muitas coisas boas!
Como um texto como esse!
Não tenha dúvida, meu amigo! Só um “doido” como Millor pensava assim, como pontuei no texto. De fato, duas metades “integral e inexoravelmente” estragadas é dose pra mamute. Quando muito, 2/3. 😂
ExcluirQue beleza! Parece terno, mas é mesmo!
ResponderExcluirTambém tenho minhas Creuzas. Talvez por isso tenha me afeiçoado à sua…
Sim, ela é feliz (pedala 🤣).
Pois é, essa "liturgia politicamente correta" permite imaginar que nem tudo são flores e borboletas... Mas, aos poucos, o mundo vai buscar os ajustes necessários e cabíveis.
ResponderExcluirPelo jeito, até Tia Creuza também se ajustou, de certa forma, a essas mudanças do mundo...
Em tudo, a natureza persegue o equilíbrio. Não adianta o ser humano teimar em forçar o contrário, em algum momento, o que de fato estiver errado, aos poucos se alinhará...
O texto descreve com uma beleza poética, uma vida sábia que poucos conseguem experimentar.
ResponderExcluirBelíssima homenagem. Tia Creuza, Cora Coralina, Dorival Caymmi... mestres do viver.
Mais uma vez, Hayton nos brinda com suas jóias, em forma de crônicas.
Bela homenagem e belíssimo texto meu amigo.🙏
ResponderExcluirQuando leio um texto desses, sinto falta de não ter convivido com meus parentes. Meus pais logo após se casarem vieram do RN para a BA onde permaneceram até o fim de suas vidas, o que não nos permitiu convivermos com os demais membros da família, que na sua grande maioria permaneceram nas suas origens Se tive alguma tia Creuza, não sei, mas gostei da sua determinação em manter seu jeito próprio de viver. Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirA Tia Creuza contraria a regra de que alguém só está sempre em má companhia.
ResponderExcluirAcho que foi esta crônica que li no livro já publicado e comentei com você, não? Adorei !
ResponderExcluirIsso mesmo! Ela abre o último livro que publiquei, “O benefício da dúvida e outros casos”. Era uma das inéditas que resolvi compartilhar neste espaço.
ExcluirBelíssima homenagem Hayton!
ResponderExcluirTia Creusa, deve ter muito orgulho de você...
Na nossa família, foi a tia Cristina.
Nunca se casou, viveu para cuidar dos sobrinhos, afilhados, tratando -os como filhos. Cuidou também dos pais, da irmã (Tia Tonha) e de quem mais precisasse, não fazia distinção.
Ela faleceu em 11.03.2020 aos 78 anos.
Forte abraço,
Maria de Jesus A.Rocha.
Há pais e mães que desistem dos filhos nem bem eles saem da proteção uterina. Se esse projeto de gente tem sorte e é escolhido por família alternativa, é quase como se ganhasse em uma mega sena de final de ano. Ser tutor ou tutora de uma criança requer mais do que prover educação e sustento. Penso que a falta de abraços, beijos, afeto (encapsulados em um amor que não expressa esses sentimentos), em fase determinante da vida, poderá criar um adulto empedernido, que sabe que falta alguma coisa, ressentido "daquilo que não viveu" (parafraseando um certo jogador que mais cai que levanta), amargo, porém "duro na queda". Felizmente, como em tudo na vida, há exceções: almas superiores às suas condições adversas pretéritas sublimam-se e brindam o mundo como asas multicoloridas das Monarcas que viajam o mundo.
ResponderExcluirMais uma lição de vida contada com extrema habilidade de quem tem o dom para"contar" historias
ResponderExcluirMais um texto top para a coleção de histórias reais publicadas por esse grande escritor, o qual nas horas vagas é meu primo. Parabenizo-o pelos textos do livro "O Benefício da Dúvida", com histórias inesquecíveis. Muito obrigado!
ResponderExcluirSão as nossas escolhas que nos tornam felizes. Fez as dela e vive tudo intensamente à sua maneira. Que tenha vida longa. Felicidade... ela sabe o que é.
ResponderExcluirExcelente texto.
ResponderExcluirNa minha família tem alguns caso desse.
Ontem mesmo faleceu uma prima minha com 86 anos. Solteira convicta viveu para cuidar e paparicar os sobrinhos.
Abraço
Zezito
Lindo texto! Com certeza muitos de nós tem uma história semelhante mas, com mais certeza ainda, não saberíamos contá-la de maneira tão brilhante. Espero ler a que você vai contar do novo encontro de vocês e, no qual, se darão um grande abraço e aquele cheiro no cocuruto tão guardado e aguardado.
ResponderExcluirBela homenagem! Voltei no tempo. Ao sitio Amolar, onde nasci. Quem é contemporâneo e nasceu no interior tem a parentada, praticamente, do mesmo jeito. Lembro do primeiro afago recebido da filha do meu padrinho, a tia Gedalva, como a chamava. Até agora, quando lembrei, fiquei com o rosto todo corado. Imagina na época! Que bom relembrar e entender que éramos amados sem sermos beijados. Quem sabe se não é culpa do beijo traidor dado no Cristo.
ResponderExcluirAmigo Hayton. Voce sabe que a vida no campo tem seus valores, benefícios e saberes. E que os citados intelectuais nunca souberam.
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