MEIA DÚZIA DE DIAMANTES
Hayton Rocha
O Vasco alcançou no último domingo uma vitória daquelas que não cabem apenas nas estatísticas, mas se alojam na memória como retrato inesperado da vida. Em pleno Morumbis, diante de mais de 54 mil testemunhas, o time carioca atropelou o Santos de Neymar por 6 a 0 – cinco gols em 16 minutos –, lavando a alma de uma torcida acostumada mais com o fel dos fracassos que com o mel das conquistas.
Em algum canto do firmamento, Pelé e Roberto Dinamite devem ter se entreolhado, incrédulos, como dois semideuses apanhados de surpresa pelo improviso dos mortais.
O primeiro tempo já trazia presságios de tsunami. Lucas Piton abriu o placar aos 17 minutos e, a partir dali, o Vasco tratou os contra-ataques como um cronista que descobre a palavra certa a encaixar: repetiu, insistiu, até se dar por satisfeito com o enredo. O Santos ainda ensaiou esperança com um pênalti, mas o VAR — essa praga eletrônica que anda matando de ansiedade o torcedor e transformando comemoração em gagueira — anulou o lance por impedimento na origem.
Na segunda etapa, não houve piedade. David acertou um voleio de cartilha, Coutinho ampliou com a serenidade de quem assovia um sambinha, Rayan converteu um pênalti que ele mesmo cavou, Coutinho voltou a marcar e Tchê Tchê fechou a conta abrindo um sorriso largo. Foi um massacre com direito a nota de rodapé na história.
A torcida santista, ferida na própria honra, virou-se de costas para o espetáculo. Gesto silencioso e ensurdecedor. Não era só protesto: era luto público por um time que, no segundo tempo, assistiu ao adversário dançar sem jamais encontrar o compasso. No fim do jogo, Neymar, chorando e sendo consolado por Fernando Diniz — treinador vascaíno — parecia a encarnação do improvável: a estrela mundial, reduzida a criança perdida no recreio, amparado pelo professor.
Confesso: fazia muito tempo que não via um nocaute tão impiedoso numa luta entre dois gigantes. Lembro de quando, aos 14 anos, vi pela TV o Botafogo aplicar uma indigesta meia dúzia no Flamengo, presente de aniversário de 77 anos do rubro-negro. Jairzinho, que marcou três vezes, fez um deles de letra que mereceu uma manchete inesquecível: “Na década da alfabetização, o Furacão mete um gol de letra no Flamengo.”
Nove anos depois, em 1981, o Flamengo de Zico devolveria a fatura: 6 a 0 no Botafogo, no “Jogo da Vingança”. Eram tempos em que a rivalidade ainda tinha certo romantismo — o ódio ficava restrito às arquibancadas, e a vingança podia esperar nove anos. Desde então, raras vezes vi um gigante machucar o outro com tamanha crueldade. Até o último domingo.
Porém o que mais me chamou atenção não foi o placar, e sim uma coincidência pessoal. Naquela tarde, recusei o convite de minha neta para acompanhá-la na compra de material escolar, aqui no hemisfério Norte. Foi por ela que, onze anos atrás, acelerei a aposentadoria para ajudá-la nos primeiros meses de vida. Foi a ela também que ensinei a contar nos dedos ao som da cantiga infantil: “Mariana conta 1, é 1, é Ana, viva Mariana...” — até o 10, como se a vida coubesse inteira na soma desses números.
Expliquei que ficaria em casa para ver o Vasco jogar, mesmo temendo um castigo dos céus. Afinal, Neymar estava em campo, buscando provar que ainda tem querosene na lamparina para voltar à Seleção. O Morumbis lotado parecia palco ideal para sua apoteose, e eu já me preparava para o possível vexame. Mas quando minha neta voltou, feliz, trazendo cadernos e livros, eu, incrédulo, revia o placar de 6 a 0. Foi inevitável pensar numa paródia da cantiga: “E o Vascão já fez 1, é 1... E o Vascão já fez 2, é 2...” — até chegar ao 6. Não me atreveria a cantar até 10, pois aí já seria esculacho.
O bom de ser vascaíno ultimamente é não carregar mais a ilusão de levantar taças todo ano. Aprendemos a celebrar pequenas conquistas, como quem guarda conchinhas na beira da praia, sabendo que a maré mais cedo ou mais tarde levará tudo embora. Mas domingo não foi conchinha: foi pérola rara, reluzindo como meia dúzia de diamantes.
Quando minha neta voltou da papelaria, não fui eu a ensiná-la de novo a contar. Mas foi ela quem me fez lembrar: às vezes a vida também sabe somar seis, mesmo quando muitos só esperam zero.