quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Com o caju na mão

Deu o que falar uma peça publicitária estrelada por uma famosa atriz, mas já saiu de circulação (a peça, bem-entendido!). Mostrava a beldade colhendo um caju. Dois pequenos descuidos chamaram a atenção dos internautas. Além de o fruto estar pendurado no galho de cabeça pra baixo, a árvore não era um cajueiro, que chega a alcançar 10 metros de altura, possui copa larga, tronco tortuoso e galhos pendentes.

 

Reprodução/Tweeter

Tem quem veja o dito-cujo como o fruto do cajueiro quando, na realidade, é a castanha. Nada de mais. Nem sempre aquilo que dá maior prazer é a fruta em si, sobretudo numa fase da vida em que uma caipirinha bem socada, rodela por rodela, desperta as papilas gustativas na língua, no céu da boca, na garganta e até na memória. Tem sido assim desde a mordida de Adão no fruto proibido.

 

A campanha publicitária era de uma marca de cosméticos muito conhecida por usar em seus produtos ingredientes típicos do Brasil, como a bromélia, o capim-limão, a carambola, o mandacaru etc. Os cochilos viraram motivo de intensa zoada na web, rendendo vários memes associados à imagem da pobre moça com o caju na mão. E a peça sumiu rapidinho dos perfis oficiais da anunciante.

 

Logo que o vídeo começou a circular, um internauta criticou os deslizes no processo de aprovação da campanha. "Como deixam isso passar? Geralmente tem uns 20 profissionais envolvidos (do briefing, passando por orçamento, estudo de tendências, escuta de consumidores, desenvolvimento de mensagem, até a escolha de veículos de mídia)", questionou.

 

Outro quis explicar o fato invocando uma questão tão antiga quanto tola: os movimentos separatistas que pregam a independência de regiões brasileiras por motivos culturais, econômicos e políticos, realçando que a maior produção de caju está concentrada no Nordeste. "O vídeo foi feito por um ‘sudestino’ que nunca viu um cajueiro na vida, e o pior é que passou por uma equipe que viu e aprovou, não se deu nem ao trabalho de pesquisar", pontuou.

 

Outra internauta chegou a ser desaforada. Abriu uma “caixa de ferramentas consoantes” que demorei alguns segundos para entender. Parecia uma expressão latina como “vade retro Satana”, ou “afasta-te, Satanás!”. Escreveu assim a garota: “VTNC, bando de analfas!”.

 

Pela “caligrafia”, pensei até na improvável reencarnação de Dercy Goncalves. Vai ver se trata de uma neófita na área acostumada ao linguajar fluente nas redes antissociais, uma boca suja desgraçada a sugerir aos outros destino indesejável para si mesma. “Jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da imaturidade”, dizia Nelson Rodrigues. 

 

Não vou negar, um dia eu também já fui desaforado, ali na largada da década de 1980, quando um de meus rebentos me trouxe da escola, todo sorridente, um envelope contendo uma cobrança de mensalidades em atraso, assinada, em tom ameaçador, pela diretora e pela tesoureira

 

Logo eu, que atrasaria qualquer conta – prestação do imóvel, do carro, da linha telefônica etc. –, menos uma que provocasse constrangimentos a quem mal começava a engatinhar sobre os mistérios da vida entre animais sociais.

 

Pior que não havia atraso. A transferência de recursos entre bancos, via DOC (Documento de Ordem de Crédito), fora criada naquela época. Gostei tanto da novidade que, logo que o salário pingava em minha conta, transferia para a escola o valor da mensalidade. Com o tempo apertado, dividido entre a faculdade e o trabalho, deixara de ir à tesouraria do colégio.

 

Eu poderia ter sido mais flexível, tolerante, como todo sujeito que vive nos braços da paz, com salários e impostos em dia. Mas na manhã seguinte achei de revidar a “ofensa” no verso da própria cobrança escrevendo, em negrito/itálico, algo nessa linha

 

“(...) Não devo nada!  Seguem os comprovantes de que transferi para a escola, antes de cada vencimento, os valores das mensalidades que ora me cobram. Dinheiro não cai do céu. Se aparece na conta, procurem identificar a origem no banco para evitar cobrança indevida. E nunca mais me cobrem dessa forma, utilizando portadores inocentes! Senão serei obrigado a mandar vocês enfiarem a cobrança no lugar onde macaco esconde castanha de caju (...)”

 

Assim como imagino que macaco não gosta de abacate (o caroço deve assustar!), eu sabia que “caju” embute um dos monossílabos mais usados pelos brigões no esculacho do futebol. Poderia, portanto, ter sido indiciado por agressão verbal, injúria, misoginia, ou levar uns sopapos (tiros, sei lá!) de um marido bravo, em legítima defesa da honra de sua esposa. E não estaria aqui contando o caso. 

 

Tive sorte. O Código de Defesa do Consumidor (tal como a troca de e-mails entre internautas) surgiria apenas 10 anos mais tarde. Desde então, até um macaco pendurado de cabeça pra baixo no galho de um cajueiro sabe que não se deve criticar o trabalho de ninguém (nem mesmo contestar uma cobrança) citando o lugar onde supostamente esconde castanha. 


Alguns primatas evoluem. Inclusive os espíritos de porco.

33 comentários:

  1. Ademar Rafael Ferreira8 de novembro de 2023 às 05:07

    Numa época de inversão de valores inverter a posição da fruta do cajueiro, em peça publicitária, é ato falho perdoável. O bom é que o cronista amplia o ato falho com maestria.

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  2. Eu tenho pra mim que fizeram de propósito. Vivemos num estranho mundo em que impera.o “falem mal, mas falem de mim”. A repercussão gerou um Buzz inestimável para a marca, a um preço bem mais barato que um break no jornal nacional. Dedé Dwight

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    1. Ainda assim, Dedé, a intolerância com o trabalho alheio está passando dos limites. A engenharia de obras feitas nunca revelou tantos especialistas.

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  3. Alguém teria levantado a hipótese de que o descuido com a posição do caju seria intencional pra gerar repercussão e ampliar o efeito da propaganda. Não acredito nisso, mas se tiveram essa intenção, comigo falhou. Já vi o assunto em vários lugares e até agora não me interessei por saber qual o produto anunciado pela propaganda do caju.

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  4. Tomara que mais frutas sejam invertidas para termos a oportunidade de ler textos caprichosamente bem escritos.

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    1. “Jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da imaturidade”, dizia Nelson Rodrigues. 😂

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  6. Eita! Mas o que tem o caju a ver com as calças? Num país onde o presidente, cheio de cana, mostra uma jaca e ensina aos jovens do Enem que não é uva, vai esperar o quê? Só enfiando o pé…

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  7. Se eu não acreditasse na sua Ética ia pensar que está a soldo da marca para reacender o pavio da curiosidade sobre ela e, assim, alcançar maior público e vendas.
    Mas sei que para cada crônica tem que haver um “álibi” é esse rendeu uma
    excelente crônica ! Quanto a cobrança indevida, já recebi algumas e fico na dúvida: comprovo o pagamento ou deixo ver se me processam e faço um “aporte de caixa”?

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    1. Ainda bem que o Sr. Anônimo acredita em mim! Se bem que gosto da frase de Groucho Marx: "Eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio."

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  8. Sempre admirei um Caju ... desde o que nasce dentro de garrafas artesanais nas feiras nordestinas, conservados com uma boa cachaça, e as castanhas de nossa infância, torradas em latas furadas com fogo de gravetos.

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  9. Sua crônica é bem oportuna, pois retrata bem nossa impaciência nesses tempos digitais. Um erro não justifica uma crítica raivosa ou deselegante, mesmo que cabível.

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  10. Creio que a "internauta desaforada", pelo contexto, usou as iniciais VTNC, querendo dizer VAI TIRAR NÓDOA DE CAJU! porque difícil de sair! 😂😂

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  11. Caju invertido é demais. Merece um grandioso xingamento mesmo. Igual a quem cabia ser retrucado pela cobrança indevida da mensalidade escolar. Fato constrangedor para os pequenos. Ficou de bom tamanho o abacate. Este sem inversão qualquer.
    Roberto Rodrigues

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  12. Quem tem caju deveria ter medo!
    Extrair de uma fruta invertida e de uma cobrança indevida o substrato pra uma crônica deliciosa, só mesmo quem faz de um limão uma caipirinha, e não uma limo-nada!

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  13. A crônica de hoje me lembrou o famoso caso da modelo da playboy que apareceu nas fotos sem umbigo, efeito colateral de tanto photoshop. E essas gafes são mais comuns do que imaginamos: https://www.iif.com.br/photomag/manipulacao-de-imagens-desastres-no-photoshop/

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  14. A campanha publicitária alcançou plenamente os objetivos: chamou a atenção, saiu da vala comum para ser o centro de debates. Foi intencional, claramente, destinada a evidenciar a inversão de costumes e valores que assola um mundo perdido nas múltiplas ideologias .

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  15. Bom dia Amigo Parahyba!
    Excelente. Subscrevo, inclusive o desaforo dirigido ao cobrador “inadimplente”, por ter deixado de conferir o crédito da mensalidade 🧐🤝
    Sebastião Cunha

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  16. Eita vida complicada.
    E quando a comunicação não ajuda, a coisa piora.
    Aqui cito Drumond de Andrade: “Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã.”

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  17. Agostinho Torres da Rocha Filho8 de novembro de 2023 às 10:46

    Geralmente, as crônicas apresentam uma linguagem simples e espontânea, situada entre a oral e a escrita. Isso contribui para que o leitor se identifique com o autor, que acaba se tornando porta voz daquele que lê. A crônica "COM O CAJU NA MÃO" merece destaque por tratar-se de texto curto e de fácil compreensão, escrito em linguagem despojada e simples acerca de um fato cotidiano da grande mídia, temperado com generosa pitada de humor crítico, irônico e sarcástico. Que bela crônica! Parabéns!

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  18. O texto “Com o caju na mão“ lembrou, inclusive, a publicidade que existe em toda mídia advertindo para três alertas no no feminino. Entendo como um desserviço uma falha dessa natureza, sem se falar no mar erros e afins encastelados no universo de nossas televisões. Quanto ao texto do caju, ficou engraçado e enriqueceu os nossos conhecimentos, como sempre.
    Obrigado por mais uma laboriosa contribuição semanal.
    Grande abraço.

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  19. Caju invertido e cobrança indevida, são, sem dúvida, situações que causam indignação. Outros "causos" já foram alvo de críticas, como a exibição de uma roça de milho, referindo-se a soja. Cobranças de débitos indevidos são mais comuns, mas não produzem alvoroço nos canais midiáticos, por ficarem restritas à vítima e o autor.
    Mas, o que merece nossa observação, é a facilidade com que nosso querido cronista transforma o caju invertido e a cobrança indevida, numa saborosa caipirinha...

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  20. De novo, pra me identificar:
    Sua crônica é bem oportuna, pois retrata bem nossa impaciência nesses tempos digitais. Um erro não justifica uma crítica raivosa ou deselegante, mesmo que cabível. - Bosco Torres

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  21. Sei não!
    Nunca confiei em cajus. Aquele poderia estar invertido apenas para sacanear o trabalho alheio.
    Isso de não ser um cajueiro tampouco me convence!

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    1. O que sei mesmo é que macaco é macaco. Não é burro. Jamais esconderia um caroço de abacate, manga (nem espada nem rosa!) etc.

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  22. Hayton, em dias de tantas contradições, através do belo texto, você retrata muito bem o que estamos vivendo, tudo ao contrario. Não nos admiraríamos se qualquer hora dessas alguém disser que o "poste mijou no cachorro!" kkkkk um abraço e parabéns pelas excelentes crônicas que nos provê todas as quartas feiras.

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  23. Muito bom. Divertido e docemente crítico

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  24. Magnífica! Desde o título até o final. Infelizmente , hoje em dia , os leitores de Internet já entram na rede procurando encrenca.

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  25. Tem de tudo, até o inusitado - ou principalmente ele - no mundo da publicidade tupiniquim.
    Sorte é que há olhares mais que críticos pra os detectarem.
    Sem contar que há também mentes inquietas e brilhantes pra buscar qualquer migalha da sobra e transformarem-na em crônica que vem a deliciar seus leitores.
    Haja criatividade!!!!!!!

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  26. Sempre ligado nas possibilidades, o bom cronista não falha. Li que os criativos argumentarem intencionalidades várias e fundamentadas para o caju coroado. Tão boas e justas que não me lembro de nenhuma. Tenho pra mim que o imbróglio teve origem na colheita da fruta - precisavam de algo mais substancial para a moça pegar sem olhar direito e não o camarãozinho seco da castanha...

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  27. Meu amigo, não era a maçã o fruto proibido. Se você pegar uma e tirar o cabinho dela, é olhar com cuidado, verá que o fruto proibido era anticoncepcional. Mas é brincadeira. Executivos de hoje criados em apartamento na cidade grande, não sabem diferenciar um gato de uma berinjela. Pior é acharem que todos somos iguais.... tinha mais é que tomar caju mesmo.

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  28. Para não descer ao nível da jovem frequentadora das redes "antissociais" - vou terminar me acostumando ao termo, com o qual concordo - prefiro pensar que o erro acerca do cajueiro ter sido substituído por outra árvore, certamente foi por não encontrarem um pé de caju à altura do comercial (kkkkk). Mas que a fruta que estava dependurada de cabeça para baixo na árvore "adotiva" era linda e merecedora da mais perfeita caipirinha, lá isso era. Texto descontraído e bem gostoso de ler.
    Abraços!!!
    Mário Nelson.

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