quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Bolas de Natal

Andam de mãos dadas pela primeira vez a Copa do Mundo e o Natal. Só os deuses do futebol (e os anjos das cabines de VAR) sabem aonde isso vai dar, inclusive para alemães, belgas, dinamarqueses, espanhóis e uruguaios, que já ficaram pelo caminho. Algumas imagens têm lugar cativo na tela da memória de milhões de crianças que, ao redor do planeta, amam uma bola de futebol acima de todas as coisas.   

 

Há muito tempo, ao ganhar de presente de Natal minha primeira bola, senti pelo peso do embrulho – com disfarçada frustração – que não era daquelas de couro com câmara de ar em que se passava sebo nos pontos para protegê-la da água, da lama, dos arranhões no campinho de terra batida ou no calçamento da rua.

 

Ilustração: Dedé Dwight

Era de plástico (vinil). Doía quando batia nas costelas, na barriga ou nas 
coxas, sem falar de outras partes em franco desenvolvimento. Corri pelas calçadas da imaginação encarando adversários, tentando fintá-los, um a um, até a esquina.

 

Finta é aquele lance individual no futebol, vôlei, basquete, boxe ou capoeira, em que bastam duas ou três gingas de corpo para desvencilhar-se do oponente. É fazê-lo acreditar num movimento de ataque ou defesa que não irá acontecer, dificultando sua reação ao que de fato vem em sua direção. É também uma habilidade comum em certas figuras públicas, diante do TCU, do STF ou, pior, da imprensa.

Nunca fui bom nisso.
 Meu dom de iludir floresceu noutros campos. Meu irmão Dula (Hélder), sim, foi craque. Na área esportiva, que fique claro! Baixinho, canhoto, ligeiro, quatro anos mais novo que eu, era doutor na arte da finta, com imperdoável requinte: o escárnio sobre os adversários enfileirados que queriam esquartejá-lo após firulas e risos de deboche. Só não conseguiam por conta da proteção de anjos da guarda bons de briga de rua: seus três irmãos mais velhos. 
Não fosse tão míope, Dula teria voado, com suas fintas, no céu do planeta da bola.


Por falar em fintas — que imortalizaram Carlitos, Garrincha e Muhammad Ali em diferentes campos artísticos —, dava para ver que se tratava de uma dança lúdica, de que algumas crianças já nasciam sabendo seus passos de cor e salteado, assim como choravam, dormiam ou mamavam. 

 

Esse “vou-não-vou... fui!” era aperfeiçoado na mais tenra idade. De tardezinha, quando o sol esfriava, na porta de casa surgia sempre uma mãe cansada e impaciente com uma chinela na mão em forma de ultimato, obrigando a meninada a correr para o chuveiro no melhor da brincadeira.

 

Muitas vezes, o medo de se molhar levava a dona da chinela — nada mais que uma zagueira sem jogo de cintura — a desistir da perseguição, mas não de uma advertência capaz de diluir a cera dos ouvidos daqueles que se faziam de surdos: "Tire o grude das orelhas, cabra safado, senão eu lhe pego depois..."

 

Sobre motivar as primeiras fintas diante dos obstáculos da vida, a chinela virava instrumento pedagógico bem mais razoável do que, por exemplo, a palmatória ou o cinturão. De ruim, só o vexame quando a lapada na bunda acontecia ainda na rua, na esteira da gozação de uma vizinhança nada solidária.

 

Mesmo assim, com todo respeito a quem pensa diferente, a chinelada continha inegáveis atributos psicológicos: restabelecia limites esquecidos e estreitava laços de afeto entre mães e filhos. Tanto que, dos sons que guardamos na memória, um dos mais nítidos é o daquele corretivo nas nádegas. Quando na bunda dos outros, inclusive, o som parecia ainda mais interessante.

 

Era indispensável que fizesse aquele barulho clássico que quase todo mundo já ouviu, sob pena de não surtir o efeito esperado nem ficar retido na lembrança. O estalo inconfundível seria a tecla play da trilha sonora de um choro sentido que na maioria das vezes desaguava num abraço pleno de amor, lágrimas e remorso.

 

Há quem diga que são necessários pelo menos 400 anos para que um objeto de plástico se decomponha e desapareça para sempre do meio ambiente. Se isso é verdadeiro, invoco o meu sagrado direito de interrogar a mãe-natureza: aonde foi parar a minha primeira “amiga do peito”? 

 

Ninguém sabe que fim ela levou. Se houve crime — Furto? Roubo? Esquartejamento e ocultação das partes? —, está prescrito, perdoado. No trem que partiu da estação de minha infância só me deixaram trazer algumas imagens que vagam, de novo, nas sombras de minhas recordações neste Natal.

 


32 comentários:

  1. Um certo dia saímos para jogar bola com os amigos e aquela foi a última vez. Nossos momentos mágicos, glórias e vivências tão bem descritas por ti se desfazem assim, como lágrimas na chuva.
    Que lembrança preciosa sua crônica me desbloqueou. Dedé

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    1. A crônica de hoje se aproveita do clima de Copa do Mundo e recicla outra aqui publicada há três anos. (“A falta que elas me fazem”).
      Seminovo é assim mesmo: vive repetindo história. Mas a história nunca é a mesma. Nem ele.

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  2. Caro amigo Hayton, sua crônica me fez lembrar da minha infância e de de uma bola de vinil que ganhei também em um Natal. Era linda! Amarela e parecia uma laranja daquelas descascadas numa máquina que tinha nos parques e circos, mas doía quando batia ma pele. Obrigada por nos conduzir nessas viagens da memória. Grande abraço.

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  3. ADEMAR RAFAEL FERREIRA7 de dezembro de 2022 às 06:23

    Serve para muitos meninos da época. Minha primeira bola (Camarinho) foi comprada com o suor do rosto.

    Venha de carvão, frutas e água de porta em porta.

    Essa bola de preço inferior o bola Pelé, mais resistente, era dericionada pela força do vendo a potência do chute tinha pouco impacto quanto ao resultado.

    Belas lembranças.

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  4. Chinelada na bunda dos outros é refresco! 🤭😂

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  5. É natal. Época apropriada para as lembranças de toda a vida. Com destaque para aquelas de quando pequenos. Misturar futebol com natal só para quem é grande amante da pelota. E daí derivam tantas histórias que, a propósito, vêm ilustrar vidas pródigas em aventuras, fantasiosas ou não. O texto fustiga em cada um as mais belas passagens registradas na memória.

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  6. É, essa mistura de Natal e Copa tem feito coisas inimagináveis.
    Eu, que já quase duvidava do Papai Noel, passei a ter fé em pen drives.

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  7. Essa junção de Natal e Futebol tem o poder miraculoso de trazer em todos nós, as melhores lembranças da nossa tenra idade, sem esquecer de exaltar a magia das nossas primeiras bolas e das indesejáveis, mas corretivas chinela das. Parabéns pela bela narrativa.

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  8. Tudo passa na mesma velocidade com que saímos dos bancos de trás dos automóveis de nossas famílias para tomarmos os volantes de nossas vidas. Quando perdemos, isso já aconteceu.

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  9. Muito bom! A mais pura verdade é que sempre se estava pronto para rir, quando as chineladas atingiam nádegas (da bunda... rsrsrs) alheias.

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  10. Suas crônicas são verdadeiras viagens no tempo, acredito que todos que estejam nessa faixa etária, também embarcaram nesta mesma plataforma.

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  11. Quantas vezes fui ao açougue da minha rua para convencer o açougueiro a doar pedaços de sebo para proteger as costuras das bolas de capotão, como a gente chamava a dita cuja.

    Boas lembranças em clima natalino.

    Luiz Andreola

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  12. Fui testemunha de não sei quantas bolas de plástico vi estourarem, após a colisão com algum objeto pontiagudo, quanto jogava, na infância, com amigos no quintal da minha casa. E em seguida, fazíamos uma "vaquinha" para comprar outra, que também teria o mesmo fim. O texto fez-me dar um drible no tempo e recuperar muitas dessas lembranças. Foi um gol de placa.

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  13. Meus presentes de infância nunca foram muito caros. Os ligados ao futebol sempre foram os mais esperados: bolas que imitavam as “reais” chegavam de vez em quando. Mas o ápice foi a primeira chuteira infantil.
    Lembram que quando a gente era criança o Natal demorava tanto pra chegar?
    E que agora ele chega rápido demais?
    Tenho leve desconfiança que essa mudança na percepção da passagem do tempo tem a ver com nossa transformação de apenas recebedores de presentes a financiadores da festa!

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  14. Você tem a capacidade de nos fazer viajar das peladas de rua à Copa do Mundo. Se eu fosse jogadora de futebol iria preferir as primeiras. Na Copa, certamente, iria me distrair com as "riquezas" do Catar.

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  15. Essas histórias, todas verídicas pra nós 60+, são como aquela canção do Roberto, que diz que: "...hoje os meus domingos são doces recordações...daquelas tardes...sonhos e emoções. ...O que foi felicidade, me mata agora de saudades...velhos tempos, belos dias". Hoje, acredito que ser criança é o presente de natal que a gente recebe, mas que vem com a advertência, não do Inmetro, mas dos céus, mais ou menos assim: "Aproveite, antes que acabe ". E acaba. Adorei a crônica.

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  16. De futebol não entendo, mas da forma que escreves qualquer analfabeto no assunto passa a entender. Mas a finta no vôlei faz a diferença! Perpetua

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  17. ABEL DE OLIVEIRA MAGALHAES7 de dezembro de 2022 às 10:43

    Mais uma crônica publicada. Meus parabéns.

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  18. Acredito que seus assíduos leitores sentiram-se meninos mais uma vez... Difícil aquele que não tenha sido o felizardo de ter tido sua primeira bola. Tanto faz, se foi de plástico, de borracha ou de couro... Essas, as de couro, eram identificadas, de acordo com o tamanho, pela numeração de 1 a 5 (a menor, 1, e a maior - tamanho oficial - 5). Tive a felicidade de ganhar a de n° 3. Tamanho suficiente para nosso tamanho e da gurizada que corria atrás dela. Ia tudo muito bem, até o dia em que um chute mais forte fez ela furar num "pé de espinho". Levei-a ao "ateliê" do cara que entendia de couro e de costura. Consertou o furo, costurou-a, mas cismou em afirmar que o couro estava ressecado e precisava ser hidratado. Aí veio a frustração: o homem usou óleo de fritura de peixe... Acabou-se nossa alegria. Além do cheiro forte, ninguém conseguia segurar a bola de tão lisa que ficou... Ao sol, reluzia... A solução foi lavá-la com água e sabão, várias vezes, até ficar ressecada novamente... Nisso passaram-se longos meses até que o jogo recomeçasse e aguentasse os chutes e intempéries...

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  19. Nem sei se posso fazer alguma analogia entre futebol e sandálias pedagógicas.
    Minhas maiores experiências foram com as últimas.

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  20. Mais uma maravilha de texto, este com a particularidade de nos levar a inesquecíveis momentos deliciosos da infância e adolescência.
    Efusivos parabéns, bola pra frente...

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  21. A primeira “couraça” seguramente ninguém esquece.
    Aguilar

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  22. Agostinho Torres da Rocha Filho8 de dezembro de 2022 às 19:26

    Recordar é viver velhos tempos, belos dias.
    O texto nos remete ao mágico período da infância, onde ganhar de Papai Noel uma bola Pelé, dente de leite ou couraça sempre foi o sonho de qualquer criança com alguma habilidade nos pés descalços. No contexto, relembrar as fintas do nosso mano "Dula", tão irreverente quanto Vini Jr. é uma maldade para com os seus antigos marcadores, todos já idosos

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  23. Agostinho Torres da Rocha Filho8 de dezembro de 2022 às 19:33

    Quanto às chineladas, servem de alerta para lembramos de que os nossos melhores sonhos foram construídos à luz de muito suor e lágrimas. De minha parte, confesso que já estou plenamente satisfeito com o presente desta ano "Bolas de Natal". Que venha o hexa!

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  24. Pois é. Para mim ainda existiu um outro componente que alguns desconhecem: a vara de marmelo. Te juro que eu preferia a chinelada...

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  25. Chinelada indesejadas, hoje, doces recordações.

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  26. Queria ter lido esse texto antes do Brasil ter sido eliminado! Kkkk excelente, como sempre!

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  27. Hayton, sua crônica me fez viajar ao passado até a minha infância e da minha bola canarinho. Infelizmente fui um jogador frustrado, daqueles que ficava por último quando havia a escolha dos jogadores, na época era chamado de "grosso", mas sempre joguei e era e sou até hoje fã de futebol . Obrigado por me conduzir nessas viagens da memória. Grande abraço.

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  28. Sou um fã e apreciador incondicional deste néctar dos Deus: “Tomar café eu vou, café não costuma faiá…”Gilberto Gil falou e quem sou para discordar, não é mesmo? A adaptação foi feita pelo mestre nas redes sociais e se tornou um verdadeiro hino para quem gosta dos sabores e sensações do nosso amado cafezinho. No Brasil, o café é uma (quase) unanimidade, visto que é a bebida oficial de aproximadamente 98% dos lares do país. Ele é uma sensação gostosa de abraço e o acolhimento iniciado no primeiro contato com o paladar

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