E o livre-arbítrio, como fica?
Dia desses eu conversava com um amigo baiano, escriba dos bons, que anda meio azedo por conta da dificuldade de encontrar quem goste de ler e escrever. Tem até opinião formada sobre a causa do problema: o ChatGPT! E desabafou, carregando nas tintas: “você sugere um tema qualquer e o computador cospe um texto mastigadinho, feito banana amassada com farelo de aveia. Tá virando drama inclusive para os mercadores de monografias, que estão perdendo a reserva de mercado".
Tentei discordar, mas sem muita firmeza, apenas buscando esticar um papo que me dava retorno reflexivo: "Olhe só, o ChatGPT, assim como a maioria das inovações tecnológicas, veio apenas para facilitar a vida no vale de lágrimas. O problema é a preguiça generalizada, que tem sido a mãe de quase todas as invenções. Até pensar agora é serviço terceirizado. O xis da questão é como usar a ferramenta, para o bem ou para o mal. E essa história de 'livre-arbítrio' é igual a democracia perfeita: é bonita no papel, mas na prática... Sei não, viu?".
Ilustração: Umor |
Como eu não estava muito seguro daquilo que defendia para convencê-lo, reforcei o argumento citando um gênio que segue vivíssimo na memória do povo brasileiro, João Ubaldo Ribeiro. Dizia ele, em resumo, que sem livre-arbítrio, o homem não é nada, não tem dignidade nem responsabilidade. Se queremos um mundo melhor, temos que correr atrás, porque o mundo é nosso. Não dá pra esperar que Deus resolva tudo.
Consegui convencer meu amigo daquilo de que não tinha tanta certeza, mas fiquei matutando. Então resolvi mergulhar um pouco mais no assunto. Descobri que um tal de Robert Sapolsky, cérebro de primeira grandeza vinculado à Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, andou estudando babuínos selvagens no Quênia e demonstrou como o estresse social afeta a saúde dos animais. Tempos depois, virou neurocientista e concluiu que livre-arbítrio não passa de lenda. "Somos frutos daquilo que não controlamos: nossa biologia, o ambiente, a interação entre eles", ele escreveu.
Faz sentido? – me perguntei – Será que a gente decide alguma coisa mesmo? E se pegar isso de que “somos frutos daquilo que não controlamos”, o que vai ser de nós numa sociedade onde chafurdam elites (com o perdão da palavra!) empresariais, políticas e judiciárias, agindo em benefício próprio com suas artimanhas em produzir verdades a granel?
E quem não quer um pouquinho mais de liberdade nessa vida? Mas será que temos mesmo liberdade de escolha? Falo desde decidir entre café com ou sem açúcar, salsa ou coentro, até os grandes dilemas éticos, morais e políticos.
Essa discussão do livre-arbítrio saiu das mãos dos filósofos e teólogos e caiu no colo dos neurocientistas. E eles agora questionam se realmente a gente escolhe alguma coisa. Dizem que nosso cérebro decide antes de a gente notar. Igual o coração, que tem vida própria, bate quando quer, até que certo dia...
Mas o que é escolher conscientemente? Filósofos e neurocientistas estão numa disputa danada. Os filósofos acham que os neurocientistas só arranham a superfície da questão. Os neurocientistas respondem apelando para o antigo bordão de compadre Washington, do antigo grupo musical É o Tchan!: “Sabem de nada, inocentes!”
No futuro, tudo indica que será possível prever decisões antes mesmo de a pessoa saber. Vem aí uma revolução filosófica!
Decisões complexas, no entanto, como juntar as escovas de dentes com a pessoa amada, escolher uma carreira, cometer um crime ou romper um relacionamento, continuarão um emaranhado de escolhas e reflexões.
Talvez essa confusão toda seja apenas um nó na nossa compreensão da consciência humana. Afinal, se somos aquilo que não controlamos (a herança genética, o ambiente e a interação incluídos), então o livre-arbítrio “irresponsável” pode nos estimular a cometer sem culpa alguns pecados capitais. A gula e a luxúria, por exemplo.
Quem sabe, quando este mundo for repaginado, a gente pare de tentar convencer os outros daquilo em que nem acredita. Tem tanta coisa que fazemos sem pensar que é pecado, mas ser intelectualmente desonesto está virando prática abusiva, assédio moral, pois pode expor alguém a situação constrangedora.
Já desejar a cara-metade alheia, como diz o meu amigo baiano, é injustamente classificado desde que o mundo é mundo. Segundo ele, precisaria ser excluído da lista. “Que seja pecado avançar sem o consentimento, mas só cobiçar de longe, sem tocar num fio de cabelo da criatura, meu Deus, não deve ser pecado. E o livre-arbítrio, como fica?”
Fato é que, mesmo aqueles que não acreditam em livre-arbítrio e acham que está tudo predeterminado, que não se pode fazer nada para mudar o que foi escrito nas estrelas, ainda olham pros dois lados antes de atravessar a rua.
Sobre livre-arbítrio desconfio que o nosso deve ser maior que dos demais, democracia perfeita e como garantia de panela de barro: vale até a primeira rachadura. O ChatGPT é animal indomável. A maior prova de livre-arbítrio é sair em todos blocos do Carnaval de Salvador.
ResponderExcluirO negócio é que todos querem o livre arbítrio, que presume liberdade, mas não querem os penduricalhos que estão atrelados a ele: ética e responsabilidade.
ResponderExcluirNelza Martins
Valeu Haytin. Excelente texto para refletirmos sobre o tema.
ResponderExcluirFilósofos e cientistas estudam o assunto "livre arbítrio" com afinco e com distintas opiniões.
Você nos traz, com muita propriedade, o tema para nosso deleite.
Determinismo, escolhas, impulso, questões, morais, religiosas, ética,...; enfim são muitas variantes em processamento em nossa maravilhosa máquina de pensar, gerando uma complexidade para os estudiosos da neurociência.
Enquanto isto, neste mundo cheio de desafios, eu vou embalado por Gonzaguinha.
🎼"Eu fico com a pureza
Da resposta das crianças
É a vida, é bonita
E é bonita
Viver e não ter a vergonha
De ser feliz
Cantar, e cantar, e cantar
A beleza de ser um eterno aprendiz ..."
Abraço
Oceano Salvador
Mais um tema complexo para minha compreensão, caro Hayton.
ResponderExcluirMistura filosofia, política, ética, religião, sei lá mais o quê.
De qualquer forma, abre a cabeça da gente para refletir sobre esse assunto.
Que Deus nos ilumine para usar bem o presente que Ele nos deu, o livre arbítrio.
Abração.
Um bom tema para refletir.
ResponderExcluirPrimeiro, estamos perdidos num mundo sem fé.
Livre-arbítrio?
Que livre arbítrio é esse se somos presos a uma sociedade julgadora?
No entanto, com ou sem livre arbítrio, sigo com minha observação.
Tenho vida e objetivo de estar viva, por tanto, vivo!
De resto, é olhar todos os lados para me precaver.
Eita tema complexo... Nessa briga e tentativa de elucidar o que é ou deixa de ser, no campo filosófico, não é para qualquer mortal... Ainda bem que foi criada a figura do neurocientista, para desconforto dos filósofos e assemelhados. Não me surpreenderia se, a qualquer época dessas, surgisse uma nova vertente no mundo da ciência que colocará uma "pá de cal" nessa salada de filosofia, livre arbítrio e neurociência...
ResponderExcluirGostei de como o autor utilizou seu livre arbítrio pra escolher o tema da crônica de hoje, pra depois ser guiado por “tudo que fizeram dele a priori” pra escrever o que escreveu.
ResponderExcluirTentei utilizar meu livre arbítrio pra escolher algo melhor pra escrever nesse comentário, mas o máximo que consegui foi decidir entre escrever e não escrever.
Mas até sobre isso estou desconfiado se foi livre arbítrio mesmo!!!
Prezado Hayton
ResponderExcluirEsta crônica é um ótimo exemplo de que é possível tratar - com densidade - de temas complexos, e até mesmo complicado, em um texto agradável, com linguagem elegante, abordagem leve e enredo atraente.
Sobre o tema trazido por vc, um tal de Baruch, mais conhecido por Spinoza, no longínquo século XVII, já dizia que nossas ações e decisões serão sempre aquelas que deveriam ser, ou seja, não existe livre-arbítrio.
Acredito que o brilhante pensador holandês, mais citado do que lido, por conta da frase antológica de Einstein que dizia acreditar no “Deus de Spinoza”, lá nas instâncias espirituais onde se encontra certamente está curtindo seu texto e pensando: “Caramba, eu poderia ter escrito algo parecido!”
Já diziam os Árabes, "confie em Alá, mas amarre seu cavalo". Dedé Dwight
ResponderExcluirLivre-arbítrio é, como aqui tão bem explicitado, um tema complexo e sem conclusão concreta. A crônica fez-me lembrar daquela história do indeciso que procura um oráculo, para saber se casava ou ficava solteiro; e a resposta imediata do oráculo foi: "Qualquer que seja sua decisão, você vai se arrepender". Assim é a vida, por mais banal que seja o que temos para decidir, sempre ficará pontos de interrogação sobre como poderia ser diferente se tivéssemos feito de outro jeito.
ResponderExcluirEstamos numa situação em que livre arbítrio é fazer escondido o que os outros não querem que você faça ou que os poderosos permitem. Mas vamos continuar olhando pros dois lados, afinal o cuidado não é só pra atravessar a rua: a vida tem que ser atravessada também.
ResponderExcluirMuito importante pensar o assunto trazido à luz. Não é mera filosofia. Mas imaginar como, de fato, foi produzida a humanidade. Quais seus atributos e direitos. Bom momento de reflexão.
ResponderExcluirHoje, quarta-feira, mais um texto publicado. É um tema bastante complexo.
ResponderExcluirEstou lendo a obra de Augusto Cury, 5 volumes, intitulada Análise da Inteligência de Cristo. E que coincidência ao falar em “livre arbítrio”! Trata-se de um tema muito complexo e de difícil compreensão. De minha parte fico cheio de interrogações. E me sinto cada vez menor. Se me dedicar mais e me aprofundar, corro o risco de entrar em parafusos. Então é melhor deixar pra lá. O problema é com os cientistas e religiosos. Que eles entrem no mérito da coisa e nos deem um solução. Quanto ao Hayton, os parabéns pelo belo texto e o desejo de que continue firme e forte. Até a próxima semana.
Em tempos de brigas ferrenhas sobre liberdade de expressão, o livre-arbítrio é mais um elemento complicador…
ResponderExcluirExcelente texto para reflexão. Acredito em livre-arbítrio, pois pra mim ele é uma questão de escolha. Tudo sempre terá dois caminhos e, ao decidir, fazemos uma escolha, arcando com as consequências e as benesses dela advindas. Concluo minha contribuição com as palavras de Cora Coralina: "
ResponderExcluirMesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir."
Prezado Hayton,
ResponderExcluirEsse tema sempre me instiga a refletir. No entendimento dos espíritas , Livro dos espíritos, questão 907. "A pessoa pode perfeitamente, fazer uso do seu livre-arbítrio sem intervenções de outrem, mas o fará com segurança se tiver conhecimento e consciência dos limites de sua liberdade".
Assunto bastante complexo que você explorou de maneira inteligente e de agradável leitura.
Marcos André Cerqueira
Marcos, que alegria encontrá-lo aqui! Abraço grande, meu amigo. E outro para Mônica.
ExcluirHayton, sua crônica de hoje foi um “volta às aulas com prova-surpresa. Eita que me botou o cérebro pra pensar. Acredito que, como alguém já registrou aqui, há quase sempre espaço para tomarmos nossas decisões com base em nosso livre arbítrio. Outras vezes, por inúmeros motivos, essa liberdade nos é tolhida e somos forçados a trilhar um caminho que não seria o nosso. Os pragmáticos dirão: Ora, mas ainda assim, tomou a decisão. Mas a vida não é somente o sim ou não. E, nessa complexidade, vamos aprendendo a decidir cada vez melhor - para os que levarem a sério a matrícula.
ResponderExcluirMais uma maravilhosa crônica, que nos leva a parar e refletir, uma vez que mistura, ética, filosofia e outras ciências. Mas continuo acredito piamente no livre-arbítrio, em consonância com a doutrina espírita, como está escrito no Livro dos Espíritos. Além disso, colhemos o que plantamos, sabendo que a escolha é livre mas a colheita é obrigatória.
ResponderExcluirHayton, vc conseguiu a proeza de abordar um tema complexo de uma forma leve e, dentro do possível, bem humorada. Boa!
ResponderExcluirDe fato, esse tema é merecedor de análises mais acuradas e não pode ficar na simplicidade da dicotomia existe / não existe o livre arbítrio. Em algumas situações parece ser razoável admitir o livre arbítrio, mas em outras o bom senso sugere que não. E essa questão envolve a análise de diferentes graus de estágio de cada pessoa, como a condição financeira, o conhecimento, o saber, a ocasião e a cultura de cada região. .
ResponderExcluirAcredito que tudo está escrito, inclusive nossas escolhas, fruto do livre-arbítrio, e seus resultados, porém, apenas Ele sabe. Marina.
ResponderExcluirÀs vezes podemos escolher, sim, e temos a sensação de estarmos exercendo nosso Livre Arbítrio. Mas, na grande maioria das vezes, somos dependentes. Outros fatores alheios à nossa vontade (situação financeira, doenças, pandemia, acidentes, interesses familiares, pressões profissionais etc - e bota etc nisso) nos obrigam muitas vezes a mudanças não desejadas. Não temos controle, não sei se feliz ou infelizmente.
ResponderExcluirSei não, Hayton! O assunto é muito complexo, pois envereda pelos obscuros caminhos da alma humana. Se a decisão de uma ação depende do livre-arbítrio de cada um, então como explicar as condutas anormalmente violentas de pessoas dóceis, normais e inteligentes. Do homem lobo do homem?
ResponderExcluirNuma sociedade repressiva, será que podemos exercer plenamente nossa liberdade, ou, pelo menos, o livre arbítrio?
Deixemos que os filósofos, teólogos e neurocientistas discutam o assunto.
Por mil anos que sejam, não chegarão a uma conclusão, acho, pois se Deus fez o homem à sua semelhança, a questão é de um mistério insondável.
Meu arbítrio, nem tão livre assim, recomenda, para não se arrepender depois, não opines sobre assunto complexo e que não entendes patavinas.
ResponderExcluir.
Se pensar dói, como faz crer alguns, usarei o benefício do livre arbítrio em meu favor para nem pensar no assunto.
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"Livre pensar é só pensar".
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Contrariando tudo o que dito acima, parabéns pela crônica.
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Nesses tempos de perseguições políticas, vinganças, usurpação de poderes vinda do Judiciário, o tal livre arbítrio significa que nem sempre o homem é livre quando põe em uso o livre arbítrio.
ResponderExcluirNão quero polemizar, mas desconfio que livre-arbitrio não combina com onipotência, onipresença e onisciência.
ResponderExcluirEm pleno Carnaval, nesta Salvador, da Bahia de Todos os Santos - e quase todos os pecados - , eu acesso aqui e me deparo com quase um tratado de filosofia profunda, nem você pode prever aonde vai chegar.
ResponderExcluirFaço um parêntesis aqui pra destacar também o comentário de Sérgio Riede que, mais que filosofou, usou até trocadilho, me deixou boquiaberto.
Não posso deixar de destacar também a singular sensibilidade e inteligência de seu amigo baiano, citado no penúltimo parágrafo da crônica, passo a ser um seu admirador.
Sim, o assédio é desrespeitoso e até criminoso, mas a admiração e o sonho - porque nâo??? - são inerentes à condição humana.
Como o momento é oportuno, relembremos os ensinamentos eclesiásticos - "aquele que nunca pecou, que atire a primeira pedra"( nem sei se a frase está correta, mas mesmo assim, vale)...
Intrigante e desafiadora, essa crônica. Pensar nesses polos - controlar e não ter como controlar - é um exercício mental intenso. Faz suar. Livre arbítrio. Existe? depende do lado do prisma por onde estamos enxergando? Talvez nunca saibamos. Liberdade. No meu sentir, a máxima da criatura humana. Valor supremo. Lembrei do Renato Russo: "Disciplina é Liberdade. Ter bondade é ter coragem". Tenho certeza de que teria toda uma existência para tentar argumentar com esse Baiano pensador. E talvez não conseguisse. Acho que é o In e o Yang. Lembrei de uma frase que enviei hoje cedo: "O futuro é uma astronave que tentamos pilotar" (Toquinho e Vinícius). Por fim, sabendo que essa discussão é deliciosa e que certamente não tem fim, me despeço dessa valiosa tribuna lembrando Luiz Gonzaga. "Nossa conversa linda tem segredo ainda para um século mais". Tomara.
ResponderExcluirAbração!!!
Mário Nelson.
Crônica de uma qualidade, como sempre trazendo e nos fazendo refletir sobre o assunto. Que impacta muito fortemente nosso dia a dia, exigindo de Nós Bom senso e cada vez, mais, responsabilidade pessoal. Que sejamos capazes de enxergar nossos limites e nossa contribuição positiva.
ResponderExcluirBom dia amigo Hayton, bom dia a todos!!! Realmente um tema instigante e intrigante, por demais complexo e de uma realidade abstrata fantástica. Vejam que nem os juízes de futebol tem mais o livre arbítrio... que o diga o polêmico e necessário V.A.R. Mesmo assim chega um momento que temos que tomar uma ou mais decisões... a questão que vc traz no texto é: essa decisão é realmente uma escolha nossa? é uma escolha pré determinada por Deus? pelos nosso maravilhosos genes? ou será que existe um livre arbítrio cósmico que decide a cada segundo aonde este universo vai parar? questões e questões.... sigamos em frente ( já que o arbítrio mesmo sendo livre não nos deixa voltar e refazer decisões já tomadas). Parabéns amigo Hayton, pelo livre exercício de arbitrar uma questão tão complexa....
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