Nada define melhor as coisas do Interior do Nordeste do que o verso e a prosa matuta que brotam no universo popular, refletindo cenários e circunstâncias numa linguagem singular. Em tudo que é lugar existe pelotões de soldados bem fardados no ofício, de repentistas a cordéis. Passam de mil os prosadores (e poetas) nesse pedaço de mundo, muitos de pouca leitura mas dotados de inegável talento.
Um deles é Jessier Quirino, “arquiteto por profissão, poeta por vocação e matuto por convicção”, como se autodefine – no que estamos concordes –, que conheci em 1997, quando o convidei para trocar dois dedos de prosa com os gerentes do Banco do Brasil que atuavam em Pernambuco.
Paraibano de Campina Grande, Jessier optara por viver em Itabaiana – terra de Sivuca e Zé da Luz, o poeta –, conciliando com as atividades de Doró, como carinhosamente chama sua mulher, arquiteta como ele.
Dotado de uma memória espantosa, o que mais me impressionou nele foi a presença de palco, a debulhar espigas de saberes que iam de uma narrativa matuta, carregada de gíria, humor, neologismo, sarcasmo e sotaque, até cantigas do mais genuíno regionalismo.
Fui impactado pelas “imagens” de sua obra, pela fartura de nuances do ambiente, de tramas e personagens entrelaçados, quando o vi declamar “Parafuso de cabo de serrote”, poema onde descrita uma bodega sortida, cujo desfecho nunca esqueci:
“(...) Tem cabides de copos pendurados
E um curral de cachaça e de conhaque
Logo ao lado se vê carne de charque
Tira gosto dos goles caneados
Pelotões de garrafas bem fardados
Nas paredes e dentro dos caixotes
Uma rodilha de fumo dando um bote
E um trinchete enfiado num sabão
E o bodegueiro despacha ao artesão
Um parafuso de cabo de serrote (...)”
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Reprodução: Redes Sociais |
Nunca mais deixamos de nos falar (bem menos do que eu gostaria, claro!). Descobri, inclusive, que sua sogra (Celinha) foi amiga de infância de minha mãe, a ponto de dona Pixitita, mãe de Celinha e avó de Doró, haver tentado, em vão, adotar Doça (Eudócia, minha mãe).
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Reprodução: Redes Sociais |
Conversando com ele, numa tarde dessas, soube de um sujeito com um parafuso frouxo que, toda vez que se entupia de cachaça, ameaçava tomar veneno, cortar os pulsos, furar os olhos, mas nunca chegava às vias de fato graças à intervenção de terceiros.
Bêbado e tocado por uma paixão devastadora, certa vez o sujeito sobe numa dessas torres que existem em toda cidade interiorana disposto, numa visão “buarqueana”, a flutuar no ar como se fosse um pássaro, a agonizar no meio do passeio público e a morrer na contramão, atrapalhando o sábado.
Em minutos, o povo se aglomera em oração a pedir para que não cometa a desgraça. Ele, no entanto, resoluto como um camicase, faz o derradeiro apelo: que lhe mandem por uma corda alguns pertences de estima.
E iça uma gaiola, um rádio de pilhas e uma bicicleta em petição de miséria, parceira de andanças e confidências nos raros momentos de sobriedade.
Nisso, surge sua enteada no meio da multidão, de banho tomado, cheirando a água de colônia, trajando um shortinho e uma blusa “tomara que caia”. E, ainda que de longe, estende os braços ao padrasto, tentando evitar a doidice: “Não faça isso com mainha! Desce daí, vamos conversar...”
Mas o bêbado, nem-nem! Com o olhar dos desiludidos, prepara-se para o salto no escuro da eternidade.
É quando aparece sua esposa, uma baixinha da cara de lua cheia, de buço e sobrancelhas grossas, braba feito uma gata parida, gritando: “Se quer morrer, cachaceiro safado, pule logo! Ou pare com essa cachorrada, desça daí e pegue o beco pra casa, agora!”
Um doidinho – toda cidade do Interior tem o seu, com um parafuso mais ou menos frouxo –, que a tudo assistia calado, só observando o desenrolar do drama, levanta-se do meio-fio, balança a cabeça, ergue o dedo indicador e opina com a segurança dos letrados no tema: “Oxente! Se nem pra moça ele desceu, vai descer pra essa aí?”
Mas o infeliz desistiu. Jurou à esposa que não quer mais saber do cabide de copos pendurados nem do curral de cachaça da bodega. E foi-se embora costurando a rua, debaixo de vaia da molecada.