dezembro 31, 2025

O cemitério das agendas

O CEMITÉRIO DAS AGENDAS
Hayton Rocha


Talvez você pense que A Lista, de Oswaldo Montenegro, andou tocando demais aqui em casa nos últimos dias. Refiro-me àquela canção, lançada há 25 anos, que nos convida a encarar o tempo, os sonhos trocados e as amizades que mudam de forma. Tudo é possível.



 

Reencontrar velhos amigos depois de muitos anos é, quase sempre, uma sessão espírita mal organizada. Apertamos as mãos como quem tateia o escuro, sorrimos com a cortesia dos sobreviventes e começamos a falar de coisas que já morreram dentro de nós. Conversas de além-mundo. A gente finge interesse, o outro finge que acredita, e ambos sustentamos o teatro como dois personagens cansados de uma peça que já não comove ninguém.

 

 

Não têm sido poucas as desilusões que provoco — e que me são provocadas — quando reencontro certas criaturas que um dia jurei carregar no bolso como amuletos contra a solidão. Os abraços vêm ligeiramente exagerados, talvez por anteciparem o abismo que se abre logo depois, entre uma frase e outra. Um fosso feito de constrangimentos, desencontros e risos forçados.

 

Alguns envelheceram apenas lapidando os defeitos que já exibiam quando jovens. Se eram chatos, tornaram-se especialistas. Se eram vaidosos, transformaram a futilidade em traço de caráter. Outros hipertrofiaram mesquinharias e ideias reacionárias, dessas que não matam à queima-roupa, mas intoxicam devagar. 

 

Que o acaso, mais confiável que todos os santos de plantão, nos poupe de estarmos entre esses.

 

Há também os que reduzem o mundo a cifras e metros quadrados. Enumeram, com hálito misógino, as mulheres que “devoraram”, como itens de um cardápio nojento. Exaltam feitos quase sempre imaginários de filhos musculosos, doutores em coisa nenhuma, herdeiros de um enorme vazio.

 

Outro dia, no corredor de um shopping center, topei com um colega dos meus tempos de menino, alguém que eu julgava grande amigo. Antes mesmo de saber se eu estava bem, quis saber se eu morava à beira-mar e que carro eu tinha. Talvez precise medir a felicidade alheia pela régua falsa da declaração de bens.

 

Em outro canto da cidade, longe dos espelhos do shopping, reencontrei numa mesa de bar velhos pernas-de-pau das peladas da adolescência. Bebiam e riam de si mesmos, trocando piadas sobre ex-esposas no idioma permanente da 5ª série, esse território onde todos ainda mantemos residência, mesmo quando fingimos maturidade. Não vou negar, meu lado 5ª série segue vivo. Só aprendi que há momentos em que ele pode pedir uma cerveja e destilar bobagens, e outros em que convém mandá-lo esperar do lado de fora.

 

Teve também o caso de um carrasco dos primeiros anos de trabalho, agora aposentado, exibindo fotos de chácaras e vacas, enaltecendo supostas virtudes de seu guru político com a convicção de certos galos que cantam para si mesmos ao amanhecer. Sim, ainda existe quem meça o mundo com a trena do dinheiro e acredite compreender o reino humano.

 

Talvez devêssemos criar categorias para os amigos dos tempos idos que felizmente não voltam mais. Há os do futebol, que duram exatos sessenta minutos de pelada, acrescidos apenas dos xingamentos. Há os amigos de drogaria, que sobrevivem entre a conversa fiada na fila e o dízimo da indústria farmacêutica. Relações estáveis e previsíveis: nascem no balcão e morrem na boca do caixa. Há outros do gênero, mas fiquemos por aqui.

 

Toda pessoa sensata deve se dar por satisfeita por possuir uma confiável dezena de amigos. Os de verdade são como bons filmes: poucos, mas capazes de atravessar décadas sem perder o sentido. Não precisam de avatar, não exigem curtidas nem pedem boletins ou extratos mensais sobre a cor da felicidade.

 

Para esses poucos, todo o tempo do mundo não basta. São os que oferecem o ombro, escutam sem julgar e permanecem quando todos os demais vão embora. Zele por eles como quem rega flores raras no jardim da existência. Porque foram escolhidos, não impostos, ao contrário de certos parentes que a genética nos empurra como obrigação vitalícia.

 

Por isso, nesta virada de ano, quando se promete o que não se cumpre, se perdoa o que não se esquece e se brinda ao que não se sente, ore por seus verdadeiros amigos. Não por todos os que passaram pela sua vida como quem faz escala em aeroporto. Mas pelos que se instalaram.

 

As demais criaturas, que se perderam pelo caminho, continuem vagando pelo cemitério das nossas agendas. 

 

Nem todo reencontro merece ressurreição. A gente sabe disso, mas, volta e meia, esquece.

11 comentários:

  1. Jorge Amado escreveu semelhante crônica em Navegação de Cabotagem… “Tenho horror a hospitais, os frios corredores, as salas de espera, ante-salas da morte; mais ainda a cemitérios onde as flores perdem o viço, não há flor bonita em campo santo.
    Possuo, no entanto, um cemitério meu, pessoal; eu o construí e inaugurei há alguns anos quando a vida me amadureceu o sentimento.

    Nele enterro aqueles que matei, ou seja, aqueles que para mim deixaram de existir, morreram: os que um dia tiveram a minha estima e perderam.

    Quando um tipo vai além de todas as medidas e, de fato, me ofende, já com ele não me aborreço, não fico enojado ou furioso, não brigo, não corto relações, não lhe nego o cumprimento.

    Enterro-o na vala comum de meu cemitério – nele não existe jazigo de família, túmulos individuais; os mortos jazem em cova rasa, na promiscuidade da salafrarice, do mau caráter.

    Para mim o fulano morreu, foi enterrado; faça o que faça já não pode me magoar.

    Raros enterros – ainda bem! – de um pérfido, de um perjuro, de um desleal, de alguém que faltou à amizade, traiu o amor, foi por demais interesseiro, falso, hipócrita, arrogante – a impostura e a presunção me ofendem fácil.

    No pequeno e feio cemitério, sem flores, sem lágrimas, sem um pingo de saudade, apodrecem uns tantos sujeitos, umas poucas mulheres; uns e outras varri da memória, retirei da vida.

    Encontro na rua um desses fantasmas, paro a conversar, escuto, correspondo às frases, às saudações, aos elogios, aceito o abraço, o beijo fraterno de Judas.

    Sigo adiante, o tipo pensa que mais uma vez me enganou; mal sabe ele que está morto e enterrado”.

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    1. Que recorte maravilhoso de um dos gênios da raça! Perto dele, minha crônica se ajoelha e agradece a comparação, Isa. Mas é carga demais pro meu bagageiro, amiga.

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  2. Você ombreia a Jorge Amado caro amigo

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  3. Brilhante,mais uma vez. Feliz 2026 reencontrando amizades que se medem pelo sorriso no seu coração

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  4. Fechaste o Ano com chave(ops! letra) de ouro, meu caro Hayton!!!
    Tenho me valido, quase sempre, do que diz a canção do Oswaldo Montenegro....... por vezes sequer chego ao décimo dedo das mãos.
    Quanto a tipologia de "velhos amigos" todas bem encerradas nesta sua belíssima crônica, aconteceu como algo bem parecido uma delas.
    Certo dia, voltando do Fórum Judicial, passei num Shopping para um café com minha esposa. Eu estava trajado com roupa social e blazer, sem gravatas, e calçando sandália de couro - passava por enfermidade incômoda nos pés - e utilizando uma bengala de apoio que mandei fazer de sucupira.
    Eis que me aparece um colega de Serviço Público, que há anos não nos víamos, e ao seu modo[dele] se dirige a mim, até demonstrando certa alegria
    - rapaz há quanto tempo, nem imaginava lhe encontrar mais neste mundo! Você tá acabado, usando bengala, barba grande, virou esquerdista?não acredito?!.....
    - cumprimentei-o bem secamente, como mereceu.....
    Ele olhou nos meus pés, viu as sandálias e assacou:
    - não, isso não...... não admito mesmo. Rapaz você é um auditor (e eu silenciosamente dizia: grande merda rsrsrs) vestido num elegante blaze deste e de alpercatas? Não admito mesmo.
    Não tive saída, respondi na bucha:
    - colega, que trabalha com os pés calçados à caráter é Vini Junior, é Haaland, no passado Rosário, Zico, Pelé.... o trabalho que faço ou fiz eu utilizo o cérebro que, feliz ou infelizmente, você não o vê.
    Foi o bastante para que a prosa se encerrasse.
    Felicidades mil no Novo Ano que chega, com imensa inspiração para nos presentear com crônicas frugais e belas como esta. Deus ilumine sua vida, de seus familiares e de seus leitores
    tonhodopaiaia.org

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  5. Estamos todos em uma jornada. Alguns já retornaram, outros ainda seguem pelo caminho. Ao longo dessa viagem, encontramos muitas pessoas; algumas acabam sendo promovidas ao posto de amigas. São elas que tornam o percurso mais leve, interessante e prazeroso — as verdadeiras, as que realmente se importam.
    E as outras? Com elas, convivamos da melhor maneira possível; quem sabe um dia também não sejam promovidas. O importante é aproveitar o trajeto da melhor forma.
    E isso, Hayton: é essencial preservar os bons amigos, aqueles que conquistaram esse lugar especial. Os demais não foram ruins; apenas fizeram parte do caminho.

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  6. Que crônica maravilhosa! Sua sensibilidade é imensa, e você tem o dom de traduzir sentimentos complexos com suavidade. Em 2026, sigamos firmes, valorizando e priorizando as boas amizades. Guardo comigo a sua frase: "Nem todo reencontro merece ressurreição".
    Simbora viver momentos felizes!
    Feliz 2026!

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  7. Excelente! Não apenas porque relembra que todos temos aquele baú das agendas c/ validade vencida... mas, porque temos a felicidade de ter aqueles poucos "...capazes de atravessar décadas sem perder o sentido..." e que, mesmo que se passe um tempo sem contato próximo, o reencontro enche nosso peito de alegria e aquece o coração!
    Hayton, obrigado pelo rico material que nos proporcionou ao longo de 2025! Um 2026 de boas energias para você, família e todos demais leitores destes encontros de reflexão e lazer.

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  8. Obrigada pelo presente de Ano Novo. Desejo um feliz 2026 com muita paz , saúde e amor. E que os amigos verdadeiros estejam sempre presentes.

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  9. Você descreve com maestria as várias facetas que compõe a partitura da trilha sonora do existir. Assim como nas música têm de todo tipo de notas, das mais agudas de ouvir como a Lá 6 SFZ, às doces como a Lá com sétima e trecdecima bemol, o ecossitema humano é bem como descreveu. A questão que não quer calar, é que o lugar de onde se ancora nossa existência, se nas estrelas, ou nas rochas, vai determinando o que vamos nos tornando. A idade longeva é um antecipador de resultados emocionais. Se era crítico, e não se trabalhar, vai virar um porre. Se era pessimista, e não se trabalhar, vai virar um inferno na vida de quem rodeia. Se era um acumulador, enão se trabalhar, vai viver em função de cada vez mais acumular. Uma visita dessas pessoas aos famosos garage-sale de Brasília por ser melhor que anos de cursos e terapia. Você entra naquelas apartamentos, da fundação de Brasília, na Asa Sul, ou nas casas do Lago Sul, e tudo está à venda. Nem as medalhas que a pessoa amealhou e guardava com tanto zelo escapam da precificação. Ali se percebe, de forma magistral, que tudo é vaidade. E tudo vai virar pó, ou ser vendido, qubrado, doado ou perdido, mais à frente. O que fica mesmo são pessoas-irmãs que vamos cultivando. Pessoas que se importam com viocê. Pessoas para as quais você faz a diferença. O resto é conversa pra boi dormir, sobre pegações, luxos cobiçados de uma gente que precisa de etiquetas para finalmente se sentir existindo. E, que pena!

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  10. Bom dia, caríssimo amigo Parahyba 🫶
    .
    Essa crônica de hoje me fez caminhar centenas de léguas para trás e, assim, revisitar largas passagens da minha vida — especialmente da minha trajetória no trabalho.
    Vi-me em vários pontos descritos pela sua genialidade de excelente costurador de retalhos.
    A participação da Isa iluminou, com um bom candeeiro, tudo o que você contou e do que eu sou sofrida prova ocular.
    Não me lembrava dessa joia esculpida pela genialidade do nosso Jorjão, baiano dos tempos em que nós, seus conterrâneos, garganteávamos com orgulho a nossa baianidade.
    Por derradeiro, e inspirado por você, pela Isa e, fragorosamente, pelo nosso amado Jorge, neste mesmo minuto concluí o muro do cemitério onde serão sepultados os calhordas.
    Agora vou decorar esse campo “santo” com mandacaru faxeiro, cabeças-de-frade e algumas mudas de favela, de espinhos exageradamente crescidos.
    Pronto. Estará concluído o campo santo para os meus “amigos” nada santos.
    Desejo a você, à sua família, à Isa e a todos os seus entes queridos um feliz 2026 — e, com os inimigos por perto, assim poderão ser vigiados.

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