setembro 24, 2025

Cochilo da tarde

Ilustração: Uilson Morais (Umor)



COCHILO DA TARDE
Hayton Rocha


Sou de uma família de dorminhocos diurnos. Herdamos, uns mais, outros menos, a arte de pegar no sono logo após o almoço, como quem cumpre um ritual milenar. Exceto meu pai e um de meus irmãos, que já não estão entre nós, todos nos entregamos ao cochilo da tarde como devotos ajoelhados diante do altar.

 

Lá em casa, o costume era sagrado: levantava-se da mesa, escovava-se os dentes e pronto — em menos de cinco minutos já se estava navegando nos mares de Morfeu, por uns 45 minutos. Não havia telejornal da tarde para disputar com a rede ou o travesseiro.

 

Nunca foi preguiça, claro: era método. Talvez venha daí o gosto da família em contar histórias. Minha mãe, aos 86 anos — cujo cochilo vespertino passa de uma hora —, continua a nos embalar com casos de infância, quase sempre terminando com o olhar perdido no nada, como quem vasculha o que resta no próprio arquivo interno. O cochilo sempre foi a senha para soltar a imaginação.

 

A ciência, com sua mania de explicar obviedades, apenas confirmou depois o que já sabíamos por intuição: dormir no meio do dia não é vagabundagem, é investimento com bom retorno. Pesquisadores analisaram milhares de pessoas e concluíram que cochilar regularmente protege o cérebro contra a ferrugem do tempo — demência, diabetes, hipertensão. Minha mãe não sabia de nada disso, mas defendia o cochilo com argumento de especialista: “dorme que passa”.

 

A soneca tem efeitos que fariam inveja a qualquer laboratório farmacêutico: domina o estresse e evita acidentes. Os alemães, metódicos até para dormir, comprovaram que 45 minutos de descanso multiplicam por cinco a memória. A NASA, sempre preocupada em não deixar astronauta apertar botão errado no espaço, também estudou: 26 minutos de sono bastam para turbinar atenção.

 

Sou capaz de apostar que, se Armstrong fosse brasileiro e tivesse bem relaxado antes do pouso na Lua, teria descido assoviando o chorinho Carinhoso, de Pixinguinha, como quem celebra não só a conquista, mas também a boa soneca que viria mais adiante.

 

Em apenas 10 minutos, o cochilo reduz a adenosina, aquela molécula que nos deixa arrastando sandálias pela casa. Resultado: o mau humor desaparece quando a resiliência emocional toma assento. A pessoa acorda capaz até de suportar reunião com gente prolixa ou metida a saber de tudo.

 

Não à toa, para crianças a soneca é tão vital quanto o leite materno. Sem ela, o sistema nervoso se revolta e surgem birras dignas de espetáculo teatral. Estudantes, por sua vez, descobrem que cochilar é como trocar a bateria do celular: descarrega preocupações e recarrega a capacidade de aprender.

 

Claro que há limites. O ideal, dizem, é cochilar entre 13h e 15h, por 45 minutos. Mais que isso pode azedar o sono da noite e transformar o dorminhoco em zumbi — se bem que minha mãe discorda disso, segundo ela com pleno conhecimento de causa. Eu, por via das dúvidas, acrescentaria uma cláusula particular: “nunca abrir mão do cafezinho após o almoço”. Contraindicação dos cientistas, talvez, mas dogma no altar de meus afetos.

 

Porém há um detalhe que a ciência, com toda a sua estatística, não explica. O cochilo não é só sobre corpo e cérebro: é também sobre alma. É uma pausa litúrgica no meio do dia, como se a vida precisasse de dois goles de água fresca no intervalo entre o primeiro e o segundo tempo. Naquele silêncio, o relógio deixa de mandar, a rotina dá um refresco e a gente volta a ser apenas humano — passageiro, sonhador, vulnerável.

 

Eu mesmo, por muito tempo, desconfiei de que o hábito pudesse prejudicar o trabalho. Cortei o mal pela cepa, há pouco mais de uma década: me aposentei. Desde então sigo fiel aos ritos da infância. Como dizia minha mãe, “dorme que passa”. Passa mesmo: a agonia das urgências, o estresse, a ilusão de que somos indispensáveis.

 

Cochilar não é luxo, é resistência. É meu protesto contra a pressa desumana que está em todos os lugares e minha reconciliação diária com o tempo, que teima em querer escapulir por entre os dedos. 

 

Porque enquanto houver gente dormindo no meio do dia, haverá quem acredite que a vida renasce nessas pequenas pausas — e que até os santos, quando ninguém vê, tiram seu cochilo da tarde entre um milagre e outro. 

setembro 17, 2025

Selva candanga


SELVA CANDANGA 
Hayton Rocha

De volta a Brasília, não me espanta a notícia de que uma onça-pintada resolveu visitar um condomínio do Jardim Botânico. O flagrante ocorreu por volta das sete da noite de sábado, 13 de setembro, quando uma senhora, 46 anos, descansava na varanda depois de uma tarde abafada e seca. O silêncio foi rompido pelo estalar pesado de folhas. Pensou ser vizinho, acendeu a lanterna e deu de cara com o felino. O coração galopou, mas a onça seguiu elegante, indiferente, como quem apenas confere se ainda resta espaço para caçar no seu habitat que o bicho-homem insiste em queimar a cada setembro.




No dia seguinte, lá estavam Batalhão Ambiental, Ibama e Ibram, marchando em fila como formigas alarmadas. Carros oficiais, coletes e rádios chiando. Prometia-se capturar a “invasora”, que só buscava apurar o que sobrou depois que incêndios expulsaram as presas da mata. Pouco adiantou o veterinário no telejornal Bom Dia DF lembrar que queimadas empurram os bichos para além de seus territórios. Diante do calor e da fumaça, qualquer criatura — inclusive nós — amplia o raio de caça em busca de proteína para seguir respirando.

Não me surpreendo. Brasília sempre foi um zoológico a céu aberto. Algumas espécies já fazem parte do cotidiano a ponto de ninguém mais reparar: emas atravessando o Eixo Monumental em fila de pedestres, capivaras ruminando nas margens do Lago Paranoá como se fossem vacas, e, sobretudo, certos animais de paletó e gravata — esses, sim, predadores de verdade, com instinto indomável.

As raposas ocupam o primeiro plano. Farejam verbas secretas dos orçamentos públicos como se fossem frangos assados esquecidos no plenário. Astutas e felpudas, multiplicam-se como lebres em ritmo acelerado, mordendo pelas beiradas até imobilizar o Congresso. Têm o talento de parecer discretas, mas deixam sempre o rastro de penas espalhadas pelo chão.

Outros, coitados, estão à beira da extinção. O tucano, de bico altissonante e cores chamativas, virou peça de museu. Restam exemplares isolados em estufas, sustentados por uma classe média que se evapora com a divergência ideológica exacerbada. Os sobreviventes batem asas sem rumo, mais próximos da arrogância do que do tucanismo intelectual de três décadas atrás. É triste ver um pássaro que já simbolizou falas iluminadas agora grasnar em sintonia com antigos discursos.

O leão, por sua vez, adaptou-se como se fosse nativo. Originário da África e da Ásia, encontrou aqui território fértil: crava garras e presas no couro de cada assalariado, abocanhando quase 1/3 dos salários em porções mensais e sucessivas. É o Imposto de Renda travestido de rei da selva, que ruge cada vez mais alto. A diferença é que, na savana, ele caça para sobreviver; por aqui, caça inclusive para custear privilégios classistas.

Já algumas antas, lentas e preguiçosas, instalaram-se por estas bandas desde os anos dourados. São vistas em antessalas de gabinetes, pastando memorandos e portarias com a serenidade de quem não tem predador natural. Se um dia alguém tentar reintroduzir vida inteligente nesse ecossistema, deverá ser recebido com o mesmo espanto de quem solta um macaco com um revólver carregado em meio a passeata ou procissão.

O jumento é outra tragédia. O Brasil anda exportando seu couro para virar ejiao, gelatina chinesa de uso milenar — embora sem eficácia comprovada — para tratar de anemia, impotência, insônia e vertigem. Resultado: o rebanho caiu mais de 60% em menos de uma década. Mas, em Brasília, os que restam são bípedes — esses, sim, ameaçam a população. Caminham em bandos, carregando balaios de promessas que nunca chegam ao destino.

E a lista não para: aranhas burocráticas tecem processos intermináveis, hienas sardônicas se banqueteiam do infortúnio alheio, répteis de olhar frio arrastam-se pelos corredores de estatais. À noite, piranhas maquiadas rondam os bares da Asa Sul; de dia, papagaios repetem frases prontas nas tribunas. Pavões desfilam diante das câmeras, em busca de 15 minutos de fama, enquanto morcegos sugam lentamente recursos de escolas e hospitais.

Por isso, não me espanta a notícia da onça-pintada que apareceu no Jardim Botânico. Ela apenas cumpre o destino dos bichos: sobreviver. O que me inquieta são os animais vestidos de alfaiataria e sapatos engraxados, prontos para posar em palanques e plenários enquanto devoram, com fome de anteontem, o futuro de quem os sustenta. Na selva candanga, o rugido mais perigoso não vem da mata, mas ecoa dos corredores, em forma de cochicho ou discurso ensaiado.

setembro 10, 2025

Cabeças à venda


CABEÇAS À VENDA

Hayton Rocha

 

Semana passada, um português chamado João Paulo Silva Oliveira resolveu brincar de inquisidor digital. Armado não de espada, mas de um celular e de uma conta no TikTok, ofereceu 500 euros por cada cabeça de brasileiro em território luso — decepada no pescoço, como se fossem melancias maduras à beira da estrada. Na cotação do euro, cerca de 3.200 reais a unidade. O vídeo sumiu, a conta também, mas o cheiro azedo de racismo ficou impregnado no ar, como peixe esquecido no balcão de uma padaria.


Foto reprodução/TikTok.



A padaria, aliás, foi palco indireto. O homem trabalhava numa em Aveiro. Quando a história explodiu, o estabelecimento correu para lavar as mãos, postando no Instagram sua bula de boas intenções: diversidade, inclusão, respeito. Como se fosse preciso explicar que não se paga recompensa por cabeças humanas desde Lampião e Maria Bonita, decapitados em 1938 na Grota do Angico, no Sertão sergipano, e exibidos como troféus em cortejo por cidades nordestinas até serem levados para Salvador, na Bahia.


Mas não é de hoje que pedras provocam tropeços na relação entre os dois lados do Atlântico. Em 2019, na Faculdade de Direito de Lisboa, expuseram um caixote de pedras de calçada com cartaz: “Grátis se for para atirar a um zuca”. A subdiretora da instituição, guardiã da legalidade, justificou como “liberdade de opinião, autocrítica, humor e sátira”. Traduzindo: a pedra virou piada acadêmica, e o alvo que se dane.


Esses episódios parecem isolados, mas possuem raízes mais profundas. A história luso-brasileira sempre oscilou entre afagos e tapas. E quando não voam pedras, voam caricaturas. De um lado, o “portuga” do bigode grosso e do lápis na orelha, ridicularizado em nossas piadas como padeiro de raciocínio curto. Do outro, o “zuca” barulhento, malandro, usurpador de vagas, retratado em terras lusas como hóspede inconveniente que nunca vai embora. É como se as duas nações, presas a velhos ressentimentos, trocassem farpas para esquecer que são feitas do mesmo barro, crias da mesma costela, com a poeira de impérios falidos.


No fundo, herdamos um ao outro — junto com as piadas, a língua, o tempero da saudade e até a sífilis, como brincaram Chico Buarque e Ruy Guerra em “Fado Tropical”. Portugal foi o padrinho severo, que nos batizou à força e depois partiu para cuidar da própria sobrevivência na Europa. O Brasil, o filho imberbe que ainda acha que seria potência se tivesse nascido de pais ingleses, como os americanos. O resultado? Uma relação mal resolvida, que mistura ironia, sarcasmo e sopapos.


É claro que a maioria dos portugueses não pensa como João Paulo, o carrasco do TikTok com nome de santo papa. A maioria acolhe, divide empregos e mesas, vende sonhos embalados em bacalhau. Também é verdade que muitos brasileiros chegam a Portugal carregando a caricatura do padeiro analfabeto e se surpreendem ao encontrar um europeu culto, poliglota, muito além da imagem guardada. O choque cultural é mútuo: um espera encontrar o amigo da esquina, o outro enxerga o invasor da rua.


Racismo ou xenofobia não se resolve com estatísticas, mas vale lembrar: são mais de meio milhão de brasileiros vivendo em Portugal. Raízes que atravessaram o mar e florescem em outra terra. Histórias que poderiam formar uma ponte sólida, mas que às vezes se transformam em muros baixos, fáceis de escalar com pedras na mão.


O problema é que sempre haverá quem prefira a pedra ao abraço. Para esses, é bom lembrar: se fosse para medir o preço de uma cabeça, o mercado estaria em crise. Algumas não valem nem o valor do boné que carregam. Outras, raras, não têm preço, porque guardam sonhos e utopias.


Talvez o que falte mesmo seja revisitar o “Fado Tropical”, que reconhece no brasileiro um sentimental justamente por carregar no sangue o lirismo lusitano. Lirismo que anda escondido debaixo de camadas de ódio gratuito e memes virulentos. O ideal, como canta Chico Buarque, é que este país se torne um imenso Portugal — não no sentido de se apequenar, mas de assumir que somos parentes condenados a conviver, como toda família que se desentende no almoço de domingo, mas volta para a mesa de jantar quando alguém pede perdão.


E que cada um proteja bem a sua cabeça sobre o pescoço. Vale mais inteira do que precificada em euros. Até porque, se fosse para vender, não haveria padaria no mundo capaz de dar conta da fila de trocas: cabeças ocas não faltam, de Brasília a Lisboa.


Melhor trocarmos pedras por versos, porque só a poesia impede que o sangue esfrie e coalhe.

setembro 03, 2025

Repetir pra quê?

REPETIR PRA QUÊ?

Hayton Rocha



Um dos direitos sagrados de chatos como eu é implicar com o que, para uns, passa despercebido, mas para outros soa como tortura. No topo da lista está a mania de certos comunicadores de rádio e TV, gurus corporativos e influenciadores digitais de encher nossos ouvidos de tautologias.


Falo daquela repetição preguiçosa de ideias com palavras diferentes, mas de mesmo sentido. Clássicos como “criar do zero uma novidade inédita” e “voltar de novo para casa” já nem causam espanto. O problema é a “criatividade” dessa turma, que parece inesgotável. Volta e meia ouço disparos como “adiar para depois” ou “todos foram unânimes” e ninguém nem mais franze as sobrancelhas. Virou vício de linguagem, desses que se repete por pura economia de pensamento.



Ilustração: Uilson Morais (Umor)


No dia a dia, o repertório se amplia sem pudor: “brinde grátis”, “promoção válida somente durante o período”, “reserva antecipada”, “resultado final”. O aplicativo promete “rota alternativa diferente”, enquanto o síndico do prédio avisa no elevador que “o acesso de entrada estará liberado”. Tudo muito claro, claríssimo.


Para ranzinzas como um velho amigo meu, isso provoca azia e coceira, além de uma vontade quase incontrolável de destilar ironia nas redes sociais — o que prudentemente evita, temendo ampliar o esgoto ali instalado. Ele já pensou até em gravar vídeos indignados, mas desistiu. Prefere sugerir que os culpados passem horas em pé numa reunião corporativa, sem pausa pro cafezinho.


Ali, a proliferação de redundâncias beira o delírio: “expectativas futuras”, “seguir adiante com a continuidade do projeto”, “metas a serem alcançadas”. Tudo servido em palavrório que lembra algodão-doce: bonito, vistoso, mas some na mão se você aperta.


Em seminários de liderança, então, é praga disseminada de controle improvável. “Planejar antecipadamente”, “consenso geral”. O auditório aplaude como se tivesse descoberto o fogo, esquecendo que, na prática, a coisa queima faz tempo. Há até quem proponha um “manual de boas práticas corretas” para proteger a “cultura organizacional da empresa”. Dá vontade de pedir legenda simultânea.


Mas se nos auditórios já se aplaude o óbvio, na vida real o espetáculo não é menor. Prova disso é uma mensagem que meu amigo guardou, recebida de um conhecido — cujo nome não me revelou por caridade, segundo afirma. Começa assim: “Anos atrás, quando ainda era inexperiente, percebi que a vida, cheia de surpresas e imprevistos, ensina lições que são repetitivamente reincidentes”. Isso mesmo: “repetitivamente reincidentes”.


O cara jurava ter aprendido essa “grande verdade” ao enfrentar um dilema: escolher entre duas alternativas incertas e, ainda assim, ficar em dúvida — porque certeza, claro, só depois.


Numa manhã de domingo, resolveu planejar o futuro — seria curioso planejar o passado. Queria um emprego fixo, com salário e estabilidade — como se alguém sonhasse com o contrário. Procurou um vereador que lhe garantiu, com “certeza absoluta”, boas oportunidades. Já no presente, precisava elaborar um plano estratégico bem fundamentado, com argumentos sólidos — porque plano raso e argumento gasoso ninguém respeita mais.


Foi então a um banco. O gerente explicou que era preciso estabelecer um “elo de ligação” entre receitas, prestações e juros. Caso contrário, comprometeria a capacidade de pagamento — quem diria, hein!? Na planilha, recomendou indicadores para acompanhar “a evolução crescente dos resultados”, de preferência em gráficos “visuais”, que são sempre mais fáceis de ver.


Cansado, adiou a “decisão definitiva” para o dia seguinte. Ao acordar, consultou o tio, conhecido por frases de efeito. E ouviu a pérola:
— Meu sobrinho, a vida é um ciclo sem começo nem fim. O mais importante é agir com prudência para aumentar as chances de acerto. Quase tudo na vida se divide em duas metades iguais.


O homem falava como quem recita horóscopo de jornal: cabe em qualquer situação, serve para todo mundo e, no fundo, não diz nada. Ainda assim, o sobrinho saiu convicto: precisava tomar uma decisão definitiva. Voltou ao banco, assinou os papéis e pegou o empréstimo. Restava torcer para que sua ideia inovadora desse certo — e não virasse um fracasso retumbante.


Entre altos e baixos, disse ter aprendido uma grande lição: nada é garantido — exceto a morte e os impostos, como já disseram antes —, mas é preciso lutar com todas as forças, já que nada vem de graça.

Diz meu amigo que pensou em perguntar, mas silenciou: e se der errado? Bem… sobra o aprendizado. E a dívida, claro.


Depois de ouvi-lo, concluí: nem com ansiolítico encararia hoje um guru corporativo oferecendo um “framework inovador de repetição estratégica”, garantindo que iria mudar minha vida.


Porque a tautologia já virou modelo de negócio: quanto mais se repete, mais parece profunda. Mas é assim que a língua murcha, o pensamento se rende — e a gente segue pagando caro por vento embalado como se fosse sabedoria de primeira prateleira. 


agosto 30, 2025

Tentar, eu tentei


TENTAR, EU TENTEI

Hayton Rocha

 

O noticiário estampou em letras frias: Luis Fernando Verissimo, 88 anos, o maior cronista brasileiro vivo — e talvez também o maior entre os mortos, ouso dizer — estava internado no Centro de Terapia Intensiva do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. O boletim médico foi curto: “estado grave, recebendo todas as medidas de suporte necessárias”. Em outras palavras: a medicina joga tudo o que sabe contra o tempo, mas o tempo não costuma perder tempo.


Ilustração: A. Fonseca


É o tipo de notícia que azeda o dia, dessas que marejam os olhos por três segundos. E se o silêncio vencer de vez a voz daquele que me ensinou que escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo? O cara que fez do adjetivo uma piada, do ponto-e-vírgula uma irreverência, da crônica um sopro de humanidade? Dói imaginar o cronista reduzido a poucas palavras em inglês, quando o português inteiro lhe deve reverência de joelhos.

Sempre admirei a coragem dele em rir do mundo como quem sopra fumaça de charuto no rosto de uma “otoridade constituída”. Millôr Fernandes dizia que “o humor é a mais séria das atitudes humanas”. Verissimo confirmou isso em cada texto: desmontava pompas infladas, transformava o óbvio em gargalhada ou sorriso comedido. Escrevia como quem toca jazz: algumas notas bastavam, o resto era improviso cúmplice do leitor.

A vida, no entanto, resolveu desafinar. Desde 2020, quando encarou um câncer na mandíbula, coleciona sequelas como troféus indesejados: AVC, coração falindo, Parkinson rondando. Parece tragédia, mas contada por ele seria cômica: “passamos a vida inteira nos preparando para a nossa morte e quando ela vem não podemos assistir”.

O Brasil lê melhor porque Verissimo escreveu. Num país que prefere rolar a telinha do celular a folhear um livro, ele mostrou que crônica não precisa ser sermão nem tratado. “O importante é comunicar”, repetia. E comunicava — até quando parecia não dizer nada de novo: “Ninguém é o que pensa que é, muito menos o que diz que é. Precisamos da complicação para nos definir. Ou seja: ninguém é nada sozinho, somos o nosso comportamento com o outro”.

Eu, cronista de série “B”, sempre tive nele uma bússola. Quis imitá-lo, fracassei quase sempre, mas fracassar tentando já é um privilégio. Minha ousadia foi beber em algumas das mesmas fontes: Clarice, Drummond, Hemingway… e Millôr, soprando no ouvido que o humor salva vidas — ou pelo menos torna suportável perdê-las.

Verissimo também teve um professor improvável: Pelé. O rei ensinou que cada jogada só faz sentido se mirar no gol. Escrever, para ele, era isso: driblar só o necessário e chutar seco, no canto. Se no caminho saísse algo arrebatador, tudo bem — mas que parecesse simples. É lição implacável para nós, escribas que insistimos em firulas quando basta um bico, rasteiro.

Há um pecado que ele nunca perdoava: a redundância. Repetir-se é confessar preguiça. Ironia das ironias: neste momento em que escrevo, repito o que milhares dizem — que o país ficará órfão quando a tinta de Verissimo secar. Mas é redundância inevitável: de que outra forma dizer?

Você lembra do pai dele, Érico, a quem devemos O tempo e o vento? Pois agora é o tempo que sopra contra o filho. É o vento que ameaça apagar a chama. Mas para nós, leitores, não haverá epitáfio. Depois de mais de 80 livros e incontáveis personagens, ainda falta a última crônica: a de se despedir rindo da própria despedida.

Talvez essa seja sua maior lição: toda vida é obra inacabada. O cronista não escreve para concluir, mas para deixar arestas soltas, como quem acena da janela e some na esquina. E se a morte resolver levar Verissimo, que ao menos tenha a decência de rir com ele — porque nós, certamente, choraremos sorrindo.

Eu nunca consegui praticar tudo que ele pregava. Mas tentei. E hoje, diante do silêncio, resta-me um desejo infantil: o gol que falta. Que ele acorde, pegue o lápis e rabisque mais uma daquelas frases que parecem simples, mas carregam o peso de uma vida inteira. Se não for possível, que ao menos saiba — de algum jeito — que seguimos tentando escrever claro. Certo, já é pedir demais.

Tentar, eu tentei. Torcer, mestre, eu torci, mas não deu. Se bem que, como você pontuou outro dia, a gente só sabe até onde pode ir quando já foi.

agosto 27, 2025

A coleira invisível

A COLEIRA INVISÍVEL 

Hayton Rocha

 

Terça-feira da semana passada, sete e meia da manhã. Ouvi de longe ela conversando com a amiga por videochamada. A voz era trêmula, mas com aquele tom de quem pede socorro e, ao mesmo tempo, espera compaixão:

– Depois do que passei, já dei por encerrados os Halloweens deste e dos próximos anos! Quase infarto ou sofro um AVC...

– O que aconteceu, criatura? – perguntou a amiga, já imaginando luzes e sirenes cortando o ar, ambulância, bombeiro e polícia disputando espaço na rua.

– O “Velho” iria participar de uma reunião. Chamei o neto pra caminhar, ele não quis. Fui sozinha. No meio do caminho, dois cães enormes – um boxer e um rottweiler – me atacaram, latindo alto e salivando. Paralisei. Só deu tempo virar de costas e rezar três segundos pra Nossa Senhora de Guadalupe levar minha alma pro céu, sem escalas.



Ilustração: Uilson Morais (Umor)

Ouvindo aquilo, só não me assustei porque ela estava ali a poucos metros, vivinha, contando o ocorrido à amiga. Seria castigo cruel: logo ela, que cuidou de Lobão – um poodle cardiopata e nefropata que nos fez companhia por 18 anos – até o último suspiro, com direito a funeral com “honras de Estado”. 

 

E ela prosseguiu, já convertendo o susto em roteiro de cinema:

– As mãos tremiam como se eu estivesse batendo palmas. Quem já sonhava com a mala nova da viagem de volta ao Brasil... Pensei no pior. Não precisaria mais de mala nenhuma: voltaria noutra, no bagageiro do avião...

 

Do outro lado da tela, a amiga fazia sinais da cruz como se a internet transmitisse bênção em tempo real. Eu, de longe, sorri diante do exagero. A imaginação não tem limites: basta um latido mais grosso e já escolhe a foto do velório, a roupa e até o salmo da missa de sétimo dia.

 

Quando chegou em casa e contou o episódio, todos riram. Disseram que já conheciam as feras. São controladas por uma tal “cerca invisível”. Um fio enterrado no jardim transmite sinal para a coleira: primeiro um apito, depois um choque. Nada letal – ao menos para cães maiores.

 

Nós, humanos sem coleira, andamos cercados por barreiras invisíveis mais impiedosas: contas que nos assombram, impostos que não param de nos morder, senhas que escapam da memória. Às vezes penso que essa tecnologia devia ser adaptada para certos políticos: bastava um apito sempre que rondassem os cofres públicos e, se insistissem, o choque viria não da tomada, mas da vergonha acesa na ficha policial.

 

Ela, porém, não se deu por satisfeita. Quis voltar ao campo de batalha onde quase me deixou viúvo.

– E você, não diz nada? Não acha que deveriam nos avisar dessas feras assassinas?

– Nós não combinamos sair só após a reunião?

– Mas achei que você iria demorar!

– Pois é...

 

Logo ela, que gosta de caminhar de mãos dadas para evitar que uma queda nos entregue de bandeja à ortopedia – joelhos, tornozelos ou o que restar de nossas juntas enferrujadas. Eu, com mais de 100 quilos, não creio que seus 52 me segurem. Mas finjo que acredito em milagres.

 

Ainda assim, reconheço: mãos dadas é como corda de segurança no abismo. Não evita o salto, mas reduz o pânico. Caminhar lado a lado é nosso pacto contra a pressa do tempo – essa fera inquieta que avança sem apito, sem aviso prévio e sem coleira.

 

– Posso não ter sido engolida viva, mas quase tive um troço. Vamos lá comigo, agora... – propôs.

– Tudo bem, vamos. Vai ver essa onda de prender estrangeiro e deportar tá mexendo com o humor de alguns cães por aqui. 

– Lá vem você com suas...

– Calma! Agora você tá protegida pelo seu padroeiro oficial das caminhadas no vale de lágrimas.

 

E fomos. O sol já atiçava o verde das árvores do condomínio, e os cães, indiferentes, cochilavam sob a sombra, quem sabe rindo do susto que haviam causado.

 

Olhei para ela e pensei: há perigos maiores do que boxers e rottweilers. O maior deles é viver sem se dar as mãos, sem fé na coleira invisível que nos protege da pior das feras: a solidão. 

 

E ali, no intervalo entre o susto dela e minha bravata mal ensaiada, pensei: cães latem, mordem e se cansam. O tempo, não. É o único rottweiler que nunca cochila — e quando avança, não há apito, cerca, coleira ou oração que o segure.



 

agosto 20, 2025

Meia dúzia de diamantes

 

MEIA DÚZIA DE DIAMANTES

Hayton Rocha

 

O Vasco alcançou no último domingo uma vitória daquelas que não cabem apenas nas estatísticas, mas se alojam na memória como retrato inesperado da vida. Em pleno Morumbis, diante de mais de 54 mil testemunhas, o time carioca atropelou o Santos de Neymar por 6 a 0 – cinco gols em 16 minutos –, lavando a alma de uma torcida acostumada mais com o fel dos fracassos que com o mel das conquistas.

 


Em algum canto do firmamento, Pelé e Roberto Dinamite devem ter se entreolhado, incrédulos, como dois semideuses apanhados de surpresa pelo improviso dos mortais.

 

O primeiro tempo já trazia presságios de tsunami. Lucas Piton abriu o placar aos 17 minutos e, a partir dali, o Vasco tratou os contra-ataques como um cronista que descobre a palavra certa a encaixar: repetiu, insistiu, até se dar por satisfeito com o enredo. O Santos ainda ensaiou esperança com um pênalti, mas o VAR — essa praga eletrônica que anda matando de ansiedade o torcedor e transformando comemoração em gagueira — anulou o lance por impedimento na origem.

 

Na segunda etapa, não houve piedade. David acertou um voleio de cartilha, Coutinho ampliou com a serenidade de quem assovia um sambinha, Rayan converteu um pênalti que ele mesmo cavou, Coutinho voltou a marcar e Tchê Tchê fechou a conta abrindo um sorriso largo. Foi um massacre com direito a nota de rodapé na história.

 

A torcida santista, ferida na própria honra, virou-se de costas para o espetáculo. Gesto silencioso e ensurdecedor. Não era só protesto: era luto público por um time que, no segundo tempo, assistiu ao adversário dançar sem jamais encontrar o compasso. No fim do jogo, Neymar, chorando e sendo consolado por Fernando Diniz — treinador vascaíno — parecia a encarnação do improvável: a estrela mundial, reduzida a criança perdida no recreio, amparado pelo professor.

 

Confesso: fazia muito tempo que não via um nocaute tão impiedoso numa luta entre dois gigantes. Lembro de quando, aos 14 anos, vi pela TV o Botafogo aplicar uma indigesta meia dúzia no Flamengo, presente de aniversário de 77 anos do rubro-negro. Jairzinho, que marcou três vezes, fez um deles de letra que mereceu uma manchete inesquecível: “Na década da alfabetização, o Furacão mete um gol de letra no Flamengo.”

 

Nove anos depois, em 1981, o Flamengo de Zico devolveria a fatura: 6 a 0 no Botafogo, no “Jogo da Vingança”. Eram tempos em que a rivalidade ainda tinha certo romantismo — o ódio ficava restrito às arquibancadas, e a vingança podia esperar nove anos. Desde então, raras vezes vi um gigante machucar o outro com tamanha crueldade. Até o último domingo.

 

Porém o que mais me chamou atenção não foi o placar, e sim uma coincidência pessoal. Naquela tarde, recusei o convite de minha neta para acompanhá-la na compra de material escolar, aqui no hemisfério Norte. Foi por ela que, onze anos atrás, acelerei a aposentadoria para ajudá-la nos primeiros meses de vida. Foi a ela também que ensinei a contar nos dedos ao som da cantiga infantil: “Mariana conta 1, é 1, é Ana, viva Mariana...” — até o 10, como se a vida coubesse inteira na soma desses números.

 

Expliquei que ficaria em casa para ver o Vasco jogar, mesmo temendo um castigo dos céus. Afinal, Neymar estava em campo, buscando provar que ainda tem querosene na lamparina para voltar à Seleção. O Morumbis lotado parecia palco ideal para sua apoteose, e eu já me preparava para o possível vexame. Mas quando minha neta voltou, feliz, trazendo cadernos e livros, eu, incrédulo, revia o placar de 6 a 0. Foi inevitável pensar numa paródia da cantiga: “E o Vascão já fez 1, é 1... E o Vascão já fez 2, é 2...” — até chegar ao 6. Não me atreveria a cantar até 10, pois aí já seria esculacho.

 

O bom de ser vascaíno ultimamente é não carregar mais a ilusão de levantar taças todo ano. Aprendemos a celebrar pequenas conquistas, como quem guarda conchinhas na beira da praia, sabendo que a maré mais cedo ou mais tarde levará tudo embora. Mas domingo não foi conchinha: foi pérola rara, reluzindo como meia dúzia de diamantes.

Quando minha neta voltou da papelaria, não fui eu a ensiná-la de novo a contar. Mas foi ela quem me fez lembrar: às vezes a vida também sabe somar seis, mesmo quando muitos só esperam zero. 

agosto 13, 2025

João vive. Viva!

JOÃO VIVE. VIVA!
Hayton Rocha


Em Copacabana, onde a maresia corrói metais, mas conserva memórias, vive João Cândido de Lima Neto. Desde fevereiro de 1949, quando trocou o expediente no Banco do Brasil pelos passeios matinais entre o Forte e o Leme, João caminha pelas calçadas como quem relê capítulos de um livro cujo final só ele sabe. Já são 100 anos de prosa e verso — e o enredo, veja só, ainda se escreve com graça e espanto.

Figura carimbada do bairro, virou personagem de uma edição especial de O Globo sobre centenários cariocas. Ganhou manchete não apenas por atravessar um século em pé, mas por ser raiz invisível da cidade — dessas que não aparecem nas fotos, mas sustentam o que nelas floresce. Um alicerce discreto, carregando a alma do lugar sem alarde nem holofote.


Reprodução/O Globo - Fotografia: Guito Moreto

Na entrevista, falou da Copacabana quase rural, das noites apagadas pela guerra e do fiscal de praia que só liberava banho entre 14h e 16h. Imagine só: pedir licença para mergulhar no Atlântico! A paranoia era tanta que até o pôr do sol parecia precisar de crachá. João conta isso com um riso discreto, ajeitando o chapéu de feltro marrom, como quem carrega no bolso as chaves do tempo — e ainda sabe onde cada uma se encaixa.

Ele também coleciona apegos particulares — além de moedas raras e carrinhos em miniatura que já lhe renderam menções em revistas britânicas. Guarda gargalhadas de netos, buzinas de bonde, cafés na Colombo, memórias de Sinatra no Maracanã e sorrisos que ficaram presos nas entrelinhas do passado. Caminhou sozinho até os 95. Hoje, ladeado por cuidadora, desfila sua elegância centenária entre jornaleiros, chaveiros, porteiros e pipoqueiros. Lembra um samba de Cartola ou Noel Rosa: a gente reconhece a letra mesmo sem escutar a melodia.

Tem três filhos, quatro netos, três bisnetos e uma curiosidade sem freio. Diz a filha, Renata, que o segredo está nos livros. Ou nos passos. Ou, quem sabe, no dom de continuar achando graça onde já não há tanta novidade. Um talento singular: manter-se jovem sem precisar parecer — talvez o mais subversivo dos gestos num mundo viciado em juventudes performáticas.

Penso nisso tudo e me pego imaginando o que diriam cientistas ao ver João atravessar os últimos 100 anos com essa leveza. 

Justamente na página ao lado da reportagem, um geneticista de Harvard, David Sinclair, crava: “A primeira pessoa que viverá 150 anos já nasceu.” Segundo ele, até 2035 haverá uma pílula capaz de reiniciar nossas células — como quem clica em atualizar sistema na tela da vida. Rugas a menos, mitocôndrias a mais. Versão 2.0 da existência.

Mas de que adianta viver 150 anos se não der pra restaurar as configurações originais de fábrica? Não falo de articulações novas ou do viço da pele. Falo da capacidade de se encantar com a caneca trincada que não vaza, de rir do cachorro desafinado que late pro motoqueiro apressado, de bater à porta do vizinho só pra desejar bom dia, de “beijar o português da padaria”, como diria Zeca Baleiro. E é aí que João, com seu passo miúdo e olhar curioso, parece já ter descoberto o segredo que nenhuma cápsula trará: viver mais é menos urgente que viver melhor.

Se é pra sonhar com longevidade, que seja com espaço interno pra carregar reservas de encantamento — também de indignação, claro. O mesmo João que, certamente, se indigna, à sua maneira, com um país que tolhe a dignidade. Onde a miséria não seja confundida com estatística, a desigualdade não seja banalizada e criança tenha infância, não trincheira. Onde ninguém precise pedir licença pra existir ou prova de endereço pra ser tratado como gente.

Um país que abrace mais e castigue menos. Onde segurança não seja privilégio nem sentença. Onde o futuro não dependa de cápsulas milagrosas, mas de escolhas conscientes. Onde democracia não seja aplicativo com bug, mas organismo vivo, corrigido quando necessário por gente capaz — sem Messias de ocasião nem vilões convenientes.

E se, por capricho da biotecnologia, você que me lê for a primeira pessoa a soprar 150 velinhas, que seja com a força de quem entendeu que a vida vale mais pelas coisas que não custam: a lembrança da mãe oferecendo chá de eucalipto e manta de chenille no arrepio da febre; do pai pelejando com o chiado do rádio antigo justamente na hora do gol.

Ou, faça como João: aguarde o apito final do Grande Árbitro fechando o jogo — quem sabe, um pouco antes dos 120 — com gratidão no bolso, lucidez no olhar e as alpercatas de sempre, leves o bastante para mais um passeio sereno pelas calçadas do acaso.

agosto 06, 2025

Em nome do mau cheiro, amém

EM NOME DO MAU CHEIRO, AMÉM
Hayton Rocha


Só me faltava essa! Christine Connell, influenciadora digital norte-americana, viralizou nas redes sociais, no mês passado, ao garantir que passou sete anos sofrendo com uma infecção crônica nos seios nasais causada por um pum próximo ao rosto. Isso mesmo: flatulência facial. Uma bufa com mira certeira.


Reprodução/Redes Sociais


Segundo a moça, tudo começou quando, recuperando-se de uma cirurgia no tornozelo, cochilava num quarto de hotel ao lado do então namorado. O rapaz, tomado por uma emergência intestinal incontrolável, soltou aquilo que os antigos chamavam de "vento ruim". E bem perto do rosto da amada.


Daí em diante, dores faciais, congestão nasal permanente e infecções recorrentes. Nem o velho e confiável Vick Vaporub, disponível nas melhores prateleiras do mercado farmacêutico, aliviava o desconforto. Foi assim que começou a via-sacra por consultórios médicos e exames dignos de enredos de ficção científica.


Até que, numa dessas jornadas diagnósticas, um laboratório revelou o mistério: Escherichia coli — a popular E. coli — instalada nos confins das vias respiratórias da jovem. Uma bactéria nativa das vísceras agora promovendo intercâmbio cultural nas cavidades paranasais. A equação foi montada em segundos: do cólon dele ao nariz dela, voo direto, sem escalas, sem visto alfandegário nem pedido de desculpas.

Quem sou eu para me meter com essas trocas gasosas conjugais? Sei apenas que, durante longas convalescenças, muitos casais dormem como cartas de baralho: valete, dama ou rei, cada cabeça para um lado. E, nessas posições alternativas, o inesperado costuma bater ponto com razoável frequência, muitas vezes servindo até de despertador em plena madrugada. 

Não sou totalmente leigo no assunto, claro. Posso afirmar que já vi casamentos terminarem por muito menos — e com bastante barulho no tribunal. Quando não há filhos em disputa, bens a dividir ou pensão para reivindicar, abre-se espaço para o que chamo de litigância olfativa. Inventa-se uma tragédia bacteriológica com apelo emocional e potencial indenizatório digno de um seriado de TV explorando o universo jurídico.

Ouvi de um patologista clínico amigo meu, dos mais confiáveis e discretos — daqueles que jamais postariam um parecer no Instagram — que gases intestinais não transmitem bactérias. A E. coli, segundo ele, provavelmente veio de ambiente hospitalar ou de alguma intercorrência pós-cirúrgica. Mas a moça sustenta sua versão original com fervor evangélico. E, convenhamos, isso rende bem mais curtidas que qualquer boletim técnico da Organização Mundial da Saúde.

Desde então, virou sacerdotisa da higiene nasal. Espalha tutoriais sobre lavagem com soro fisiológico, prega vaporizadores e compartilha sua via-crúcis respiratória como quem revela a terceira parte dos segredos de Fátima. Seus seguidores se dividem entre o ceticismo clínico e a fome por escândalos — que, diga-se, rende mais que barris de petróleo em tempos de guerra no Oriente Médio.


Não vou negar, ando apreensivo com o precedente. Vai que a moda pega e os tribunais passem a julgar flatulências litigiosas? Já vislumbro cláusulas contratuais em futuros casamentos: “As partes concordam que odores involuntários emitidos no convívio não constituem ofensa nem justificam pedido de indenização, salvo se...”


E olha que tem odores pra todos os desgostos. Um bafo matinal já basta pra azedar o café da manhã — às vezes, nem “bom dia” salva. Dentista resolve? Talvez. Fio dental, um chiclete e muita fé. O chulé, então, muda o microclima do lar e, em casos graves, exige intervenção médica — ou exorcismo. Já o temido combo dos horrores — bafo, bufa, chulé, precedidos de um arroto — constitui uma amostra grátis dos confins dos infernos.


Mas se cada micróbio da vida a dois for parar no tribunal, com laudos técnicos, perícias olfativas e vídeos explicativos, nosso Judiciário — que já tropeça com ações de guarda, alimentos e xingamentos via redes sociais — vai implodir. Estaria vindo aí o Direito dos Sentidos, com varas específicas para flatulências, hálitos, secreções e outras intimidades litigiosas.

Para os casos mais cabeludos, talvez se convoque uma junta formada por dentistas, otorrinos, podólogos e psicanalistas. E, quando tudo mais falhar, que se chame um padre — porque tem situações em que só reza brava dá conta dessa biodiversidade.

Melhor rir antes que algum juiz aceite denúncia de flatulência dolosa com agravante de mira certeira — a mais antiga modalidade de assédio conjugal desde os tempos de Adão e Eva. Crime sem pena, mas com cheiro de sentença inapelável.

O grão que engole a floresta

O GRÃO QUE ENGOLE A FLORESTA Hayton Rocha Navios já não precisam do mar. Ancoram em terminais que surgem no meio do nada, onde antes só havi...