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Ilustração: Uilson Morais (Umor) |
COCHILO DA TARDE
Hayton Rocha
Sou de uma família de dorminhocos diurnos. Herdamos, uns mais, outros menos, a arte de pegar no sono logo após o almoço, como quem cumpre um ritual milenar. Exceto meu pai e um de meus irmãos, que já não estão entre nós, todos nos entregamos ao cochilo da tarde como devotos ajoelhados diante do altar.
Lá em casa, o costume era sagrado: levantava-se da mesa, escovava-se os dentes e pronto — em menos de cinco minutos já se estava navegando nos mares de Morfeu, por uns 45 minutos. Não havia telejornal da tarde para disputar com a rede ou o travesseiro.
Nunca foi preguiça, claro: era método. Talvez venha daí o gosto da família em contar histórias. Minha mãe, aos 86 anos — cujo cochilo vespertino passa de uma hora —, continua a nos embalar com casos de infância, quase sempre terminando com o olhar perdido no nada, como quem vasculha o que resta no próprio arquivo interno. O cochilo sempre foi a senha para soltar a imaginação.
A ciência, com sua mania de explicar obviedades, apenas confirmou depois o que já sabíamos por intuição: dormir no meio do dia não é vagabundagem, é investimento com bom retorno. Pesquisadores analisaram milhares de pessoas e concluíram que cochilar regularmente protege o cérebro contra a ferrugem do tempo — demência, diabetes, hipertensão. Minha mãe não sabia de nada disso, mas defendia o cochilo com argumento de especialista: “dorme que passa”.
A soneca tem efeitos que fariam inveja a qualquer laboratório farmacêutico: domina o estresse e evita acidentes. Os alemães, metódicos até para dormir, comprovaram que 45 minutos de descanso multiplicam por cinco a memória. A NASA, sempre preocupada em não deixar astronauta apertar botão errado no espaço, também estudou: 26 minutos de sono bastam para turbinar atenção.
Sou capaz de apostar que, se Armstrong fosse brasileiro e tivesse bem relaxado antes do pouso na Lua, teria descido assoviando o chorinho Carinhoso, de Pixinguinha, como quem celebra não só a conquista, mas também a boa soneca que viria mais adiante.
Em apenas 10 minutos, o cochilo reduz a adenosina, aquela molécula que nos deixa arrastando sandálias pela casa. Resultado: o mau humor desaparece quando a resiliência emocional toma assento. A pessoa acorda capaz até de suportar reunião com gente prolixa ou metida a saber de tudo.
Não à toa, para crianças a soneca é tão vital quanto o leite materno. Sem ela, o sistema nervoso se revolta e surgem birras dignas de espetáculo teatral. Estudantes, por sua vez, descobrem que cochilar é como trocar a bateria do celular: descarrega preocupações e recarrega a capacidade de aprender.
Claro que há limites. O ideal, dizem, é cochilar entre 13h e 15h, por 45 minutos. Mais que isso pode azedar o sono da noite e transformar o dorminhoco em zumbi — se bem que minha mãe discorda disso, segundo ela com pleno conhecimento de causa. Eu, por via das dúvidas, acrescentaria uma cláusula particular: “nunca abrir mão do cafezinho após o almoço”. Contraindicação dos cientistas, talvez, mas dogma no altar de meus afetos.
Porém há um detalhe que a ciência, com toda a sua estatística, não explica. O cochilo não é só sobre corpo e cérebro: é também sobre alma. É uma pausa litúrgica no meio do dia, como se a vida precisasse de dois goles de água fresca no intervalo entre o primeiro e o segundo tempo. Naquele silêncio, o relógio deixa de mandar, a rotina dá um refresco e a gente volta a ser apenas humano — passageiro, sonhador, vulnerável.
Eu mesmo, por muito tempo, desconfiei de que o hábito pudesse prejudicar o trabalho. Cortei o mal pela cepa, há pouco mais de uma década: me aposentei. Desde então sigo fiel aos ritos da infância. Como dizia minha mãe, “dorme que passa”. Passa mesmo: a agonia das urgências, o estresse, a ilusão de que somos indispensáveis.
Cochilar não é luxo, é resistência. É meu protesto contra a pressa desumana que está em todos os lugares e minha reconciliação diária com o tempo, que teima em querer escapulir por entre os dedos.
Porque enquanto houver gente dormindo no meio do dia, haverá quem acredite que a vida renasce nessas pequenas pausas — e que até os santos, quando ninguém vê, tiram seu cochilo da tarde entre um milagre e outro.