maio 28, 2025

Vá em paz, Carnaúba

Não sei falar da morte — ainda que ela nos espreite com a paciência de quem sabe que, mais cedo ou mais tarde, todos cruzaremos seu caminho. Dela pouco falo, e, quando vem de surpresa, me faltam palavras para enfrentá-la. Talvez por isso os poetas caminhem sempre um passo à frente de nós: porque vão iluminando a estrada com suas lanternas acesas, deixando pegadas para quem tiver olhos de sentir.


Fotografia: Álbum de Família


Foi assim que seguiu meu querido amigo Carnaúba, grande poeta, que nos deixou nesta terça-feira, 27 de maio de 2025. 

Gosto de pensar que, ao chegar ao céu, foi recebido com festa por Selma — sua amada, cúmplice e musa de toda uma vida. Não haveria recepção mais justa nem braços mais certos para lhe dizer, com ternura, que a eternidade é sua casa agora.

Ainda bem, meu amigo, que há cinco anos, em plena pandemia, pude lhe dizer o quanto você era importante para todos nós. 

 

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Nobel da Paz
Por Hayton Rocha

Carnaúba é uma palmeira comum do Semiárido nordestino, conhecida como a árvore da vida longa. Da folhagem se extrai uma cera natural com que se produzem batons, sabonetes, vernizes etc. Seu nome deriva do tupi e significa “planta que arranha”, por conta dos espinhos em seu caule.

Mas a árvore longeva de que falo aqui, no auge de seus 82 verões, veio de outra galáxia. Não arranha nem possui espinhos. É leve, do bem e da paz, espirituosa, dotada de rara inteligência.

Nos anos 1970, quando pediam a Humberto Carnaúba horas extras após a rotina diária de seis horas de trabalho, ele se negava com um argumento simples e objetivo: ganharia bem mais, sob todos os aspectos, na mesa de sinuca, apostando com alguns amigos.

E, quando entrava em férias, em questão de minutos era visto com sua inesquecível Selma na estação ferroviária, onde embarcavam no primeiro trem que ali parasse, com destino incerto. Na bagagem, apenas três ou quatro mudas de roupa, escovas de dentes e sandálias. Voltaria em um mês, horas antes do início de um novo ciclo de trabalho.

Conheço-o há quatro décadas, desde que ancorou em Maceió. Ao lado de nossas mulheres (a minha e a dele, claro!), foram várias noitadas ouvindo e dançando forró pé-de-serra — o hino era “Feira de Mangaio”, de Glorinha Gadelha e Sivuca, na histórica interpretação de Clara Nunes. Na mesa, muita cerveja gelada e carne-de-sol com feijão-de-corda e creme de leite, ainda sem o risco dos bafômetros estraga-prazeres nas madrugadas da Ponta Verde.

Amante de motes e glosas (tipo de poema comum no Nordeste, que responde a um desafio lançado sobre um tema qualquer), Carnaúba sempre foi emérito contador de "causos". E, se isso não fosse suficiente, era onicófago convicto (roedor de unhas)! Admiro esses seres porque nunca vi nenhum deles fazer mal a alguém — pelo menos enquanto ocupados no hábito.

Sou testemunha de que Carnaúba, sem querer, conseguiu a proeza de ser protagonista da paz entre dois sujeitos que travavam uma guerra particular a 600 km da capital alagoana, mais precisamente em Salvador.

Ele ainda trabalhava no Agreste de Pernambuco quando teve que intervir numa iminente troca de sopapos entre dois fazendeiros ignorantes e truculentos, no dia do aniversário de um deles.

O coronel Carvalho resolvera comemorar idade nova oferecendo uma memorável buchada de bode. E, para demonstrar poder e força, convidou meio mundo de gente — inclusive um vizinho com quem vivia às turras por causa de disputa de terras.

No dia do rega-bofe, embora sofresse dores horríveis por conta de uma crise de gota, coronel Carvalho recebia os convidados na porta de casa com os pés descalços, para evitar o desconforto das botas.

Gota, para quem não lembra, é uma forma de artrite caracterizada por dor intensa, vermelhidão e sensibilidade nas articulações, causada pela cristalização de ácido úrico.

Ao meio-dia, chegava o vizinho com sua esposa a alguns passos atrás — prevalecia na região o jeitão machista de andar à frente da mulher, a pretexto de protegê-la. Na pressa de acompanhar os passos largos do marido, a coitada acabou pisando nos pés do anfitrião.

— Você vem cega, miserável?! — urrou o coronel, cerrando os dentes de dor.

O vizinho, ao ver a confusão instalada, fechou a cara e falou grosso:
— O que tá acontecendo, mulher!?
— Eu... eu pisei no pé do coronel Carvalho sem ver... — justificou-se, constrangida.
— Oxente, mulher, Carvalho sem “v” é “baralho” — gracejou o vizinho, usando termo chulo que aqui escrevo com "b" para não ferir olhos mais sensíveis.

Fechou o tempo em relâmpagos e trovões! Não fosse a pronta intervenção do “embaixador” Carnaúba, o final teria sido outro, com cenas de pugilato explícito. Poderia até descambar para punhaladas e tiros — afinal, ninguém ia a um festão daqueles sem estar devidamente precavido. Mas salvaram-se todos. E os vizinhos puderam voltar para casa, diplomaticamente escoltados por meu velho amigo.

Anos depois, Costa — que havia migrado de Alagoas para a Bahia e tinha conhecimento do ocorrido por intermédio de Carnaúba — enchia a paciência de um colega, coincidentemente chamado Carvalho, com aquele tipo de pergunta que tira do sério qualquer cristão:
— O seu Carvalho é com “v” ou sem “v”?

Ao ser apresentado a Carvalho, encontrei-o com o semblante tenso, chateado. Curioso, não resisti e quis saber:
— Diga aí, por que você tá desse jeito?
— Pra ser sincero, não aguento mais ouvir Costa me fazer aquela pergunta besta. Vou acabar fazendo merda!
— Que pergunta?
Contou-me o que se passava e pude então compartilhar com ele a origem de tudo.

Nisso, me veio à cabeça outra narrativa de Carnaúba — agora envolvendo o próprio Costa, que, no começo dos anos 1980, resolveu candidatar-se à presidência de um clube social em Maceió e andava em campanha, pedindo votos a todos os associados que encontrava.

Ao ver o esforço eleitoral do colega, Carnaúba, que nunca se incomodou com sua reluzente calvície, embora constantemente provocado por conta disso, indagou com a cara mais lisa do mundo:
— Por que você não cria um slogan para a campanha?
— Boa ideia! Tem sugestão, careca?
— Não. Vamos pensar?
— Você é que é bom nisso! Bote essa careca pra funcionar.
— Muito bem, primeiro anote aí: “Se cabelo fosse importante, não nascia no... sovaco.” (O termo utilizado não foi bem esse, mas escrevo “sovaco” preocupado, de novo, em não ferir olhos mais sensíveis).
— Peraí, Carnaúba, tô brincando!
— Sei disso. Eu também. Já tenho até o slogan da campanha: “Bosta por bosta, vote no Costa!”

Carvalho caiu na gargalhada. Tinha agora o antídoto para o veneno que vinha lhe matando aos poucos. E, na primeira oportunidade, diante de vários amigos em comum, contou o caso tintim por tintim — para riso geral da plateia.

“A guerra só pode ser abolida com a guerra. Para que não existam mais fuzis, é preciso empunhar o fuzil”, dizia o líder chinês Mao Tse-Tung (1893–1976). A paz, enfim, foi restabelecida por obra e graça — ainda que sem querer — de meu amigo Carnaúba.

Se depender de mim, os velhinhos de Oslo, na Noruega, deverão ser notificados desses fatos para que lhe outorguem o próximo Prêmio Nobel da Paz, na presença do rei Haroldo V. É mais que justo!

Como a cerveja naquelas bandas é de primeira qualidade, tenho certeza de que Carnaúba irá gostar de conhecer a região escandinava — a terra dos vikings. Claro, assim que a paz voltar a reinar nesse mundão assustado de meu Deus.

maio 21, 2025

O dedo do Poetinha

Dizem que Vinicius de Moraes conheceu Chico Buarque quando o menino ainda usava calças curtas e o bigode era só uma promessa no espelho. Chico devia ter uns doze anos, mas já trazia nos olhos e nas mãos a semente dos acordes — daqueles que brotam com o orvalho da sensibilidade.

 

Vinicius era o que sempre foi: um diplomata de ofício, mas boêmio por vocação, fluente em sonetos mais do que em telegramas. Frequentava saraus na casa de Sérgio Buarque de Holanda, pai de Chico, onde canções e livros se misturavam na mesa como poesia e prosa do mesmo caderno. Sérgio escrevia a história do Brasil em prosa. Chico, ainda sem saber, preparava-se para cantá-la em verso.

 

Numa tarde qualquer, entre uma dose de uísque e outra de lirismo, Vinicius prestou atenção no rapaz. Não viu nele apenas talento — viu alma, das que sangram em melodia. E lançou a rede com jeito: “Garoto, que tal me ajudar a terminar uma canção de Garoto?” Garoto, no caso, era Aníbal Augusto Sardinha, grande violonista que partiu cedo, sem que o Brasil lhe erguesse o busto merecido.

 

A música era “Gente Humilde”. Faltava a segunda parte. Chico hesitou — sentia-se, talvez, como aprendiz diante de cristal trincado — mas decidiu arriscar. E escreveu um dos retratos mais ternos da alma brasileira, falando de casas modestas, flores murchas, cadeiras na calçada, uma alegria que não tinha onde encostar — dessas típicas de domingos ou feriados ensolarados.

 

A canção ficou pronta. E o Brasil, maior.

 


Quando Vinicius nos deixou, em 1980, aos 67 anos, Chico já empilhava uma obra que parecia ter décadas. O tempo, diante dele, andava de mansinho, como acontece até hoje. Depois da morte do Poetinha, vieram joias como "Anos Dourados", "As Vitrines" e "Futuros Amantes". Canções que ainda surpreendem, como o céu depois de uma trovoada.

 

Chaplin dizia que a arte não precisa ser fiel à realidade — basta à imaginação que dela escapa. Por isso me pego aqui pensando: e se Vinicius ainda circulasse por aí, com um copo numa mão e um saco de poemas na outra? E se, numa madrugada bêbada de luar, resolvesse meter o dedo na obra dos amigos? 

 

Imaginando essa presença fantasmagórica do Poetinha, mexendo nas músicas dos amigos como quem rabisca versos no guardanapo do boteco, me pergunto: e se ele tivesse deixado suas digitais em "Anos Dourados"? 

 

A versão de Chico canta:

 

"Parece que dizes: te amo, Maria!
Na fotografia estamos felizes. 

Te ligo afobado e 

Deixo confissões no gravador..."

 

Mas se o Poetinha resolvesse dar um palpite, talvez soasse assim:

 

“Te amo, Maria! — disse à tua ausência
na madrugada em que bebi teu retrato.
O sorriso na moldura é só aparência,
meus olhos desmentem o que foi teatro.


Te ligo entre goles, tropeço na fala,
confesso no gravador como num altar.
E se tens outro amor, que ao menos se cale —
porque a febre é minha, de tanto te amar.


Te espero, e me firo. Me entrego, e deliro.
Meu corpo é saudade: dorme e não sara.
A dor que me abraça já nem sente o tombo:
é bolero, é choro, é valsa rara”.

 

Onde Chico acaricia a ferida, Vinicius esfrega sal. Um compõe com a lucidez do poeta urbano; o outro, com o desatino do amante sem esperança. Chico canta a mulher que se foi; Vinicius, a que nunca deixou de ser. Um sonha com o que perdeu; o outro sangra por não aceitar a perda.

 

Talvez seja nessa praia que mora a mágica da parceria. Enquanto Chico tece a rede com linha fina, Vinicius se atira ao mar revolto. Enquanto um penteia o vento da memória, o outro engole a tempestade da ausência. Um escreve com a delicadeza das entrelinhas; o outro, com a urgência do bilhete amassado no bolso que nunca chegou a seu destino.

 

Assim surgiu "Gente Humilde". Poderia ter nascido outras tantas. E quem garante que, mesmo ausente, Vinicius não siga cochichando no ouvido de Chico? Poeta não morre — muda de andar. 

 

Vai ver existe mesmo uma esquina onde o céu beija a calçada. E ali, entre doses de uísque e o dedilhar do violão, os dois se reencontrem. Um pede gelo. O outro afina o tom — não o Jobim, que, do nada, aparece e se mete na conversa: "Tô indo pro piano!".

 

E juntos, tecem mais um pedaço da alma brasileira. Daqueles que não cabem numa partitura. Só na saudade, essa misteriosa estrada cheia de curvas.

 

maio 14, 2025

Ladrão de sanfona




Ilustração:  Dedé Dwight


Ano passado, um ladrão espalhou luto musical debaixo de muitos telhados mineiros. Um especialista — desses que não roubam qualquer coisa — mirando no fole sagrado dos mestres do interiorzão. Chamava-se Célio de Menezes, 59 anos, mas na bandidagem atendia por Zé do Queijo. Nome inofensivo, não fosse a trilha de desencanto que deixou em mais de trinta cidades. Sessenta sanfonas furtadas até a polícia desafinar de vez a melodia do crime.


O golpe era simples como dançar arrasta-pé: chegava se dizendo músico errante, fã de Dominguinhos, à procura de quem precisasse de um sanfoneiro pra animar festas. Falava grosso, citava nomes, tocava a senha do coração de quem vive da música. Ganhava confiança, pedia a sanfona “só pra dar uma ensaiada” ... e sumia no mundo como refrão esquecido. Quando a lábia desafinava, subia o tom com métodos menos musicais: ameaças. Sete anos nessa turnê criminosa.


Há algo cruel, quase desumano, no roubo de um instrumento. Não é só couro, madeira e metal que se perdem, mas ilusões, lembranças, sons que jamais serão ouvidos de novo. Quantas sanfonas não carregavam, além de teclas e baixos, o fole suado de uma vida inteira devotada à música? Cada roubo foi sequestro de um punhado de sonhos — e sonho feito refém, a gente sabe, é resgate difícil de negociar.


Foi a filha de um sanfoneiro quem desmascarou o ladrão. Reconheceu o instrumento do pai num anúncio nas redes sociais. Um arranhão aqui, uma tecla amarelada ali, marcas que nem o tempo apaga. A denúncia levou à captura do criminoso, e o destino dos instrumentos veio à tona: Rio de Janeiro, onde um receptador desmontava as relíquias e vendia as entranhas. Cada sanfona rendia sete, oito mil reais — sem contar o prejuízo sentimental, que dinheiro nenhum cobre.


Dizem que todo roubo revela tanto sobre quem o comete quanto sobre quem o sofre. E, pensando bem, também fui responsável por um — embora mais simbólico.


No sertão paraibano dos anos 1960, tentei ser digno de uma sanfona. Comprada em loja, com nota fiscal e tudo. Mas nunca fui íntimo delas, nem de qualquer outro instrumento. Se dependesse de mim, Zé do Queijo teria que repensar a profissão — talvez tentasse a sorte como açougueiro, camelô, funcionário público ou, quem sabe, se arriscasse em crimes de menor musicalidade.


Minha desarmonia com a música não foi por falta de incentivo. Meu pai, bancário por ofício e boêmio doméstico por vocação, tinha seu ritual nas manhãs de sábado: cervejinha gelada numa mão, enceradeira na outra, deslizava sobre mosaicos ao som de Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga e outros mestres. Depois, cuidava das margaridas e das rosas no jardim com o mesmo carinho devotado à mulher da vida dele.


Talvez, ao me ver fascinado por aquelas cenas, tenha enxergado no filho um prodígio musical na prole. Apostou alto: uma sanfona de 80 baixos e uma professora para me iniciar nos mistérios do Método de Acordeão Mário Mascarenhas.


Foram quatro meses de tortura. Eu, travando batalhas inglórias contra bemóis e sustenidos, enquanto o peso da sanfona esmagava minhas costelas e pernas magras, e a lentidão dos ponteiros do relógio da casa da professora fazia inveja à eternidade. Lá fora, o rock’n’roll já cochichava nos meus ouvidos — Beatles, Jovem Guarda — e eu queria mesmo era uma guitarra elétrica. Algo inaceitável para um pai amante da música genuinamente brasileira.


Optou-se por não insistir com as aulas — e, não vou negar, fiquei bastante contente. Preferia criar passarinhos, jogar bola, roubar goiaba, tomar banhos de açude, chuva ou rio, zoar os irmãos.


Só algum tempo depois entendi: tem pais que projetam nos filhos os sonhos que nunca realizaram. O meu, que nunca jogou futebol, nunca montou a cavalo, nunca nadou, nunca pedalou, nunca tocou um instrumento, viu no filho mais velho a chance de quebrar a sina. Quase deu certo.


Ao roubar sanfonas, Zé do Queijo silenciou músicos e sepultou esperanças. Eu, sem querer, fui cúmplice de outra espécie de roubo: deixei que uma sanfona — comprada a delírios e prestações — levasse embora o sonho de meu pai de me ver tocando um baião, um bolero, um forró.


Quantos de nós, sem querer, já não silenciamos o sonho de alguém? Do pai, da mãe, dos avós... Gente que só queria tocar bonito a vida pelos nossos dedos — e teve que se contentar com o silêncio.


Às vezes, a gente nem percebe quando vira ladrão dos sonhos alheios. E esse tipo de roubo nem cadeia dá. Só arrependimento, desgosto e saudade.

maio 11, 2025

O mal de quem cuida bem

Li uma matéria num portal de notícias e um dado ficou martelando na minha cabeça como coisa mal resolvida: as mulheres sofrem o dobro de depressão que os homens. Segundo os números oficiais, 5,1% das brasileiras enfrentam o transtorno, contra 2,6% dos marmanjos. Estatística fria, mas com cheiro de queimado. Tem algo bastante injusto nessa conta.


Fotografia: Dedé Dwight


Os especialistas tentam explicar com jogo de palavras: carga genética, fatores hormonais, influência cultural, oscilação emocional. Falam de tensão pré-menstrual, gravidez, menopausa, da tal “dupla jornada” — que já virou tripla, se contarmos os boletos pagos e os filhos criados ao lado de homens que acham que “ajudar” é guardar as camisetas limpas e avisar quando o gás acabou.


Enquanto isso, eles seguem repetindo que “não têm tempo pra essas frescuras”. E vão empurrando a vida com a barriga — literal e metaforicamente. Não porque sejam mais fortes, mas porque foram treinados para acreditar que chorar é fraqueza. Sentir, então, nem se fala. Melhor “tomar umas” e mudar de assunto.


É curioso. Elas são, em geral, mais sensíveis, mais abertas ao diálogo, mais cuidadosas com tudo — até com plantas. Percebem rachaduras invisíveis e ainda se culpam por não evitar o desabamento. Mesmo assim, são elas que mais adoecem.


Eles, ao contrário, parecem imunes. Não engravidam, não sangram todo mês, não perdem tempo em fila de ginecologista ou se apalpando debaixo do chuveiro. Se precisam de um banheiro na estrada, qualquer um serve. Rugas viram charme, barriga é “sinal de fartura” e cabelo branco, “estilo”. Se um amigo os chama de “careca” ou “baleia”, respondem com um “tamo junto, irmão” e mais uma cerveja.


A vida deles cabe numa mochila: três cuecas, um par de chinelos e uma camisa xadrez que serve para reuniões, aniversários e enterros. Se aparecem três iguais numa festa, ainda saem na selfie da “confraria dos brothers”. Se esquecem de convidá-los, agradecem. Menos uma obrigação social, menos um banho.


Já elas… elas ensaiam a roupa, o cabelo, a maquiagem e o sorriso. Calculam o tom da base e da voz. Passam horas se preparando para sair — e outras tantas tentando ignorar o que podem ouvir quando chegam. “Você parece abatida, amiga?” — e lá se vai metade da energia tentando disfarçar um cansaço com CPF, RG, e nenhuma folga.


Eles não depilam a virilha com cera quente. Não escaldam o couro cabeludo com secador. Não gastam com cremes que prometem devolver a juventude e a dignidade. E ainda soltam que “gostam de mulher natural” — entre um arroto e outro, com o prato sujo na pia. Miseráveis! Embora sejam as criaturas mais parecidas com os seres humanos.


Quando estão tristes, resolvem beber. Quando estão alegres, também. Quando querem desabafar, bebem. Quando não querem dizer nada, bebem mais. E voltam pra casa acreditando que está tudo certo, porque as contas estão pagas, ninguém pediu divórcio e o IPTU ainda não venceu.

 

E se tudo desaba? Nada muda. Continuam rindo das próprias piadas, evitando perguntas difíceis e pagando a mensalidade da existência com juros de silêncio. Até que, um dia, alguém os encontra dormindo para sempre dentro do carro, numa estrada qualquer. Calados até o fim.


Foram treinados para isso: silenciar a dor, esconder a fragilidade, negar o colapso. O que chamam de força é só orgulho fantasiado de armadura.


As mulheres, não. Quando não aguentam, choram. Quando ainda aguentam, choram também — no banheiro, em silêncio, enquanto o feijão ferve, o filho grita e a notificação do condomínio avisa que a taxa venceu.


Sabem que a vida cobra. E cobra caro: em parcelas diárias, com juros emocionais e correção monetária pela inflação do isolamento.


Talvez adoeçam mais por isso: porque não aprenderam a fugir de si mesmas. Porque não se deram o luxo da alienação. Porque, exaustas, seguem acordando cedo, resolvendo o que ninguém vê, segurando o que ninguém agradece.


Sim, os homens quase nunca deprimem. Talvez porque estejam ocupados demais fingindo que estão bem — enquanto afundam devagar, com a boca seca e o controle remoto na mão.


E elas, mesmo esgotadas, seguem inteiras. Inteiras, mas cansadas. 


Cansadas, mas em pé. Em pé, mesmo quando o chão desaparece.


Sozinhas. Às vezes, mesmo de mãos dadas.

maio 07, 2025

Linha cruzada com o passado


Fotografia: Dedé Dwight

Esses dias, do nada — ou do tudo que mora entre o suspiro e o tédio — me veio à cabeça uma antiga namorada do começo dos anos 1970. Lembrei dela não pelo cheiro do perfume ou pela caligrafia nos bilhetes, mas por causa de um número: 3-4426. Quatro algarismos precedidos por um “3” que parecia arrastar os pés. Simples, não? Um número que hoje, se digitado num celular, talvez acione uma central de televendas ou um mototáxi na cidade onde vivo.


Naquele tempo, telefone era artigo de luxo, quase um troféu exposto perto da porta da sala. Na casa dos meus pais, a linha não chegava nem com promessa aos céus. Quando a urgência apertava — uma dor de dente, uma notícia, um amor — eu batia na porta da vizinha, que exibia um orgulho mal disfarçado da linha dela, ou atravessava a rua até a padaria, onde o dono emprestava o aparelho como quem concede um mimo ao filho da cliente mais assídua no caderno de fiado.


Tinha também o orelhão, cinza e solitário, instalado a um quilômetro de casa, no posto de gasolina. Era preciso coragem para encarar o acostamento da avenida larga e sorte para achar fichas, aquelas relíquias metálicas que funcionavam como moedas mágicas. Três delas podiam invocar vozes distantes. Às vezes, dava certo. Às vezes, só dava ocupado. E a fila atrás de você, impaciente, formada por outros personagens tentando escrever seus próprios capítulos nas novelas da vida.


Um dia, a vizinha me chamou no portão:
— Corre aqui, tem ligação pra você!


Fui. Lá estava ela, plantada na sala, fingindo ajeitar a cortina, mas com os ouvidos mais esticados que os varais do quintal. Já sabia — ou pressentia — que se tratava de um namoro em ponto de ebulição. Queria o calor do espetáculo na primeira fila.


Atendi, disse “alô” com aquele nó que dá na garganta quando se tem quinze anos e medo de perder o que mal começou. Do outro lado, silêncio. E então, como num roteiro meloso de novela das sete, soou uma voz:
— Como vai você? Eu preciso saber da sua vida…


Era Roberto Carlos, mensageiro de luxo do adeus, entregando o que minha namorada não teve coragem de dizer. Depois da serenata telefônica, apenas um clic. Fim de chamada. Fim de capítulo de uma breve novela.


Fiz cara de quem só acabara de ouvir uma pesquisa de satisfação da companhia telefônica, agradeci a prestimosidade da vizinha e saí. Como quem esconde o coração no bolso e finge que foi uma ligação sem importância alguma.


Naquela época, telefone era ponto de encontro — e de embate. A linha principal ficava na sala de estar, por onde os fios entravam como raízes buscando a alma da casa. Depois vieram os ramais, e com eles os riscos: alguém podia erguer outro fone e se intrometer na conversa. Às vezes por acidente. Outras, de propósito. Mas quase sempre dava confusão. O anonimato das linhas cruzadas era tentador — e, confesso, vez por outra me rendia à molecagem. Mesmo sabendo que a vida já se encarregava de pregar as suas.


Semana passada, vejam só, me peguei com um pensamento intrusivo desses que chegam sem convite e se instalam feito espinho de peixe na garganta em véspera de festa: e se eu discasse aquele número de novo? Claro, acrescentaria os dígitos da modernidade — DDD, nove, talvez até um código interestelar. Mas e se alguém atendesse? E se fosse a própria voz da memória, perguntando por que demorei tanto a dar sinal de vida?


Fiquei com o dedo suspenso sobre o teclado do celular por alguns segundos, mas não apertei. Porque há números que, se discados, não chamam fora — chamam dentro. Não alcançam outro aparelho. Alcançam a gente.


Cada dia que passa, estou mais convencido de que o passado é um bairro onde a gente até pode voltar pra rever a paisagem, mas não deve tentar morar de novo. Algumas casas ainda estão de pé, mas os moradores se mudaram. Ou desapareceram na poeira do tempo. Ou estão escondidos dentro da gente, ocupando um quartinho com janela aberta pro coração.


E não adianta procurar orelhão. O que mais faz falta, mesmo, é alguém do outro lado da linha querendo ouvir a gente perguntar:
— Como vai você?

abril 30, 2025

O peso do sim e o doce da culpa

Ilustração: Uilson Morais (Umor)

Durante anos, os ovos carregaram o rótulo de vilões das artérias. Um só — dos grandes, de gema graúda — vinha com quase 200 mg de colesterol na bagagem. Bastava quebrar a casca e lá estava o medo, junto com a clara e a gema, na frigideira. Os médicos juravam que o colesterol do ovo ia direto pro coração, feito boleto de taxa extra de condomínio em mês de IPTU.


Mas o tempo, esse velho cheio de novidades, tratou de desmenti-los. Descobriu-se que o impacto do ovo no sangue era quase tão inofensivo quanto água de pote. Hoje, é fonte de proteína, gordura das boas e de umas tantas vitaminas e minerais. Quase um santo, não fosse o preço, que virou pecado capital na mesa dos mais humildes.


Eu sempre soube. Nunca me curvei à patrulha dietética. Desde que me entendo por gente, gosto de ovos mexidos — sem sal, mas com queijo ralado, vinagrete e pimenta moída. E até onde sei, sigo respirando. O que, por sinal, me dá o direito de me gabar dos ovos que nunca deixei de comer.


Agora, o novo bode expiatório da mesa são os adoçantes. A Organização Mundial da Saúde, sempre cautelosa em suas diretrizes, desaconselha o uso dessas gotinhas e pozinhos mágicos na cruzada contra a balança. Diz que, além de não ajudar a emagrecer, o uso prolongado pode abrir as portas do inferno: diabetes, doenças cardíacas e, quem diria, até morte prematura — embora eu nunca tenha entendido bem como se mede a tal "prematuridade" da morte.


Tem de tudo na lista de condenados: aspartame, sacarina, stevia, sucralose... até o "zero" dos refrigerantes entrou. Pois é: mudam os rótulos, mas a culpa nunca sai do cardápio. Ela se disfarça de conselho médico ou moda passageira, mas está sempre ali, espreitando.


Foi pensando nesse peso invisível, que adoça e amarga nossas escolhas, que me veio à memória um café da manhã em Petrolina, capital da Califórnia brasileira — daqueles temperados com flores, suspense e o preço de um "sim".


Eu, representando um grande banco numa missão delicada, acabara de sair de uma reunião onde produtores rurais tentaram me crucificar pelo que acontecia na economia. 


Na saída, fui abordado por um senhor de chapelão, bigodes fartos, fala grave e porte de quem não pede: convoca.

— Gostaria de recebê-lo pro café da manhã em minha casa.


Cogitei recusar. Viajaria logo cedo para o Recife. Mas coronel, quando cisma, não há argumento que dobre:
— Tudo bem, estarei lá.


Acordei achando que ele tivesse esquecido. Mas lá estava o homem no portão: seis em ponto, paletó de linho branco, um bugarim branco na mão.
— Sabe que flor é essa? — perguntou, mais sedutor que o falecido cantor Wando.
— Não faço ideia.
— Bugarim. Todo dia colho um pra minha mulher. Flor tem disso. Precisa ser vista antes que murche.


Entramos. A mesa era um altar à abundância: bolos, cuscuz, frutas, guisado, linguiça, munguzá, ovos e tapioca. No meio do banquete, ele gotejou adoçante no café:
— Peso é coisa séria, né?


A ironia escorreu pelos cantos da boca do homem. Mal afogara o bigode na gordura e já posava de comedido. E entre um gole de café e uma tragada de charuto, ele chegou ao ponto que queria:
— Não gostei do seu "não" no caso do meu compadre, de quem sou avalista. Onde já se viu negar o parcelamento das dívidas de um homem sério como ele?


Expliquei que banco é bicho desconfiado. Lida com "sim", "não" e "depende". E que, se o compadre dele quisesse mesmo renegociar, precisava trazer uma proposta melhor, amortizar um pedaço. Nada de querer desconto no saldo da dívida. 


Mas o coronel insistia:
— O "não" é a noite, escurece tudo. Só o "sim" ilumina, constrói, dá graça às flores…


Pensei — mas calei, que não era doido: até a flor mais bonita murcha se for regada a calote. Expliquei que qualquer banco só dá desconto nesses casos quando o devedor está sem eira nem beira. Não quando tem avalista robusto, capitalizado. Ele resmungou, mas fez o que o bom senso mandava:
— Vou convencer meu compadre. Onde já se viu querer desconto tendo por trás um avalista de primeira?


Não sei se a dívida foi paga, renegociada ou morreu esquecida em alguma vara judicial. Sei que, trinta anos depois, o coronel já não está entre nós. Mas os bugarins brancos continuam florindo na Califórnia brasileira.


Nos despedimos. Antes de embarcar, ele recitou, como quem sabia que todo café, todo "sim" e toda culpa têm o mesmo destino:


A vida é doce
e doce é sua doçura.
Tão doce talvez não fosse
se, entre goles e flores,
não coubesse amargura.


Pois é. A vida é esse café coado às pressas: doce o bastante pra consolar, amargo o suficiente pra não nos deixar esquecer que, no tempo certo, até o que pesa, passa.

abril 23, 2025

Bouquet de confusões


No reino animal, há quem corra, quem morda, quem grite e… quem feda. Claro, o fedor também é arma — e das mais eficazes. Especialmente entre mamíferos, que aprenderam, ao longo de milênios, que nem todo predador está pronto para encarar, digamos, um gás lacrimogêneo natural.


O gambá, por exemplo, é um franco-atirador perigosíssimo. Quando ameaçado, gira o traseiro como quem diz “pega essa garapa!” e dispara um jato fétido com a mira de velho jogador de sinuca. Pode atingir mais de três metros e, se acertar nos olhos, o inimigo se despede temporariamente da visão. E, se tiver olfato, perde inclusive a dignidade. O problema é que o “arsenal” precisa de dez dias para recarregar — ou seja, é melhor ser bom de pontaria. Ainda assim, há quem o enfrente: uma certa coruja ousa atacá-lo pelas costas, como quem diz que nem todo odor amedronta quem voa acima da linha do bom senso.




Na semana passada, o espírito do gambá baixou no circuito profissional de tênis. Durante o WTA 250 de Rouen, na França, a britânica Harriet Dart, 28 anos, perdeu o jogo e a compostura. Revoltada não só com o placar (0-6 e 3-6, uma derrota inquestionável!), levantou-se no segundo set, apontou discretamente o nariz para o céu e se queixou à árbitra: “Você pode pedir pra ela usar desodorante? Ela está com um cheiro forte!”


A adversária, Lois Boisson, 21 anos, francesa, jogava com foco, garra e, aparentemente, um bouquet olfativo com notas que não agradaram as narinas aristocráticas da britânica. A conversa vazou para os microfones de quadra e rodou o planeta com mais velocidade que os saques trocados entre ambas.


Resultado: Harriet perdeu o jogo, a elegância e talvez alguns patrocínios. A WTA ainda estuda uma punição por comportamento antidesportivo. Ela, então, correu para o Instagram com um pedido de desculpas que mais parecia bula de antisséptico: “Foi no calor do momento, me arrependo profundamente, tenho muito respeito pela Lois e pela forma como competiu hoje.” Quem tem... nariz, tem medo!


Já Boisson, essa sim com fair play e pitadas de humor, postou uma montagem no Instagram: ela ao lado de um desodorante Dove, marcando a marca e sugerindo um “collab” — parceria entre marcas e/ou pessoas para criar algo inovador. Deixou a britânica e suas narinas na poeira da história, perfumada pela ironia.


Mas se no tênis a classe costuma ser obrigatória até no suor, no futebol o cheiro de confusão às vezes vem de fábrica — e não é só do vestiário.


Há dois anos, durante um Bayern x Manchester City pela Champions League, câmeras flagraram o alemão Leon Goretzka visivelmente incomodado com Erling Haaland. O norueguês sorria, alisando a barriga, enquanto Goretzka tampava o nariz. A legenda da TrollFootball sugeria um protesto inusitado: “Haaland soltou um toda vez que nos aproximamos. Isso não é futebol!”


Não há provas de que essa flatulência tenha sido planejada como estratégia ofensiva e defensiva ao mesmo tempo, mas não se pode descartar um plano tático de guerra química. Aqui, os meios justificam os fins.


Em 2015, o brasileiro Diego Costa acusou o britânico Ryan Shawcross de exalar odores “curiosos”. A história, claro, viralizou — e virou propaganda. Uma marca presenteou o atleta ofendido com desodorantes e o transformou em garoto-propaganda. Ficou cheirosamente famoso.


Oito anos depois, já no Botafogo, Diego provou do próprio suor. Em São Januário, no Rio, enfrentando o Vasco, trocou empurrões com o chileno Gary Medel. O zagueiro vascaíno reagiu de forma inesperada: tapou o nariz com uma das mãos e abanou com a outra, como quem repele mau cheiro. Ambos levaram cartão amarelo.


Curioso como o fedor, que começa como ataque ou defesa, acaba revelando sua vocação mais nobre: a de guia invisível da memória. O cheiro tem dessas — arrasta a gente para o passado, desde o colo da avó, passando pela mesa da infância, até a roupa de cama que ainda guarda um abraço que já se foi. Cheiro é saudade em estado puro e gasoso.


Dias e ventos melhores soprarão para os viventes de boa vontade, com fragrância de bom senso, pitadas de cortesia e, quem sabe, um toque cítrico de respeito ao próximo. Porque civilidade não deveria ser como desodorante em spray: age por algum tempo, evapora rápido e, quando mais se precisa, já foi embora sem dizer adeus. E o pior: às vezes deixa só o rastro do que tentava esconder.

 

 


Entre o replay e o risco de avançar

Sábado passado, após mais uma rendição ao pecado da gula — desta vez com a feijoada do Empório da Mata , no Jardim Botânico, em Brasília —, ...