Não se falava em "bullying" no Sertão da Paraíba nos anos 60. Se muito, em menino buliçoso, danado. Meu passatempo favorito naquela época, não nego, era torrar a paciência dos irmãos mais novos com apelidos, caretas e cutucadas nos redemoinhos de cabelo do topo da cabeça deles. Por isso, imagino, apanhava tanto.

Levei tantas surras que aprendi a retaliar com pequenas maldades. Na única vez em que testemunhei uma discussão mais áspera entre meus pais, havia experimentado mais uma, logo cedo, por um motivo besta qualquer. À noite, antes de dormir, minha mãe costumava checar se estava tudo em ordem nas redes em que os filhos dormiam. Ao vê-la entrar no quarto, arranquei a casca de uma ferida antiga, o suficiente para brotar um filete de sangue no joelho e tingir de encarnado o lençol.
– Acorde, meu filho, o que é isso? – alarmou minha mãe.
– Foi a fivela do cinturão de papai. – respondi, descaradamente fingindo dor e sono.
– Acorde, meu filho, o que é isso? – alarmou minha mãe.
– Foi a fivela do cinturão de papai. – respondi, descaradamente fingindo dor e sono.
O coitado ainda tentou argumentar que não era doido a ponto de bater no filho com a fivela, mas, em voz alta, ela disse por mim tudo aquilo que eu não ousaria dizer, sob pena de mais uma pisa memorável.
Já havia sido castigado uma vez por conta de minha curiosidade sexista. Aos cinco anos, no Jardim da Infância do Colégio Cristo Rei, em Patos(PB), não sabia se freira era homem ou mulher. Irmã Priscila não pintava unhas, não usava batom como minha mãe, nem tampouco se tinha ideia do tamanho de seus cabelos. Resolvi tirar a dúvida lhe puxando o véu e minha saliência foi devidamente punida quando cheguei em casa.

Outra surra inesquecível aconteceu numa manhã de domingo. Ao tentar escapar para não levar mais chibatadas, pisei de propósito dentro da lata de lavagem – sobras de comida estocadas ao ar livre, no quintal, para alimentar os porcos de uma vizinha – e corri para a sala de jantar, lambuzando tudo, para desespero de minha mãe que acabara de limpar o chão. E ainda existe quem duvide se crianças conhecem estratégias de manipulação psicológica.
Como a crônica de mais uma surra anunciada, ficaram na memória algumas sentenças:
– Vou contar pro seu pai quando ele chegar do trabalho, ouviu?
– Se correr vai apanhar mais, cabra safado!
– Não quero escutar nem mais um pio, ouviu?
– Se apanhar na rua dos moleques, vai apanhar de novo em casa!
Como a crônica de mais uma surra anunciada, ficaram na memória algumas sentenças:
– Vou contar pro seu pai quando ele chegar do trabalho, ouviu?
– Se correr vai apanhar mais, cabra safado!
– Não quero escutar nem mais um pio, ouviu?
– Se apanhar na rua dos moleques, vai apanhar de novo em casa!

Não chegamos a conversar sobre o assunto depois que cresci. Morreu antes. Jurei a mim mesmo que faria diferente quando chegassem os meus filhos: nem palmadas na bunda. Parece que deu certo.
Se ele soubesse dos "pequenos saques" que eu fazia na bolsa de minha mãe para poder ajudar na compra de camisetas e bolas dos times da Rua Bossuet Wanderley, em Patos(PB), por exigência dos moleques mais velhos da vizinhança, aí sim é que teria motivos de sobra para umas boas lapadas no meu espinhaço. Não sabia.
Também não sabia dos banhos e das pescarias na “Ilhota” e na “Terra Cavada”, no Rio Mundaú, em União dos Palmares (AL), quando acabei "íntimo" da ancilostomíase (amarelão) e da esquistossomose (barriga d’agua, doença do caramujo). Se soubesse, é provável que o couro de minhas costas ficasse bem mais curtido.
De tudo restou a certeza de que a maior parte das surras que levei aconteceu por motivos banais, sem maior gravidade. Meu pai nunca soube dos mais sérios, inconfessáveis e obscenos.
De tudo restou a certeza de que a maior parte das surras que levei aconteceu por motivos banais, sem maior gravidade. Meu pai nunca soube dos mais sérios, inconfessáveis e obscenos.
Mas não conseguiu da última vez que tentou. Em 1971, com quase 13 anos, no primeiro golpe eu segurei firme na outra extremidade do cinturão e o puxei com força. Ao perceber que o filho já era taludo o bastante para não mais apanhar, desistiu.
Após a sua morte, um ano depois, virei adolescente impulsivo e sonhador, porém embrutecido e irascível. Nunca cogitei experimentar drogas, mas passei a fumar cigarros e a beber até cachaça com os amigos da Gruta de Lourdes, bairro em que morava, em Maceió(AL).
Quando jogava futebol, se em qualquer disputa levasse uma pancada ou me sentisse ameaçado, reagia, de forma desproporcional, a chutes e murros. Arrepender-se em seguida não me impedia de repetir a dose no próximo racha, só violência onde deveria haver apenas diversão e prazer.
Quando jogava futebol, se em qualquer disputa levasse uma pancada ou me sentisse ameaçado, reagia, de forma desproporcional, a chutes e murros. Arrepender-se em seguida não me impedia de repetir a dose no próximo racha, só violência onde deveria haver apenas diversão e prazer.

Se o mundo fosse justo, na melhor das hipóteses eu deveria ter sido expulso do clube naquela madrugada. Não fui porque, de forma autoritária e cretina, me identifiquei aos agentes de segurança na base do “você sabe com quem está falando?”:
– "Peraí, pô"! eu sou funcionário do Banco do Brasil!
E a estupidez em carne e osso quase joga no lixo o pouco que havia conseguido na vida até ali, ao usar em vão o nome da empresa que lhe acolhera como Menor Aprendiz havia nove meses. Quanto ao rapaz que ao jogar o copo com gelo apenas revidara uma agressão gratuita e imbecil, acabou retirado à força do clube.
– "Peraí, pô"! eu sou funcionário do Banco do Brasil!
E a estupidez em carne e osso quase joga no lixo o pouco que havia conseguido na vida até ali, ao usar em vão o nome da empresa que lhe acolhera como Menor Aprendiz havia nove meses. Quanto ao rapaz que ao jogar o copo com gelo apenas revidara uma agressão gratuita e imbecil, acabou retirado à força do clube.
A poeira só tomou assento entre 1976 e 1977, quando me tornei estudante de Economia, funcionário de carreira do Banco do Brasil, marido e pai. Cansados, os bichos que me atormentavam caíram em sono profundo. Ainda bem.
Como um rio no rumo do mar, a vida seguiu adiante. Se hoje meu pai aparecesse na porta de minha casa, quem sabe me diria:
– Lembra quando eu lhe batia de cinturão? Me perdoa! Você não tinha culpa de nada do que se passava comigo.
– Faz tanto tempo, pai. Já esqueci. Senta e vamos tomar um vinho. Daqui a pouco seus bisnetos chegam por aqui...
Como um rio no rumo do mar, a vida seguiu adiante. Se hoje meu pai aparecesse na porta de minha casa, quem sabe me diria:
– Lembra quando eu lhe batia de cinturão? Me perdoa! Você não tinha culpa de nada do que se passava comigo.
– Faz tanto tempo, pai. Já esqueci. Senta e vamos tomar um vinho. Daqui a pouco seus bisnetos chegam por aqui...