dezembro 24, 2025

O presépio que se arma por dentro

O PRESÉPIO QUE SE ARMA POR DENTRO 
Hayton Rocha


No noticiário da tarde, a palavra “maldade” escorreu pela tela. Veio com rosto, sangue e legenda curta demais para explicar a barbárie. Um homem que mata para roubar. Outro que atropela e arrasta a ex-companheira pelas ruas, arrancando-lhe as pernas como quem corta galhos secos. A maldade costuma nos visitar assim: com helicóptero, sirene e aquela confortável certeza de que ela mora sempre no quarteirão do lado.


A gente sacode a cabeça, suspira, comenta sobre “o mundo estar perdido” e troca de canal, como se isso fosse também mudar a realidade. A maldade parece sempre um monstro estrangeiro. E raramente pensamos na outra, a que não escorre sangue na calçada, mas sangra lento: a dos salários de fome, da fila do posto de saúde que não anda, da escola sem professor, dos sem-teto. Violências recorrentes, surdas, que já não dão tanta manchete e, mesmo assim, atingem milhões todos os dias.


Existe ainda a maldade contra a natureza, praticada em prestações: o lixo lançado pela janela, a árvore derrubada sem piedade, o rio tratado como fossa. Ninguém morre na hora, mas tudo vai morrendo aos poucos, como vela de presépio esquecida depois da ceia.




Num sentido mais amplo, talvez a maldade seja isso: a agressão que se banaliza, a destruição que se justifica, o desrespeito que se torna hábito. Ela se volta contra o outro, contra nós mesmos e contra essa casa provisória chamada planeta. Não ruge nem mostra os dentes. É bicho de muitas cabeças que aprende a ficar invisível, sobretudo quando passa diante do espelho.

 

Há quem diga que ela já nasce conosco, como instinto antigo herdado, com garras e presas. Outros juram que não: que a maldade é ensinada, tecida na desigualdade, na pobreza, na exclusão, na cultura que empurra uns para cima e pisa outros. 


Quem sou eu para ter uma resposta conclusiva? Logo eu, que ainda me flagro impaciente na fila, chateado no trânsito, indiferente ao pedido de esmola que atrasa meu passo? Desconfio de explicações que absolvem demais ou condenam demais. Prefiro acreditar que o homem é um sistema aberto: aprende, escolhe, erra... e repete.


E chega dezembro.


Dezembro é mês estranho. Cheira a rabanada e tem gosto de prestação vencida. Acende luzes na janela e revela sombras no balanço do ano. Obriga a memória a fazer inventário do que fomos, do que não conseguimos ser e do que fingimos esquecer para seguir em frente. 


Uns encontram gratidão: o emprego mantido, o filho que ingressou na universidade, o neto que nasceu saudável, a doença que recuou. Outros esbarram em culpas, frustrações, promessas murchas como panetone fora da validade.


O Natal, esse velho fabricante de emoções, desperta carinho, desejo de renovação e generosidade. Abraça-se mais, promete-se mais, perdoa-se até por conveniência. Ao mesmo tempo, a data escancara ausências que não sabem mais voltar: a cadeira vazia, a voz que não liga, a carranca onde antes morava um sorriso. Há uma pressão invisível para que todos sejam felizes do mesmo jeito, na mesma noite, sob a mesma fartura. Quem não cabe nesse molde sofre, como quem assiste calado à festa pela janela do vizinho.


É aí que o Natal se torna perigoso — mas necessário.


Perigoso quando vira apenas verniz de bondade sobre nossas pequenas maldades de estimação: a arrogância disfarçada de opinião, o egoísmo travestido de direito, a indiferença de quem passou a enxergar pouco semelhante pelo caminho. Necessário porque, se ainda guarda algum sentido, talvez seja o convite mais antigo para revisarmos o presépio que montamos dentro de nós.


Porque não é só Herodes que faz a história. Também mora ali o pastor cansado. O anjo distraído. A criança vulnerável. E, sim, o lobo que aprende a vestir roupa de gente.


O que ainda nasce dentro de nós? Que humanidade estamos regando nos gestos mínimos — no modo como tratamos o garçom, o lixeiro, o mendigo, a natureza? A maldade não mora apenas nos crimes que nos assombram. Mora também naquilo que escolhemos não fazer, não sentir, não ver.


Se existe alguma oração que ainda faça sentido entre o peru e o panetone, quem sabe seja esta: que a gente tenha coragem de encarar a própria sombra antes de exigir a luz do outro.


Talvez seja este o milagre mais raro de dezembro: aceitar que o Natal não nos salva da maldade, mas nos oferece, uma vez por ano, a chance de não fazer acordo com ela.

17 comentários:

  1. Feliz Natal, caro Hayton!!!
    Não façamos acordo com a maldade. Enfrentemo-la com a certeza de que o vencedor será sempre o amor ao próximo, o desprendimento, a compreensão, e, acima de tudo, a consciência de que somos capazes e podemos acolher a quem mais precisa de nós.
    Neste Natal, a inspiração lhe seja companhia inseparável para que possamos gozar do privilégio da leituras frugais e culturais que você nos premia às quartas-feiras.
    Que o Filho de Deus lhe ilumine perante o Pai, juntamente com sua bela Família
    Tonhodopaiaia.org

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  2. Excelente reflexão. "Que a gente tenha coragem de encarar a própria sombra antes de exigir a luz do outro" bateu fundo e sintetiza, com muita propriedade, o sentimento que devemos ter como se fosse uma "placa de caminhão " a estar à nossa frente.
    Um Natal iluminado para o cronista e todos os leitores que o acompanham semanalmente!

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  3. Fantástica a sua crônica, Hayton. O mundo vive a dualidade da maldade humana, onde [ela] mostra, através das reportagens, a barbárie, com o mal invisível da vida cotidiana, como a indiferença social e a negligência ambiental. Ao situar essa análise, percebemos que precisamos celebrar paz, amor, esperança, empatia... não só em dezembro, mas sair da vala comum e das sombras que acentuam desigualdades e ausências, pois bondade e amor são para todo dia. É necessária a autocrítica diária sobre nosso papel neste plano espiritual, pois o milagre está dentro de cada um de nós, e apenas nós podemos fazer a diferença, implementando gradualmente as mudanças necessárias. Rezemos sempre a Oração da Coragem, por você apresentanda: "que a gente tenha coragem de encarar a própria sombra antes de exigir a luz do outro."
    Feliz Natal e parabéns pela brilhante crônica.

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  4. O Natal realmente nos leva a refletir, a fazer um balanço da nossa vida.
    Acho que também pode ser um momento de renovação.

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  5. Sensacional!
    Para fechar o ano com luz e esperança. Em meio ao excesso de ruído e escassez de sentido, sua escrita organiza o pensamento, provoca a consciência e amplia o repertório moral.
    Gratidão. Feliz, santo e abençoado Natal!

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  6. Excelente. Nos faz viajar pelas artérias do cérebro e pelas veias do coração.
    Excelente Natal Caro Amigo Hayton Rocha, paraibano de ótima cepa. Esse meu voto alcança à Dra Magdala, Dona Eudóxia, a sua maravilhosa prole e demais familiares.
    De mãos dadas e crendo no Menino aniversariante, cruzaremos o oceano 2026, sem sermos tragados pelas grandes ondas desse oceano das maldades.
    Sebastião Cunha

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  7. Feliz Natal e faço minha as sua palavras.Que possamos refletir e cada dia e nos tornar melhor,mesmo que em pequenos passos.

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  8. Sim meu amigo, lembro sempre que Maria e José bateram várias portas, dia e noite, procurando alguém que desse abrigo, numa gravidez chegando pela hora do gol. Não queriam que houvesse lugar para eles. Porque lugar é algo que queira ando se quer aparece. Se junta um móvel ali. Retira uma cadeira de acolá, se joga uns cobertores no chão, e tá feita a cama. Mas, eles não tinham lugar. Pra um casal pobre e montado numa jumenta, faltou abrigo. Faltou acolhimento. Nem o dono da estrebaria. Porque quem deixaria uma mulher dando a Liz ir dormir no curral, sem antes dar de sua própria cama? E, aínda não há lugar. Para o acolhimento, a justiça, a ética, a mansidão, a bondade e esperança.

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  9. _...Caro HAYTON, um excelente crônica -- digna de uma grande data. Descreve a nossa triste realidade; e nos leva a refletir sobre temas "pesados" -- que alardeiam o nosso dia a dia. PARABÉNS! - José Luiz._

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  10. Excelente provocação e mote para a reflexão.
    Maurício

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  11. Acabei de ganhar um presente de Natal belíssimo : sua crônica .Deus o ilumine sempre para nos brindar sempre . FELIZ NATAL !❤️❤️❤️❤️❤️❤️

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  12. Hayton, seu texto me pegou de jeito porque ele é aquele tipo de "balde de água fria" que a gente precisa de vez em quando.

    Você tira essa máscara de que a maldade é só o que passa no jornal — o crime, o sangue, o "monstro" lá fora — e traz o problema aqui para o meu quintal. É um convite incômodo para eu perceber que a maldade também está na minha pressa, no meu lixo jogado na rua e na minha mania de me achar "bonzinho" só porque não faço nada de grave, enquanto ignoro o mundo ao meu redor.

    O que achei realista e contundente foi como você descreveu o Natal. Para muitos, é só aquela correria de compra e rabanada, um "verniz" de bondade que a gente passa por cima do egoísmo.

    Você me mostrou que a data é perigosa porque nos força a olhar para o que falta: para a cadeira vazia, para os meus erros e para as promessas que deixei mofar. Não é sobre ser feliz por obrigação, mas sobre eu encarar o que realmente cultivei durante o ano.

    Excelente crônica caro amigo.

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  13. O Natal pode ser essa oportunidade de fazermos essa reflexão necessária que seu texto nos sugere, Hayton! Feliz reflexão a todos nós! Abraços. Heloisa Oliveira.

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  14. A maldade e a violência foram banalizadas. Não sei se a causa é a busca do mais "ter" do que "ser". É preciso muita reflexão para deixarmos um mundo melhor para os herdeiros futuros da nossa geração. Que a DIVINA LUZ DO NATAL ilumine o caminho de todos os dias das nossas vidas.

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  15. Se o Natal nos leva a fazer as reflexões que você propõe, ele recupera e renova seu sentido.
    Por mais que a sanha destruidora esteja num nível em que a contenção já se torne inviável, apostemos ao menos na desaceleração.

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  16. “que a gente tenha coragem de encarar a própria sombra antes de exigir a luz do outro.” Perfeito! Isto é Natal!

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  17. “que a gente tenha coragem de encarar a própria sombra antes de exigir a luz do outro.” Perfeito! Isto é Natal!

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