Os fatos não deixam de existir só porque ainda não fomos capazes de fazer suposições sobre eles. E não pensem que estou ficando louco por dizer o que digo. O que seria da realidade se não fosse a fantasia a tirá-la do sério?
Tudo é possível. Em algum lugar do universo deve existir um arquivo especial onde Ele – quem sabe, apenas para deleite próprio – guarda em gavetas emperradas fatos que estiveram a ponto de acontecer e que por um motivo qualquer não vingaram. Lá estariam armazenadas versões do que poderia ter chegado a jornais, livros, revistas ou ao diário particular de qualquer um do que poderia ter sido e não foi.
Todo mundo diz que se o “se” – esta inquietante conjunção subordinativa que nos propõe hipóteses, traduzindo nossas incertezas – jogasse futebol, seria o melhor goleiro ou o maior goleador do mundo.
Discordo. Quando escrevo, nunca abro mão do universo de possibilidades contidas no “por que não”, no “quem sabe”, no “talvez”, no “vai que”, sem o qual um texto se torna cartesiano, inflexível, sem a leveza da curva, do desvio.
Quem sabe dizer onde foram parar alguns fatos que não se tornaram realidade por mero capricho sei lá de quem (talvez Dele mesmo, mas não estou aqui para acusar)? Em 1976, por exemplo, quando Roberto Dinamite, no minuto final de uma partida, amorteceu no peito um cruzamento dentro da grande área e, antes de estufar as redes botafoguenses com um voleio, cobriu com um lençol Osmar Guarnelli, o zagueiro interceptou a bola com o braço e o árbitro apontou a marca penal. Nunca existiu, portanto, o gol da fotografia colocada no hall da entrada principal do Maracanã na inauguração do Projeto Memória do Futebol.
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Reprodução/Redes Sociais |
Mas será que o pênalti foi marcado mesmo, ou o árbitro, com a desfaçatez dos sopradores de apito que nos fazem de bestas a toda hora, teria dito que o gesto foi natural, não houve ação deliberada de bloqueio, não viu nada de mais (nem sabia de nada), como alguns cegos e sonsos que figuram na cena política brasileira?
E onde foi parar o gol de empate que o zagueiro brasileiro Oscar Bernardi marcou contra a Itália nas semifinais da Copa do Mundo de 1982? Após receber um cruzamento perfeito, o capitão acertou, à queima-roupa, uma cabeçada indefensável. O goleiro Dino Zoff ainda conseguiu fazer uma defesa monstruosa, mas a bola escapou e cruzou a linha fatal, matando no ninho uma geração de defensores da tese de que jogo bonito é sinônimo de derrota, que vibram com carrinho ou bicão de jogador grosso, na base de “bola pro mato porque o jogo é de campeonato”.
Vai ver está no arquivo especial o antepenúltimo minuto da partida final do Campeonato Carioca de 2001? Falo do lance em que o goleiro vascaíno Helton conseguiu a proeza de evitar um gol numa espetacular cobrança de falta de Petkovic, que selaria o tricampeonato carioca para o Flamengo, no Maracanã.
A dois minutos do apito final, o time rubro-negro ficava com mais um vice-campeonato em virtude do placar agregado de dois jogos – o Vasco havia vencido a primeira disputa por 2 a 1. No segundo confronto, o Flamengo devolvia o placar, mas esbarrava na vantagem do empate do adversário. E o sérvio bem que caprichou, mas sem sucesso, mudar a história com uma cobrança de falta quase perfeita, à semelhança do que fizera, com êxito, o vascaíno Juninho Pernambucano três anos antes, no Monumental de Nuñez, contra o River Plate, da Argentina.
E o gol que Diego Souza, à época no Vasco, marcou diante do Corinthians do goleiro Cássio, no Pacaembu, conduzindo a bola desde o seu campo de defesa no jogo de volta das quartas de final da Libertadores de 2012? Ali começou a arrancada para a conquista da Copa Libertadores da América. Meses depois, inclusive, pintaram a Terra de branco e preto quando o Gigante da Colina derrotou o Chelsea, da Inglaterra, erguendo a taça de campeão mundial no Japão.
Dá pra imaginar quem teria autorizado a colocação de uma faixa diagonal atravessando o Planeta, evocando as travessias responsáveis pelas grandes descobertas das navegações marítimas. Puseram, inclusive, uma cruz de malta no céu da Mãe África, saudando o primeiro clube-nação de um país (detentor da segunda maior população negra do mundo) a reconhecer o protagonismo de negros e pardos na aventura humana na Terra.
Posso descrever outros fatos engavetados pela mão Dele, mas encerro por aqui seguro de que só são considerados singulares porque tiveram suas rotas alteradas em pleno voo e foram obrigados a aterrissar no território do “quase”.
Se estiver correta a minha tese sobre este arquivo especial – onde cada um de nós dá nome a uma gaveta de fracassos e frustrações pessoais e intransferíveis, não restritas à paixão pelo futebol –, é pra lá que pretendo ir quando do acerto de contas. Sem pressa, bem entendido!