quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A falta que faz uma pomba

Se você espera um texto sobre o luto de alguém, relacionado aos carnavais de outrora, sentindo a ausência de seu cobertor de orelhas "macetando" o apocalipse, bem, sugiro que ajuste seus óculos e prepare-se para uma reviravolta. Não é disso que pretendo falar nesta Quarta-feira de Cinzas.

 

Sábado retrasado, eu seguia pela orla da Pajuçara, de olho nos foliões que se arrumavam para homenagear o “Pinto da Madrugada”, bloco carnavalesco maceioense que acaba de completar 25 anos. Meu passeio me levou até o Memorial Teotônio Vilela, que mais parece uma ode à arquitetura de Niemeyer, com seu vitral patriótico e uma estátua do Menestrel das Alagoas em pleno ato de libertação de uma pomba, símbolo de sua batalha pela pacificação do Brasil após quase 20 anos de ditadura militar. 

 

Esse gesto me fez lembrar da cantora Fafá de Belém, que, um ano após a morte do senador, em 1984, também soltou uma pomba que tinha nas mãos, no histórico comício pelas “Diretas Já”. Tempos duros em que a liberdade era mais valorizada do que dinheiro na cueca ou em paraísos fiscais, onde a sociedade, artistas populares e os políticos de diferentes partidos se uniram em torno de um interesse maior: a redemocratização do Brasil.

Foto: Fafá de Belém, Teotônio Vilela e Fernando Brant (álbum da família Vilela)

 

Falando em pombas, essas criaturas aladas não são apenas mensageiras de paz na Bíblia. São protagonistas de histórias que vão desde a arca de Noé até o batismo de Jesus. Mas, vamos combinar, de uns tempos pra cá elas têm sido rotuladas por muita gente como verdadeiras “ratazanas do céu”.  

 

No palco urbano, onde fazem as vezes de coadjuvantes, seguem ecoando seus arrulhos misteriosos, quer a plateia aprecie ou não o espetáculo. Mas, quem diria, no civilizado Japão da paz (como canta Gil), a trama ganha contornos dignos de uma novela policial, com essas bichinhas alçando voos rumo ao estrelato de vítimas de um crime inusitado.

 

No final do ano passado, Atsushi Ozawa, um taxista de 50 anos, morador de Tóquio, decide que é hora de fazer justiça com as próprias rodas, encenando uma versão motorizada de "O Predador" contra um grupo de incautas pombas. Seu veículo, antes mero meio de transporte, transforma-se na arma do crime contra uma ave que não constava na lista de espécies caçáveis.

 

O enredo se torna denso quando Ozawa, sem uma gota de remorso, declara à polícia que agiu em legítima defesa territorial, alegando que as ruas são domínios humanos e as pombas, simples intrusas que deveriam ter o bom senso de evitar carros, atrapalhando o trânsito. "As estradas são para as pessoas," proclamou, após um episódio de alta velocidade digno de ser narrado por Sílvio Luiz, com direito aos bordões “olho no lance!” e “pelas barbas do profeta!”.

 

O desfecho dessa saga urbana não poderia ser mais dramático. A lei japonesa, pouco acostumada a tratar casos de homicídio avícola, convoca um veterinário para realizar uma autópsia na vítima fatal, buscando evidências de que a morte foi um trágico encontro com o táxi de Ozawa. A conclusão? Um choque cruel, doloso, digno de cadeia.

 

Nas redes sociais, a coisa pega fogo, com pessoas chocadas com o fato de que atropelar uma pomba possa render cadeia, enquanto outras acham que o motorista passou dos limites. Quem diria que esses símbolos pacíficos iriam causar tanta polêmica?

 

A má vontade com as pombas tem explicação: por serem bonitinhas e ordinárias, as pessoas gostam de alimentá-las com restos de comida, algodão doce, pão, pipocas, que são alimentos inadequados e prejudicam a saúde, além de viciá-las.

 

Como já não são mais caçadas por predadores urbanos (os gatos preferem ração de boa qualidade), cresce sem controle a população de pombas e o aumento tornou-se um sério  problema, pois são potencialmente perigosas para a saúde humana. 

 

A Salmonelose, por exemplo, é uma doença infecciosa provocada por bactérias, e a contaminação ocorre pela ingestão de alimentos com fezes (coisa que prefiro acreditar nunca aconteceu comigo ou com você). Ou a Histoplasmose, provocada por fungos que se proliferam nas fezes de aves e morcegos, cuja contaminação se dá pela inalação de esporos (células reprodutoras do fungo).

 

A versão brasileira da novela japonesa será facilitada pela atual concentração da sociedade em dois lados, onde adversários são tidos como inimigos e transgredir as regras é sempre justificável. Quem procura se manter fora desses dois polos, com outras visões e ideias, ou mesmo quem defende que ambas as facções têm acertos e erros, é tratado pejorativamente como “isentão”. E tome insultos e patrulhamento ideológico!




Sem trocadilho, penso que essa gente intolerante e raivosa anda precisando mesmo é de meia hora de pomba (com o relógio parado!). E não estou falando de uma qualquer, mas daquelas que tiveram o privilégio de voar das mãos de Teotônio Vilela e de Fafá de Belém. Se voltaram, não tenho notícia...

25 comentários:

  1. Brilhante texto, Hayton. Vivemos tempos nebulosos, onde tenta-se impor as "verdades" para justificar possíveis "acertos" e procedimentos duvidosos. Que as verdadeiras pombas da paz e da liberdade possam repaginar este mundão velho sem porteira, trazendo mais empatia, amor e harmonia para todos.
    Deixo aqui parte do texto de Lya Luft,
    Cronista, contista, romancista, ensaísta e poeta, com a seguinte reflexão:

    "...Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade.
    Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.
    E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer."

    Que a consciência coletiva não tenha efeito manada, e que possamos criar menos pombas, para a Casa das Leis, que ficam apenas esperando pelo bom alimento retirado da boca dos que mais necessitam.

    Abraço fraterno
    Oceano Salvador




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  2. Ademar Rafael Ferreira14 de fevereiro de 2024 às 05:39

    No início da quaresma a criatividade monta nas asas da liberdade para criar um texto para ser lido durante os quarenta dias.

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  3. Que a Paz volte a reinar no Brasil e no mundo, independentemente das pombas.
    O texto vai dos tempos bíblicos aos
    dias atuais nas asas de uma pomba. Parabéns por essa reflexão transforma
    Da em texto! Nelza Martins

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  4. Um país dividido e longe dos sonhos representados pelas pombas de Teotônio e de Fafá, como já dizia o poeta Raimundo Correia:
    "Também dos corações, onde abotoam,
    Os sonhos, um por um, céleres voam,
    Como voam as pombas dos pombais:

    No azul da adolescência as asas soltam,
    Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
    E eles ao coração não voltam mais."

    Dedé

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  5. Perfeito para o início da quaresma, quando vale refletir sobre o que é a essência das coisas e dos fatos e pelo que vale a pena brigar.

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  6. Atualmente, no Brasil e em várias partes do mundo, tem muita gente “macetando” a história, a lógica, os fatos, a decência, o bom senso e a verdade. Não é o fim do mundo, mas parece.

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  7. Bom dia meu amigo! Esta divisão de nós contra eles é coisa da pomba gira! Interessa demais ao líder de nós e ao de eles que ficam jogando migalhas para alimentar suas respectivas pombas. Prefiro me isentar deste tipo de alimento distribuído e tratar de conquistar o meu! Abraço!

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  8. Mais uma vez a questão de existirem dois lados da moeda faz com que tenhamos opção de escolher o lado que nos parece mais com nosso jeito de ser... Sempre haverá essa preferência. Ora estamos vendo a coroa, ora a cara... O problema está em "vermos" o lado bom da cara, quando esta age como coroa...

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  9. Bela reflexão, bastante atual.
    Nem os inocentes animais escapam da maldade, da raiva ou dos que acham que tudo podem ou que nada pode ser diferente do que pensam, enfim, a PAZ , a tão sonhada paz, cada dia mais escassa.

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  10. Bem, dizem que a pomba é da paz. Pelo jeito a paz é para elas, pois nos presenteiam inesperadamente dez vez em quando. Artifícios, como águias de barro ou louça, tem dado certo e afugentam as danadas, pelo menos até que entendam que é um simples engodo. Mas meia hora de pomba, pode resolver ou multiplicar muitos problemas.

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  11. Ótima sacada, com encadeamento perfeito pra chegar onde o autor queria.
    A paz deve ser perseguida e conquistada. Às vezes, com perdão pelo trocadilho, a duras penas.
    Mas não deve nos interessar a paz dos cemitérios! Por isso, buscar e batalhar pela paz não implica em compactuar com ideias e atitudes que colocam em risco a paz coletiva!
    Creio que estamos de acordo! Rsrs

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  12. Roberto Rodrigues Leite Bezerra14 de fevereiro de 2024 às 09:34

    Hayton, divagações à parte, muito pertinente a discussão que você propôs. Por um lado, a beleza e simbologia envolvidas. Por outro, questões de ordem prática e sanitária. Se a pomba branca traz à mente a paz, a beleza, candura e liberdade, há tantas outras colorações a indicar uma relação nada amistosa. Como se diz:"tudo demais é demasia". Hoje, aquelas aves tomam conta de diversos espaços urbanos, fazendo nascer em humanos enorme nojo do convívio comum. À falta de um controle natural da espécie, milito que os Ozawa da vida intensifiquem sua ação. E balanceiem esta coexistência nada amigável.

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  13. O seu texto me fez voar para o outro lado da história, onde as pombas são meras coadjuvantes deste teatro de gosto duvidoso. Nem a pomba da paz de Fafá e nem a pomba atropelada do taxista japonês pode nos fazer esquecer que, os atores da grande divisão, por mais generoso que eu seja com um ou mais cruel que eu seja com o outro, nenhum dos dois serviria para engraxar os sapatos de Teotônio Brandão Vilela. Pronto, falei!

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  14. Li duas vezes o texto para entender melhor a mensagem do autor. Li também todas as mensagens dos leitores e fiquei com dúvidas. Conclusão: deve ser consequência da perda de memória, fruto da idade avançada (82). No entanto, o testemunho não me parece desonra. Tenho consciência que isto é natural e que não devo me acomodar. Tenho que fazer o possível para superar as dificuldades e continuar a desfrutar as boas coisas da vida.
    Quanto ao texto, tenho mesmo é que parabenizar o autor por não faltar com o compromisso espontâneo de prestigiar um considerável grupo de leitores e brindá-los com um sábio texto em plena quarta-feira de cinzas e um verdadeiro jogo de cintura para se equilibrar num texto altamente subjetivo.
    Recado dado.

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  15. Apreciei esse finalzinho por demais
    “Sem trocadilho, penso que essa gente intolerante e raivosa anda precisando mesmo é de meia hora de pomba (com o relógio parado!). E não estou falando de uma qualquer, mas daquelas que tiveram o privilégio de voar das mãos de Teotônio Vilela e de Fafá de Belém. Se voltaram, não tenho notícia.”

    É que as pombas sempre voltam amigo. Como dizia o poeta Raimundo Correia:
    “AS Pombas
    Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
Das pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada.

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais, de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam
Os sonhos, um a um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.”
    (Isa Musa de Noronha)

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  16. Esse texto faz refletir: Vale a pena viver vendo tanta falta de vida, mas da verdadeira vida, pródiga em comunhão de interesses? Aqui é mesmo um vale de lágrimas. Não haverá paz ! Nascemos guerreando, vamos morrer egoístas. Do acreditar em si mesmo, nascem todas as virtudes natimortas. É muito pessimismo, eu sei, mas, precisamos concluir que, como dizia o Cristo, "A felicidade não é deste mundo". Só nos resta nos refugiarmos na fé de que um mundo melhor existe, que não seja a terra, o planeta terra, tão generoso e mal tratado e que, um dia, pra lá as gentes vão, generosas gentes dignas daquele plano. É muito corajosa a gente que pr'aqui vem. É uma batalha a que os soldados se atiram com toda valentia, mas que poucos são os que dela saem vitoriosos para outros mundos.

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  17. Ao referir-se ética e justiça, vem à memória quando o apóstolo Paulo menciona aos Efésios:

    ”e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade.“
    ‭‭Efésios‬ ‭4‬:‭24‬ ‭ARA‬‬
    https://bible.com/bible/1608/eph.4.24.ARA

    Pela graça de Deus tenhamos corações humildes, disponíveis e perseverantes em buscar a retidão, justiça procedente da verdade.
    Abraço
    Que Deus nos abençoe

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  18. Que legal!! Você sempre mandando bem. Abraço

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  19. É, meu amigo! Gostaria de ser capaz de um "otimismo severo" e dizer que tudo está bem. Mas, quando percebemos que temos "inimigos", que sequer conhecemos e que - muito menos - não nos conhecem; que não se importam com as feridas que abrem; que vociferam suas falsas verdades; que agem feitos "pombas-lesas"; não vejo alternativas, senão encarar essa crua realidade: a direção que a humanidade está tomando é... de dar pena! Que pena!

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  20. De que varanda da vida vc tem essa vista de tantas pombas com tantas falas! Privilegio! Meu abraço.

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  21. Suas quartas-feiras são sagradas! Não falha nem da de cinzas. Texto delicioso! Perfeito! Adorei! Diniz.

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  22. Sempre tenho dificuldade pra encontrar adjetivos que qualifiquem com precisão o brilhantismo de suas crônicas. No caso desta de agora então, a coisa complicou aqui, deu um nó na tal de "massa cinzenta".
    Sim, pois você não se contentou em ir de "macetando o apocalipse", à comparação de liberdade com dinheiro na cueca, sem contar tantas outras citações de expressões e situações que foram tão bem encaixadas em seu esplêndido texto, fez muito mais. Passeou com leveza, elegância, sutileza e agudo senso crítico, de parto a atracação de navio - expressão que gosto muito de utilizar.
    Enfim, estamos muito mais que mal acostumados, o caso é de vício mesmo.

    Carlos Volney
    Salvador-Bahia

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  23. Bom dia!
    A Sua crônica me lembra alguns fatos relacionados. A criação de pombos foi um fascínio da minha infância, demorei a admitir que esses animaizinhos transmitissem doenças, pois convivi com eles e até comi. Uma iguaria, se posso dizer assim, muito servida em minha terra, naquele tempo, era um frito de filhotes, chamados borrachos, quando já estavam com penas, prontos para sair do ninho. Na minha recordação era muito deliciosa (coisas da linhagem indígena). Mas tô aqui bom e gordo 😂
    Em outra passagem com pombos, meu pai nunca dirigiu bem. Um dia, amassou o para-choque do Jeep, ao tentar desviar de alguns pombos que catavam pedrinhas no terreiro da nossa casa, bateu em uns tambores de 200 L, onde armazenava gasolina. Ao contrário do Japa da história, evitou o atropelamento.
    Por último, tenho um conterrâneo e contemporâneo, que é cronista e publicou uma crônica, em 2004, no Almanaque da Parnaíba, sobre pombos, do ponto de vista romântico da fidelidade, do direito, do meio milenar de comunicação e da criação esportiva desses adoráveis voadores. Grande abraço
    Miranda

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  24. Às vezes tenho uma inveja boa de você, Hayton.
    Você consegue falar de coisas simples do cotidiano com maestria. Parabéns!
    A propósito da pomba urbana, hoje tida como ordinária, essa já teve mais prestígio, né?
    Obrigado por nos brindar com mais esse texto.

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