quarta-feira, 25 de maio de 2022

Vó é vó, tchê!

Ontem, bem cedinho, o sinal sonoro do celular de minha vizinha alertou-a da chegada de uma mensagem: “Oi… Ligou? É urgente?”. Estávamos no elevador, saindo para a caminhada no calçadão da orla.


Ilustração: Umor

Divorciada, 58 anos, Mafalda Lavado Tejón é natural de Mendoza, cidade da região vinícola argentina de Cuyo, famosa por suas bodegas, pelo Malbec e outros vinhos tintos de boa cepa, o que nos aproximou e me faz visitá-la com razoável assiduidade – acompanhado de minha mulher, óbvio!

 

Com um rabo de olho, pude perceber o que se passava. Ela quis disfarçar, mas acabou revelando que, tocada pela saudade dos netos, que não aparecem há mais de mês, anteontem tentou conversar com eles às sete da noite, por videochamada através do telefone de Joaquín, seu único filho. Ninguém atendeu.

 

Pouco importa se netos são monossilábicos em contatos cada vez mais esporádicos, imersos em seus afazeres digitais. Mafalda é a mais completa expressão do amor absoluto, generoso, pleno, que não impõe condições ou limites nem espera nada em troca, exceto, se sobrarem, dois dedos de atenção, uma vez na vida e outra na morte (certamente prefere em vida as duas vezes!). 

 

Sabe, claro, que filhos sempre culpam os pais não importa do quê, como se não estivessem predestinados a serem pais mais adiante. Tem sido assim desde que Caim quis terceirizar a culpa por destruir Abel acusando Eva de preferir o irmão dele, diante de um Adão omisso que, após ser expulso do Paraíso, não conseguia sustentar a prole trabalhando em home office.

 

"Quem não quer sofrer, nasce cega, surda e muda", vive repetindo Mafalda. Reconhece, entretanto, que tudo se torna menor ao lembrar de sua falecida tia Antônia, uma das Madres de la Plaza de Mayo (organização argentina de ativistas dos direitos humanos há mais de quatro décadas), que teve dois de seus rebentos, líderes trabalhistas, sequestrados e mortos pela ditadura militar durante o massacre contra os movimentos esquerdistas, entre 1976 e 1983.

 

Para Mafalda, nada mais é urgente. Pelo menos dentro da escala de valores de seu filho, que possui repertório próprio de conceitos para o que vem a ser importante, urgente ou inadiável, em relação à mulher que lhe despejou no mundo. 

 

Ela hesitou um pouco em responder a mensagem. Não queria dar a entender que estava ansiosa, carente ou que se tratava de exagero de mãe extremada, essa miríade de adjetivos com que os mais jovens costumam rotular quem apenas purga por aqui, sem pressa, o saldo remanescente de pecados.

 

Compreendi perfeitamente porque ela quis esconder o que se passava. Afinal, é cruel admitir a gradativa evolução de nossa irrelevância na vida de outras pessoas, sobretudo daquelas que ainda nos são caras. E, a rigor, sou nada mais que um conhecido cuja única afinidade com ela, além de vinhos, parrillas e queijos, é a condição de vizinho de porta. 

 

“Liguei sem querer!” – digitou em resposta. Logo ela, professora de artes cênicas até outro dia, que orientava seus alunos sobre as imperfeições dos relacionamentos humanos, a dizer que não se deve apertar, prender ou sufocar quem se ama, porque o que hoje é laço amanhã pode virar nó cego, essas coisas.

 

Pode ter recordado de alguns finais de semana quando o ranger da dobradiça da porta de sua casa anunciava que Joaquín estava de volta da inquietante noite com seus afetos e desafetos, e isso lhe fazia grata a todos os anjos e santos de plantão. Só assim seu coração relaxava e a cabeça fatigada se rendia ao travesseiro amigo.  

 

Imaginava que ter sido mãe por uma vez contaria pontos a seu favor, dado que teria uma só nora. Se fosse a filha que não veio, ótimo! Se não, fazer o quê? Tinha agora consigo, com a ironia e a verve das sábias, que “nora nada mais é do que uma sogra jovem, se tiver sorte de chegar lá”. 

 

Ao deixarmos o prédio, tomamos destinos opostos, cada qual com suas conjecturas. Cinquenta minutos depois nos reencontramos onde havíamos nos despedido. "Vou me desfazer de tudo que tenho e voltar para a Argentina. Cansei dessa vidinha sem graça que levo aqui", ela anunciou.


Pensei em lhe dizer que não adianta fazer as malas achando que o problema não fará parte da bagagem, mas resolvi não me meter: "Faça o que seu coração pedir, Mafalda...".


Não demorou muito, o sinal sonoro celular alertou-a da chegada de uma nova mensagem de Joaquín: “Ô mãe… A secretária ligou dizendo que não vem. Tá de cama, gripada. Como hoje é sábado e vamos visitar uns amigos, você fica com as crianças até às cinco?"

 

De novo, ela vacilou um pouco antes de responder. Mas sem demonstrar ansiedade, carência ou exagero de mãe extremada, foi breve e reta ao optar pelo que seu coração pedia: “Claro! Vó é vó, tchê!”.

 

E piscando um olho em minha direção, apelou: “Esquece o que te falei, vizinho…”.


33 comentários:

  1. Ademar Rafael Ferreira25 de maio de 2022 às 05:36

    Na vida o que separa o desencanto do encanto é uma fina camada feita com a fibra da atenção. Sigamos em direção ao prazer de curtimos cada dia.

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  2. Vó é vó mesmo... vivemos na pele o problema ou satisfação. O que importa é o abraço e o beijo que se ganha acompanhado de um "eu te amo vó"... vale tudo o resto.

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  3. Ulisses Silva Barbosa, PMP, Cobit25 de maio de 2022 às 06:00

    Show caro amigo Hayton! As conexões que fazemos são tão profundas que sequer imaginamos a sua intensidade, mas nada como um refresh para nos lembrarmos dos nossos desejos mais profundos de estarmos sempre mais conectados àqueles que amamos de verdade, mesmo quando isto não fica tão claro, a vida é uma caixinha de surpresas! Parabéns pela riqueza que estabelece em suas lindas palavras. Tudo de bom. Abraços, Ulisses.

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    1. Obrigado, meu caro Ulisses. Trata-se, a bem da verdade, de texto ficcional onde pretensiosamente rendo minha homenagem a Joaquín Salvador Lavado Tejón (1932 - 2020), mais conhecido como Quino, um pensador e cartunista argentino natural da cidade de Mendoza.

      Através da aparentemente inocente menina Mafalda, de 6 anos – a garotinho que a partir dos anos 60 sonhava “consertar” o mundo –, Quino refletia sobre política, economia e a sociedade em geral, sempre com um toque de humor.

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  4. Bem assim!! Avó pode não estar perto toda hora ( afinal como diz uma amiga minha: " Tudo demais é demasiado" mas, precisou é só chamar que ela vai "correndinho" toda " felizinha" pelo simples prazer de contemplar as peraltices e crescimento de pessoinhas tão queridas!!!

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  5. Excepcional texto. Só muda o crachá, mas a realidade poeticamente e cruelmente por ti relatada, de forma magistral, é muito comum. Amei este parágrafo que posto novamente: "Compreendi perfeitamente porque ela quis esconder o que se passava. Afinal, é cruel admitir a gradativa evolução de nossa irrelevância na vida de outras pessoas, sobretudo daquelas que ainda nos são caras." Este mundo tecnológico roubou a atenção, todo mundo meio que se autoreferência, de forma narcisística, e há pouco espaço pra cultivar bons relacionamentos. Pra se importar com o outro, pra se fazer presença, pra se interessar e apoiar aqueles que amamos. Todo munda anda dando um sumido, da vida das pessoas mais próximas, e acham que sempre terão tempo de depois reaparecerem. Sabem nada....

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    1. Concordo plenamente que se tivéssemos um dedinho de atenção até o viver teria mais alegria. Vó é vó e a todo momento está dando um jeitinho para ficar disponível, no entanto o inverso…

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  6. Os 58 anos foram um requinte de detalhe do easter egg. Mafalda era minha personagem preferida. Bom saber que ela mudou pra cá e virou sua vizinha. Hahahahahaha Dedé

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  7. Mais uma vez, a narração é tão rica que nos faz crer em sua realidade, embora tenha sido criada ficcionalmente, tendo como realidade inspiradora o genial "Quino" e sua criação inesquecível, Mafalda, adicionada aos sentimentos maternais que são, como eles, universais. Bravo!!!

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  8. To aprendendo a ficar atento com os escritos do Hayton. Ele não exporia a vizinha com nome completo numa crônica, né mesmo? Kkkkk
    Mas concordo com o Ricardim. O texto-homenagem ao Quino e à Mafalda ficou espetacular. Coisa de craque da escrita!
    Parabéns, meu amigo cada vez mais escritor em plenitude!

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  9. A vida como ela é. O importante é ter a consciência tranquila.

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  10. ROBERTO RODRIGUES LEITE BEZERRA25 de maio de 2022 às 08:18

    Ah as agruras mundanas que fazem parte da vida de uma mãe. Houvessem, como bem dito no texto, dois dedos de atenção sincera, e a existência seria uma maravilha. Apesar de o escrito constatar, afinal de contas, tudo tende a se arrumar. E a vida continua, com doses de ansiedade, angústia de quem ama, até tudo tomar seu devido lugar. Muito lúcido, Hayton.

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  11. Excelente crônica!!! Ri alto do infeliz do Adão e sua incompetência de sustentar a família trabalhando em home office!!! Genial!!! Abç. Renata

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  12. Ótima crônica Hayton. Muito importante não deixar o laço virar nó. Hoje você subiu o patamar!

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  13. Quantas Mafaldas existem por aí! Basta encontrarmos em algum lugar e as queixas são sempre as mesmas, mudam apenas de endereço, mas é só surgir uma oportunidade de encontrar com os filhos e netos, não importa o motivo, tudo muda.

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  14. A vida de "vó" Mafalda, de uma forma ou de outra, se repete aí nosso redor... Mãe já é símbolo de amor puro, sem medidas... "Vó", duas vezes "mãe", reflete esse amor de forma exponencial... E sofre, nessa mesma proporção, com a "falta de tempo" dos filhos e netos...
    Mas é isso... A vida das "vós" não é fácil...

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  15. Muito bom meu amigo Hayton!👏👏👏👏

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  16. Ótima leitura, principalmente para quem está esperando a visita do neto (ele chega em 15 minutos) depois de 15 dias distantes, em razão do corona que o atacou, provavelmente na Escolinha....

    O importante é que ele já está bem e quero aproveitar cada minutinhos da presença dele. Pelo menos até que os "afazeres digitais " dele roubem toda a sua atenção e interesse.

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  17. Perfeito - é exatamente assim.

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  18. Bela crônica Hayton! A vida como ela é. Qualquer semelhança não é mera coincidência: A maioria de nós, avós, abdicamos de nós em favor dos netos.

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  19. Morando atualmente em Copacabana, bairro também conhecido pela elevada faixa etária da maioria de seus moradores, me deparo com “Mafaldas” diariamente. Sozinhas; tristonhas e carentes de um dedo de prosa.
    Mas bastam receber uma ligação, mensagem ou WhatsApp de um filho ou de um neto, se transformam nas pessoas mais felizes do mundo.
    Elas não precisam de muito. Um mínimo de atenção já é suficiente.

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  20. Que miscelânea deliciosa! Só nos faltava uma Mafalda com sotaque alagoano… kkkkkk

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  21. Agostinho Torres da Rocha Filho.25 de maio de 2022 às 16:09

    "Vó é vó, macaco é um bicho!" Apenas para dar mais ênfase ao texto que expressa com rara leveza e suavidade o sublime amor de uma avó pelo seu netinho. Ótima crônica!

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  22. Show, Hayton! De repente seus textos ficcionais são os melhores, embora eu goste muito daqueles que descrevem minúcias de sua família nordestina. Abração. Diniz.

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  23. A vida como ela é. Bem percebido!

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  24. Amigo Hayton. Vó é vó e vô, também. Estamos nessa fase de curtir a netinha. O bom é compartilhar seu crescimento, usufruir da companhia aos domingos e entrar nas brincadeiras, sem cobranças. Abraço.

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  25. Essa aí é outra daquelas que fazem a gente se sentir quase íntimo da personagem, torcer e sofrer com e por ela. Sua mente realmente produz energia até maior que uma usina nuclear. Às vezes fico pensando o que você seria capaz de criar em um concurso de mentes criativas - será que seria considerado o maior e mais adorado mentiroso do mundo??? Que a inspiração nunca lhe falte, pra nosso deleite.

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  26. Vó é vó e também uma alegria para os netos! Manda na mãe e faz tudo que os netos querem…. E assim são os amores que a vida nos dá no meio familiar.

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  27. É vó na veia ... Sempre !!!

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  28. Parabéns pelo maravilhoso texto

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  29. Show de texto. Fale refletir sobre a vida....de filho, pai, vô....e a vida

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