quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Entre coices, closes e mordidas

Na última semana do mês passado, uma mulher, com mais desejo de fama do que bom senso, tentou tirar uma foto com um cavalo da Guarda Real em Londres e acabou com uma mordida no braço. A cena, digna de uma comédia de erros, foi registrada em vídeo e publicada no YouTube, onde se vê a mulher se aproximando do cavalo e, em um esfregar de olhos, o animal abocanha seu braço. Assustada, ela escapa e se junta aos demais visitantes. Não se sabe o que um teria dito ao outro, antes da mordida.


Reprodução/YouTube

Na sequência da cena anterior, vê-se a mulher estendida no chão, cercada por turistas. Uma delas, com um leque em mãos, tenta reanimá-la, enquanto os policiais chegam para avaliar a situação. Fiquei sabendo que um dos agentes, após conversar com a vítima, se dirigiu ao guarda, acariciou o cavalo e, quem sabe, discutiu a questão da mordida sob a ótica equina e psicanalítica. 

O cavalo, já notório por sua disposição dentária, havia tentado morder outra pessoa pouco antes. Uma moça de vestido rosa foi a primeira corajosa a se aproximar do animal, que prontamente virou a cabeça em sua direção e tentou morder seu antebraço. Ela conseguiu escapar, mas a segunda turista, não tão sortuda, acabou se tornando a protagonista dessa história.

Curiosamente, uma placa ao lado do intolerante cavalo advertia sobre os riscos: "Cuidado. Cavalos podem dar coices ou morder. Não toque nas rédeas. Obrigado". Mas parece que as advertências foram ignoradas em favor de um flagrante perfeito no celular, a ser compartilhado nas redes sociais.

Nos comentários sobre a notícia, a internet, sempre ácida, teve seu momento de glória. Um usuário observou que não havia sangue, explicando que cavalos não mordem propriamente, porém mascam, resultando numa sensação semelhante a um beliscão poderoso. Outro foi cruel, dizendo que a mulher teve os "quinze minutos de fama que queria" e deveria ter lido a placa. Um terceiro ponderou que quem vai tirar fotos com os cavalos deve estar ciente dos riscos, afinal, são animais que agem por instinto e têm humores tão oscilantes quanto os humanos. Sobretudo, admito, quando fardados ou investidos em funções de mando no universo corporativo. Cavalos e homens, claro.

O mais curioso, talvez, seja que ninguém percebeu que, no fundo, o incidente não configura propriamente uma notícia: notícia seria se a mulher tivesse mordido uma das orelhas do cavalo. Cavalos mordendo turistas é quase uma rotina global, "na Oropa, França e Bahia", como diria Alceu Valença, o menestrel pernambucano.

Notícia ou não, lembrei-me de um episódio ocorrido em 1978, quando o então presidente Ernesto Geisel indicou o general João Baptista Figueiredo para ser seu sucessor. O governo iniciou uma campanha para popularizar a imagem do chefe do SNI, chamado um tanto forçadamente de “João do Povo”. Mas a iniciativa fracassou, em boa parte devido à personalidade do general. Em uma entrevista, concedida em agosto daquele ano, ao ser questionado se gostava do “cheiro do povo”, Figueiredo respondeu: “O cheirinho do cavalo é melhor”. O amor pelos equinos era tanto que Myrian Abicair, dona de um dos mais badalados spas do Brasil (o “Sete Voltas”, em Itatiba-SP), décadas depois assumiu publicamente um romance extraconjugal com o general, afirmando que a coisa mais valiosa que ganhou dele foi um cavalo. Nada a admirar.

Voltemos ao episódio da mulher que tentou tirar uma foto com um cavalo da Guarda Real em Londres e acabou mordida no braço. Esse evento ilustra bem o dilema das grandes cidades turísticas, nos dias de hoje, que tentam equilibrar a necessidade de receitas do turismo com o bem-estar dos moradores. Em Barcelona, manifestantes têm borrifado água nos turistas em áreas populares. Veneza introduziu uma taxa para limitar os visitantes de um dia. No Japão, o Monte Fuji sofre com o lixo e o mau comportamento turístico. Kyoto, famosa por seu distrito de gueixas, tem enfrentado problemas com turistas invasivos. E Seul, com milhões de visitantes, também luta para manter a ordem.

Na minha visão quase sempre distorcida dos fatos – começo a aceitar a correlação entre a idade e a rabugice –, estou convencido de que nem os cavalos aguentam mais o turismo de massa, predatório, especialmente porque envolve as famigeradas selfies, essa prática que transforma a interação humana em uma busca incessante pela melhor imagem de si mesmo. Nunca alcançada, diga-se.

Tudo bem, alguns escolados no assunto dizem que as selfies são uma forma de autodescoberta e redefinição de identidade. Se é assim, alguém precisa avisar os cavalos para, entre coices, closes e mordidas, serem mais tolerantes com a estupidez humana. 

38 comentários:

  1. Imagina, nem os cavalos mais aguentam!

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  2. Cavalo também é gente, diria o outro.

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  3. Recentemente estive no Jalapão e me incomodei muito com a praga das selfies diante das incríveis paisagens. Ninguém aprecia mais o lugar, só se busca o melhor enquadramento a tudo custo.
    Portanto, fico com o cavalo da guarda real. Bom seria ter mais deles a distribuir mordidas.

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  4. Verdadeiramente a população exagera nas selfies , esse desespero por se mostrar e causar inveja aos demais , “que não tiveram ou não tem o privilégio de estar naquele lugar e naquela situação ”. No caso lascou-se essa turista analfabeta. Ótima crônica , aguardo a outra crônica de outra foto icônica tirada nas olimpíadas !

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  5. Surpreendente e interessante a abordagem do tema veiculado. E o melhor: enriquecido com o uso de uma bela foto sobre o assunto. Como de costume, fico a imaginar a preocupação do autor em cumprir semanalmente o seu objetivo perante os inúmeros leitores. Apesar das dificuldades naturais, a verdade é que ao longo do tempo é construído um belo conjunto de textos que deixam o autor completamente feliz. O preço é alto mas o resultado é bom. Que continue assim, para o bem do autor e dos seus inúmeros leitores. Bom dia!

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  6. Estás coberto de razão. Registrar que esteve lá ainda passa, se não tomar conta do pico é claro. Mas os energúmenos deixam de aproveitar o espetáculo, as piruetas, as músicas, a performance, pra ficar registrando o que não é pra ser perpetuado a não ser na própria memória.

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  7. Essa obsessão por tirar selfies e obter curtidas e comentários leva a esses acidentes inesperados.

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  8. Exageros à parte, as fotos (e os vídeos) ajudam a contar histórias; as boas, as ruins, as engraçadas. Tem até bichos que parecem gostar de entrar na cena.

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  9. Me lembrou um conhecido adágio popular: "Cavalo dado não se olha os dentes". Taí, primeiro que o cavalo não era dado a rompantes dessa doença recentemente reconhecida como selfitis, depois a "Selfer" (neologismo pra quem tira muitas selfies), não olhou, antes, os dentes do cavalo. Somente após sentiu a força daquele que é forçado a aguentar esses turistas chatos; no caso o cavalo e a guarda, satisfeita depois da abocanhada prefeita. Adorei.

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  10. onde lê-se prefeita, leia-se perfeita.

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  11. A Estátua da Liberdade, em Nova York, recebeu 3,7 milhões de visitantes, em 2023, de acordo com o NPS (National Park Service). Já a Torre Eiffel, os números chegam a dobrar. Anualmente, essa estrutura metálica de gosto duvidoso atrai 7 milhões de turistas à capital francesa. E todos querendo uma selfie! Se os dois monumentos tivessem patas e dentes, sei não, viu...

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  12. Só digo três coisas:
    1) se o fato acontecesse no Brasil, com turista estrangeiro, a culpa certamente cairia no cavalo - colocada, em primeiro lugar, pelos próprios brasileiros com complexo de vira-latas;
    2) o fenômeno das selfies precisa ser estudado. O que tem de gente morrendo ao cair de prédios, cachoeiras e quetais em busca de uma grande selfie é uma enormidade;
    3) no caso da turista mordida, minha desconfiança é que ela acreditou demais no ditado: “quem fala muito acaba dando bom dia a cavalo”. Talvez um simples “Helo” tivesse evitado o ser ter “helado” nela!

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  13. Só pra contrariar, vou ficar do lado da turista! Não sou muito chegado a cavalos.Desde pequeno fui sacaneado por eles. O cavalo de meu pai tinha mania de ficar batendo o rabo pra la e pra ca pra espantar as moscas e, vez por outras me acertava também! Outro cavalinho sem vergonha me deu uma baita queda quando, comigo no lombo, resolveu passar por baixo de um galho de mangueira. Brincadeiras a parte, o turismo de massa é meio predatório mesmo. Gera emprego, é certo, mas tanta coisa danosa ao meio ambiente e ao ser humano geram emprego!

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  14. O cavalo da Guarda Real queria apenas fazer um "carinho" nas turistas, mas estas esquecem que os equinos têm sentimentos e um ritual próprio para expressá-los. 🤣🤣
    Para não perder o passeio, razão e emoção devem estar equilibrados, e o bom senso e a prudência devem prevalecer. Deve-se seguir as orientações de segurança, curtir as paisagens e atentar para os "carinhos" que podem surgir nos momentos das selfies.
    Blaise Pascal, já dizia:
    "Dois excessos: excluir a razão, admitir apenas a razão."
    E que venha a quarta-feira, para nosso deleite nas belas crônicas.

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  15. De fato, cavalos dão coices e mordem, assim como muitos humanos que, para se defenderem dos exageros, se valem dessa prática equina...

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  16. “Se tem placa, tem história”… mas, fiquei aqui matutando, como tem gente que anda ultrapassando os limites em busca de uma satisfação pessoal. Inclusive os limites do outro. Ultrapassa o limite do bom senso. Desrespeita. Invade. Invejei o cavalo…

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  17. Excelente. Estou aqui pensando no que teria sido feito dessa selfie, além de circular nas redes sociais? Certa feita (sempre sonhei em usar isso!), quando era mais um nesse turismo de massa, a guia nos aconselhou a todos: “Fotos melhores que estas que vocês estão tirando se encontram na Internet. Por que não aproveitam esse momento raro, apreciam as cores, as formas, com os seus olhos? Sintam a energia do local. Fechem os olhos e observem com o coração. Vivam esse momento”.
    Talvez ela já soubesse que, poucos meses depois, a igreja seria consumida pelo fogo.

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  18. Menos mal para a SN da turista. Pior seria se o mordiscar de afago braçal fosse acompanhado de coice e queda. Não sei se é rabugice de velho, mas acho insuportável os pets caninos, agora, carregados para os lugares mais inusitados e com os seus donos dizendo que não mordem, como se fossem banguelos. É preciso muita paciência.

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  19. Muito Bom!
    Retrato da busca do mundo atual, o interesse pessoal como maior e melhor, importante na história; divulgar minha imagem. Oxalá, pensará em requerer indenização pela reação..........

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  20. Francisco Oitavo P. Fernandes7 de agosto de 2024 às 10:34

    Por ter cauda equina, a turista se equiparou ao quadrúpede. O cavalo, que não tem telencéfalo altamente desenvolvido, ao contrário da turista, foi mais racional. Ponto para o cavalo.

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  21. Não está descartada, imagino, alguma ação “sutil” do guarda real. Muita falta de noção de turistas

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    1. É verdade. Um movimento de rédeas especial, devidamente combinado com o tutor, pode determinar o tamanho da mordida ou a extensão do coice nas pessoas sem-noção que fingem não ver as placas de aviso.

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  22. Cavalos reais que sabem ler e cumprir, com lealdade, o veredito: dá coices e morde, como publicamente alertado aos desavisados.

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  23. A boa _linguagem equus_
    É a ótica do Cavalo
    E todo cuidado é pouco
    É isso que sempre falo
    O Cavalo não é gente
    Morde e aperta o dente
    Em um curto intervalo.

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  24. Não há preparo psicológico que nos livre da surpresa com os temas que você explora com tanta proficiência.
    Como já disse aqui, além de escritor e cronista brilhante, você é também um insuperável contador de histórias - quando não tem uma pra contar, você inventa...

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  25. Eis outra crônica com aqueles assuntos diante dos quais não há como ficar indiferente.
    Hoje, para muitos de nós, não há como não habitar também a realidade virtual, seja por busca de informações importantes, fúteis ou como fuga da dureza da vera realidade.
    E esse novo modo de viver, facilitado por celulares cada dia mais modernos, colocou a fotografia ao alcance de todos, bem diferente daqueles tempos das máquinas fotográficas com filmes limitados de doze, vinte e quatro ou trinta e seis poses.
    Agora é uma enxurrada de fotógrafos que querem registrar tudo, inclusive o que não lhes cabe ou sem qualquer cuidado, como o caso aqui trazido pelo nosso cronista.
    E o problema não é de agora.
    Por coincidência, estou lendo o excelente “A arte de viajar”, do escritor Alain de Botton. Em um dos capítulos ele nos fala da decepção do crítico de arte britânico, John Ruskin, do século XIX, com os fotógrafos da época: “Em vez de usar a fotografia como um suplemento para um modo de ver mais ativo e consciente, eles a usavam como uma alternativa, prestando menos atenção no mundo do que tinham prestado antes, com base na crença de que a fotografia automaticamente lhes garantisse sua fruição.”
    Imagine se Ruskin fosse nosso contemporâneo.

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    1. Esse livro deve ser bem interessante!

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  26. Para a moça sem bom senso, em Londres, "o castigo veio a cavalo". Mas me fez lembrar de minha única experiência com cavalos. Só andei a cavalo uma vez. Tinha uns 16 anos e fui convidado por uma colega de escola (que sequer notava os olhares melosos, que eu lançava), para passar um final de semana, na fazenda do pai dela. Lá, ela me apresentou seu noivo...

    Voltando ao cavalo, atrevi-me a montar um todo "encilhado", que ela me ofereceu, para darmos um passeio em grupo. "Não se preocupe, que ele é manso", foi o que ela disse, para me tranquilizar.

    Gostei tanto do passeio, que resolvi andar mais um pouco, quando eles decidiram voltar para a Sede. Estava tão seguro, que resolvi incentivar o cavalo para correr. Dei duas batidas com os calcanhares e ele obedeceu, saindo em disparada. Só aí, que eu lembrei: "como faço para parar?".

    Felizmente, o cavalo era inteligente (sem comparações, por favor!!!) e correu em direção à sede. Foram longos 200 metros, mais ou menos. Ele parou, no portão da cerca construída em torno da casa. Desci, tentando manter a postura, mas confesso que os joelhos dobraram, quando pus os pés no chão.

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  27. Até os cavalos estão reclamando da invasão de privacidade. Rsrs

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  28. Infelizmente, as selfies virarão, literalmente, uma pandemia e têm provocado muitos incidentes, inclusive algumas mortes.

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  29. Os cavalos são bem treinados, nada pode fazer com os humanos "analfabetos".

    Mais uma bela crônica!
    Emílio.

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  30. Mais um belo “ conto” para as nossas quartas feiras. A turista, além da doença da selfie, esqueceu de estudar um pouco de inglês, para conseguir ler os avisos.

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  31. Hayton, magnífico texto!

    Permita-me consultar-lhe sobre o seguinte: se "...as selfies são uma forma de autodescoberta e redefinição de identidade." o "autorecemdescoberto" tem sempre a mesma necessidade de redefinir sua identidade? Faz sua self, olha, arquiva, parte para a seguinte e nunca mais as revê!

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  32. Se queria uma recordação, teve e pra sempre. Como diz o ditado, além de apanhar ainda passou vergonha. Mas pode ter escapado de um episódio grave. Conheço caso em que a mordida foi tão forte que os ossos do braço foram severamente triturados. Que fique a lição que não serve pra curioso.

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    1. A cada dia vemos que o uso do celular é tão grande a ponto de muitos pagarem caro e não assistir o show, filmando todo o tempo. Passo a não entender pois esses eventos são filmados e disponível depois. Paciência.

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  33. Tô achando que faltou apenas a analise de o cavalo querer bombar nas redes e ganhar um patrocínio especial! Hehehe

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