Sim, hoje é sábado. Só por isso ainda sinto o cheiro de cera do chão das casas em que morei quando menino, a ver meu pai circulando entre salas e quartos, fazendo brilhar o cimento queimado e os mosaicos, a ouvir boleros do Trio Irakitan.
Vem à cabeça também o “gol da lua” nos campos enlameados de minha meninice. Na boca da noite, racha no zero-a-zero ou com vitória parcial por apenas um gol de diferença, alguém gritava: “quem fizer primeiro, ganha!”. Era um salve-se quem puder, um deus-nos-acuda sem sentido.
Lembro do trajeto de casa até o altar da capela do Convento Bom Pastor, no último sábado de 1976, ponto de partida de uma viagem sem volta nem fita de chegada rumo à Terra Prometida. Éramos dois sem parentes importantes nem dinheiro no banco, mas estava escrito nas estrelas que teríamos um só coração, bem repartido entre a esperança e a razão.
Ouço como se fosse agora mesmo o grito familiar a convocar à mesa da cozinha caras e bocas espalhadas pelos quatro cantos da velha casa. Filhos, noras, genros e netos davam conta em minutos do panelão de galinha guisada com purê de batatas (suando manteiga!), arroz, feijão verde e farofa. Nem lavavam as mãos, imagino.
Sim, hoje é sábado. Só por isso me transporto à Bahia de todos os cantos do começo dos anos 90, quando acordava cedo aos sábados pelo simples prazer de flanar entre os quiosques do mercado do Rio Vermelho, apalpando frutas, legumes e verduras. Voltava para casa ouvindo no toca-fitas mais um canto que surgia na cidade:
“(...) A cor dessa cidade sou eu
O canto dessa cidade é meu (...)”
Vem à cabeça também o retorno para Alagoas pouco tempo depois. Irmãos feito galos de briga na rinha de vôlei do quintal de Zé e Zu, na praia de Ipioca. Revejo todos eles na mesa de baralho, noite adentro, entre tragos e goles, a ouvir Nat King Cole amaciando a madrugada:
“(...) Cachito, cachito, cachito mio
Pedazo de cielo que Dios me dio (...)”
E como esquecer dos sábados na praia de Enseada de Corais (apesar dos ouriços-do-mar!), no Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco? Ou do jorro da bica de Sete Casuarinas, no que resta de Mata Atlântica na Estrada de Aldeia, onde as árvores dançam e cochicham entre si ao entardecer?
Ouço ainda como se fosse agorinha, apesar de avesso à mistura insalubre de barulho, calor e multidão, a apaixonada confissão do menestrel de São Bento do Una, Alceu Valença, nos sábados em que o Galo da Madrugada acordava a cidade:
“(...) Voltei, Recife!
Foi a saudade que me trouxe pelo braço (...)”
E como recordo do primeiro sábado, no Planalto Central, em que já não mais teria que retornar ao trabalho na semana seguinte. Devagarinho, ficaria nítido para mim que existem duas fases na vida, infância e aposentadoria, em que a felicidade pode estar na tela de um tablet (ou na ponta de um lápis sobre uma folha de papel em branco) onde quase tudo é possível.
Claro, bem mais recente, lembro também dos sábados no “Quintas do Sol" ou “Porto Gurguéia”, nos arredores de Brasília, onde podia sentar com amigos e costurar retalhos do tecido de nossas vidas. O ensopado de carneiro ou o bacalhau ditava o tempero da prosa e o balanço da rede na varanda nos embalava de graça até o pôr-do-sol.
Sim, hoje é sábado. Só que chove lá fora, o dia está escuro, cheio de mistérios. E não tem graça alguma saber que na esquina um inimigo traiçoeiro ainda me obriga a ficar em casa. Nem vale a pena me fazer de valente, tentar encará-lo e a festa acabar antes da hora, sem direito nem mesmo à decência de um adeus.
Sim, hoje é sábado. Só que chove lá fora, o dia está escuro, cheio de mistérios. E não tem graça alguma saber que na esquina um inimigo traiçoeiro ainda me obriga a ficar em casa. Nem vale a pena me fazer de valente, tentar encará-lo e a festa acabar antes da hora, sem direito nem mesmo à decência de um adeus.
Não, o sábado não é uma ilusão, como disse Nélson Rodrigues um dia.