terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Achados e perdidos


Quem nunca passou pela angústia de ter um filho ou um irmão perdido na multidão,  no shopping, na feira livre ou na praia? Para Einstein, "só há duas maneiras de viver a vida: a primeira é vivê-la como se os milagres não existissem; a segunda é vivê-la como se tudo fosse milagre." 

A primeira vez que vi o mar foi aos 12 anos, no início de 1970, em frente à AABB Maceió. Meus pais se esforçavam para cuidar de nove filhos espalhados na areia, onde uns rolavam, outros faziam castelos e os mais ousados, afeitos à correnteza do Rio Mundaú, arriscavam molhar os braços e as canelas finas na espuma das marolas, encantados com o céu e o sol daquela manhã de domingo. 


Minha mãe, responsável inclusive pela “segurança alimentar” daqueles matutos, trazia numa sacola mangas-espada e bananas-prata, além de algumas garrafas de água potável. Tudo transcorria muito bem até minha irmã Zuleide (Galega, seis anos) desaparecer naquela multidão de rostos e corpos desconhecidos.



“Galega! Galega!”, gritava uma mãe  desesperada com a possibilidade de nunca mais encontrar a filha, sem saber se corria no rumo da favela de Ouricuri, da Praia da Avenida ou, no pior dos mundos, se procurava a menina nas ondas traiçoeiras da Praia do Sobral, que já era tida como uma das mais perigosas da cidade. E os irmãos, assustados e confusos, entreolhavam-se sem saber o que fazer, temendo agravar o quadro numa eventual dispersão.

Três anos antes, numa daquelas comilanças ao ar livre na zona rural de Patos, no Sertão paraibano, a família já havia passado por agonia parecida quando meu irmão Hélder (Dula, cinco anos, à época), ao perseguir alguns perus, embrenhou-se na mata e não soube mais retornar. A aflição foi enorme porque não se tinha a mínima ideia de onde começar a procurá-lo naquela caatinga cheia de espinhos.

Milagres acontecem. Na praia, Galega foi encontrada meia hora depois nas proximidades do Club Fênix Alagoana, sob a proteção do Corpo de Bombeiros. Na mata, o caso Dula havia sido mais complicado. Meu pai precisou mobilizar alguns vaqueiros a fazerem uma varredura como se procurassem um bezerro desgarrado, até localizar a criança, de tardezinha, dormindo à sombra de um juazeiro, com fome, sede e cansado de tanto soluçar em vão.




Vinte e um anos depois, em 1991, foi a vez de Hélio (Lica, 31 anos). Ninguém desconfiava de que ele desenvolvera um aneurisma cerebral - dilatação anormal de um vaso sanguíneo por perda de elasticidade - que se rompeu justamente numa manhã de sábado, quando se divertia jogando futebol com colegas de trabalho no campinho do clube recreativo da Caixa Econômica, em Riacho Doce. Mesmo forte e novo, ele não conseguiu recuperar-se da intensa hemorragia craniana que lhe fez desaparecer para sempre da mesa em que almoçávamos, quase todo sábado, na velha casa da Gruta de Lourdes.

Todos nós sofremos e choramos, cada qual do seu jeito, o martírio daquele novo desaparecimento em nossa família, ainda que alimentássemos a esperança de que um bombeiro, um vaqueiro ou até mesmo um neurocirurgião nos traria ele de volta. Nem tanto por nós, que já éramos bem crescidos, mas pelos seus filhos inocentes que, assim como o próprio Hélio (Lica), ficaram órfãos de pai antes da hora. 


Milagres nem sempre acontecem. Viver é sobreviver para colecionar memórias  numa gaveta de achados e perdidos que temos dentro de nós.



quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Palavra de coronel


Há 33 anos, o Brasil convivia com uma inflação descontrolada de 15% ao mês. Mergulhado na mais completa incerteza sobre como sair daquela situação, o governo Sarney lançou o “Plano Cruzado”, em 28 de fevereiro de 1986, tentando arrumar a economia com congelamento de preços, salários, além de tabelamento de juros bancários. Queria também colher frutos nas eleições marcadas para o final daquele ano, quando o PMDB fez 22 governadores em 23 possíveis e fez a maioria dos senadores, deputados federais e deputados estatuais eleitos.


Um mês antes, desconfiada do que poderia acontecer ao dinheiro que vinha poupando com enorme sacrifício, Dona Madalena, minha sogra, pediu-me para ajudá-la a adquirir uma casa de praia, de preferência em Paripueira(AL), onde pudesse investir, o mais urgente possível, tudo o que ela e Seu Terto, meu sogro, conseguiram economizar ao longo de vários anos.

Naquela mesma semana tomei conhecimento de que um certo coronel reformado da Polícia Militar de Alagoas, aborrecido porque sua esposa, já idosa, havia trabalhado demais, no domingo, recebendo filhos, genros, noras e amigos, decidira colocar à venda aquele sobradinho de esquina que minha sogra já admirava há algum tempo.

Fui então procurar o coronel e, em menos de meia hora de conversa, chegamos a bom termo quanto ao valor e à modalidade “porteira fechada” (somente os donos sairiam; nada seria retirado), ficando acordado, verbalmente, que o pagamento e a transferência em cartório da propriedade do imóvel aconteceria no dia 20, como me pedira minha sogra, que contava com a próxima rodada de juros e correção monetária da caderneta de poupança.

Se havia rumores de que aplicações financeiras com rendimentos altos estavam com dias contados e de que não mais valeria a pena manter dinheiro em poupança, era de se esperar que a família do vendedor o pressionasse a desistir do negócio, até porque não havia nenhum documento assinado. Achei prudente, então, conversar a respeito com Dona Madalena e sugeri que fôssemos ao coronel para ratificar o compromisso que assumi em nome dela, se possível adiantando uma parte do pagamento, o que dificultaria eventual desistência.

Ela, de uma sagacidade impressionante, mesmo sem nunca haver explorado seu tino comercial como poderia, entendeu rápido o cenário e o motivo de minha preocupação. Foi até seu quarto de dormir, raspou o que havia no cofre e me pediu para apresentá-la ao vendedor naquele dia mesmo, quando daria de sinal 20% do valor do imóvel.

À noite, ainda no portão da casa do vendedor e antes que fosse por mim apresentada, minha sogra antecipou-se de uma forma fulminante, concisa, clara e objetiva: “... muito prazer, coronel, eu me chamo Madalena Veras e pelo que sei palavra de coronel não volta atrás, não é mesmo?” 

O velho militar arregalou os olhos, engoliu seco, cumprimentou-a com breve aperto de mãos e nos convidou a entrar e sentar. Em alguns minutos, ele e a esposa assinaram em silêncio o recibo de compra e venda que eu, testemunha do negócio, preparei ali mesmo com minha Olivetti Lettera 32. 

Três meses depois, numa manhã de domingo, o coronel passava diante de sua antiga casa de praia quando foi convidado pelos meus sogros a beber uma dose de uísque com água de coco e camarão acebolado. Aparentemente refeito do “xeque-mate” que sofrera, estava em paz e falava sobre a nova obra que estava construindo ali perto, no momento em que olhou para Dona Madalena e nos revelou: “...naquela noite, eu sei que perdi dinheiro, que arranjei uma briga feia com meus filhos, genros e noras, mas não podia, de maneira nenhuma, deixar uma mulher corajosa como a senhora ter dúvidas quanto a minha palavra na frente de minha família!”



segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

“Tá na mesa!”


Assim gritava a plenos pulmões Dona Eudócia, minha mãe, por volta do meio-dia. Esse grito de guerra, vindo da cozinha da casa onde morávamos, na Gruta de Lourdes, em Maceió, tinha o condão de juntar, em fração de segundo, um time de crianças salivando em torno dela. De banho tomado, cheirosa, ela servia orgulhosa suas crias, convicta, sem qualquer falsa modéstia, de suas habilidades culinárias.


Vi minha mãe certo dia se vestir de santa das causas impossíveis e operar uma versão caseira e bem temperada do milagre bíblico da multiplicação de pães e peixes. Não com arabaiana, carapeba, cavala ou cioba, peixes de primeira qualidade que já custavam os olhos da cara na Maceió dos anos 70, mas com ovos de galinha, boa vontade, engenho e arte.

Sim, com meia dúzia de ovos, alguns cubinhos de charque, dois tomates, uma cebola, meio pimentão, alfaces e ervilhas, ela preparou alguns omeletes com requintes de crueldade para com a vizinhança, que só ficou no cheirinho de comida boa que se espalhou pelo ar.


O suco gelado de maracujá e as sobras recicladas de arroz, feijão e farofa, ajudaram a vencer o desafio de alimentar toda a família naquela quinta-feira-feira, quando o estoque da velha  “frigidaire” já atingira o chamado “volume morto” e apresentava sintomas de falência de múltiplas gavetas. 



Lá em casa nunca fomos de nos abraçar ou beijar. Essas manifestações de afeto só apareciam no ninho da “Juremada” nos primeiros meses de vida, até a chegada do próximo irmão. Afeto e carinho pra valer sentíamos quando nossa mãe, logo cedo, nos oferecia pamonha, canjica, coalhada, tapioca com coco ralado ou cuscuz com ovos estrelados. Aí bastava uma xícara de café preto bem quente pro dia nascer feliz, até a hora do almoço, quando ouviríamos o grito de guerra novamente: “tá na mesa!”.

Há poucos meses ouvi meu neto dizer: “vovô... você faz a melhor sopa do mundo”; e a irmã completar: “só vovô sabe fazer o bolo de milho que eu gosto”. Generosidade pura dos dois, talvez por conta da fome naquele momento, quando me veio a ideia de escrever esta crônica sobre a lição básica que aprendemos todos com Dona Eudócia, bisavó deles, pós-graduada com louvor na universidade da vida, hoje no esplendor de seus 80 outubros. 


Porque desde que o mundo é mundo, “não existe amor mais sincero do que aquele pela comida” (George Bernard Shaw, 1856 - 1950). Das primeiras gotas do leite materno ao mingau de aveia na velhice - nesse último caso, quando se tem o privilégio de chegar lá.


sábado, 9 de fevereiro de 2019

Coincidências acontecem


Miguel Falabella, ator, dramaturgo, diretor, cineasta e escritor, costuma dizer que “as coincidências às vezes são soluções que a vida encontra pra mudar o rumo da história.” Esse diálogo, ocorrido em fevereiro de 2003, talvez comprove essa tese:

- Achei interessante, Paulo, o ‘discurso’ do novo superintendente do banco aqui em Brasília. A gente sempre recebe nessas horas mais planos e metas, cobrança por mais resultados...

- Como assim, Heloísa?

- Falou apenas da vida dele, desde Maceió, passando por Recife, Salvador, até chegar em Brasília. Diz que isso vai facilitar a conversa, daqui para frente, já que todos os gerentes irão saber quem ele é, por onde passou, onde errou, acertou...

- Heloísa, com esse nome... só pode ser um velho amigo de infância que não vejo há quase 30 anos”

Dias depois recebi de forma inesperada a visita de Paulo Cavalcante, que havia se transformado em pai de família e artista multifacetado - músico, cenógrafo, artista plástico, ator, cantor e compositor. Do adolescente com quem dividi cigarros, cervejas e sonhos, ficara a essência: um ser do bem, que gostava de desenhar e fazer amigos. Nem a hepatite crônica que, nos anos seguintes, evoluiu para cirrose e lhe fez um estrago terrível no fígado, foi capaz de apagar o brilho de seus olhos.

No início de 2010, o tratamento da hepatite já não fazia efeito e o estado de saúde de Paulo só piorava. Eu, àquela altura presidente da Cassi (plano de saúde que o assistia) e Magdala, minha mulher, que já vínhamos acompanhando o caso há tempos, ficamos bastante apreensivos com a gravidade da situação - aumento nítido do abdômen, icterícia acentuada, sinais de pré-falência hepática. Afinal, metade dos brasileiros que necessitavam de transplante de fígado morriam antes de conseguir doador.

Antes que as cortinas se fechassem e o espetáculo da vida terminasse sem aplausos - os médicos chegaram a comentar com Heloísa que mais um dia poderia ser fatal - , veio a notícia de que surgira um doador compatível e a cirurgia, com mais de 10 horas de duração, foi realizada com sucesso no Hospital das Clinicas da UFMG, em Belo Horizonte. Justamente no dia de meu aniversário, recebi o melhor presente que poderia desejar naquele momento: o show de nosso artista iria continuar.

Paulo diz que, se não fosse a luta sem trégua e o suporte afetivo que recebeu de Heloísa e das filhas Mariana e Ana Carolina, teria sido derrotado. Mas reconhece também que os cuidados (equipe médica, medicamentos, exames) e a boa-vontade com que a Cassi tratou cada demanda de seu caso foram decisivos para a vida normal que leva hoje em dia.

“Pois é, meu irmão, já somos sessentões mas não esqueço do dia em que nasci de novo... mesma data em que você nasceu...” lembrou-me Paulo no ano passado, na passagem de meu aniversário. Silenciei no momento, mas pensei: será que foi apenas coincidência tê-lo encontrado tanto tempo depois? E estar na Cassi na hora que ele mais precisava do plano de saúde?

Existem mais coisas entre o céu e a terra do que nuvens, estrelas e drones.



segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Meu pai um dia me falou...




De natureza triste, sorriso raro, franzino e míope, Agostinho, meu pai, logo cedo percebeu  que não teria braços para fazer o que meu avô, Pai "Simente", fazia junto com meus tios, agricultores de subsistência na zona rural de Colinas, no Oeste maranhense. Por isso, nem mesmo o choro sentido de minha avó, Mãe Sussu, conseguiu evitar que deixasse o sítio “Maravilha” ainda criança e fosse morar com tio Enoch (um de seus irmãos mais velhos) em Caxias, cidade onde estudou do ensino primário ao antigo científico. 

Bastante dedicado e estudioso, a ponto de vangloriar-se diante dos filhos, anos depois, de nunca haver perdido o “trono” de melhor aluno das salas de aula que frequentou durante a infância e a adolescência, quando se tornou adulto não teve condições financeiras para cursar uma faculdade - coisa de ricos, à época -, mas conseguiu ser aprovado no concurso do Banco do Brasil e, em 1954, aos 23 anos, iniciou sua carreira profissional bem distante de casa, na cidade de Itabaiana, na Paraíba.


Lá encontrou Eudócia, minha mãe, na flor dos 15 anos de idade, filha também de pequenos lavradores do Brejo paraibano, com quem casou e nunca mais deixaram de fazer filhos. Sem contar um abortamento, foram nove em 13 anos (entre 1956 e 1969, Haydeé, eu, Agostinho filho, Hélio, Hélder, Girlene, Zuleide, Kléber e Dayse), os dois últimos nascidos em Alagoas, para onde a família migrou no final dos anos 60, apoiando sua trajetória profissional até então ascendente - depois de algum tempo como chefe da carteira de crédito agrícola e industrial do BB em Patos, no Sertão da Paraíba, foi nomeado administrador do BB em União dos Palmares, Zona da Mata alagoana.

Trabalhador compulsivo durante a semana, relaxava nas horas de folga lendo revistas e livros, inclusive de fábulas, até os filhos adormecerem. Sentia prazer em sentar à mesa com toda a família para comer “Maria Isabel”, arroz puxado no alho com carne de sol picada. Gostava também de “passear” com a enceradeira pela casa, aos sábados, lustrando mosaicos enquanto ouvia Ataulfo Alves, Nelson Gonçalves, Orlando Silva e Trio Irakitan. Não perdia por nada o “Repórter Esso” nem jogos do Vasco, ouvindo transmissões de rádio numa época em que a TV não fazia a menor falta. E ainda arranjava tempo para dedicar às roseiras que cultivava no jardim com o mesmo carinho que devotava à musa inspiradora que criou a possibilidade de uma vida em família que a vida lhe negara quando criança.

“A honra e a dignidade de um homem devem ser preservadas a todo custo. Na escalada da vida, um escorrego é preferível que seja fatal”. Era o que estava escrito em curto bilhete que meu pai deixou para os colegas de trabalho, na gaveta de sua mesa, na penúltima sexta-feira de maio de 1972, quando decidiu que não voltaria a encontrá-los nunca mais. Naquele dia, recebera o contracheque do mês zerado, por compras antecipadas em supermercado, farmácia, lojas etc., com consignação em sua folha de pagamento. Onde arranjar forças para seguir em frente, humilhando-se a cada novo empréstimo feito junto a agiotas e dando cheque pré-datado em garantia? E se acabasse demitido por conta da emissão de cheques sem fundos?

Deprimido e não suportando rolar a bola de neve de dívidas que se formou desde que, em 1969, perdeu o cargo de confiança que ocupava no banco, reduzindo a menos da metade o salário até então bem ajustado com a numerosa família que formou, meu pai certamente pediu perdão a Deus, na missa de domingo à noite, na capela da Gruta de Lourdes, pela decisão de precipitar por conta própria sua partida, aos 41 anos de idade.

Até hoje nenhum de nós, mamãe, filhos e filhas, conseguiu esquecer por completo o grito coletivo de horror naquela manhã de segunda-feira, 22 de maio de 1972, quando deparamos com seu corpo inerte, tendo ao lado óculos, relógio, aliança e uma carta em que pedia: “Para Eudócia... No bolso de meu paletó preto tem uma relação de minhas dívidas... quero que avise a todos os meus credores que receberão o que lhes devo assim que o seguro for liberado pela Previ... Hayton e Agostinho Filho agora serão os homens da casa... perdão pelo que não pude fazer de bem... “ 

Ele sabia que o seguro de vida e a pensão vitalícia que deixaria seriam suficientes para, pelo menos, garantir o bem-estar material da esposa e filhos. E eu, aos 14 anos, revoltado sem motivo com o Banco do Brasil naqueles dias de luto, já contava com o apoio e o carinho  de Magdala, minha namorada até hoje, mas não conseguia ouvir no rádio uma certa canção sem encher os olhos d’água

"Meu pai um dia me falou /Pra que eu nunca mentisse/Mas ele também se esqueceu/De me dizer a verdade/Da realidade do mundo/Que eu ia saber/Dos traumas que a gente só sente/Depois de crescer/Falou dos anjos que eu conheci/No delírio da febre que ardia/Do meu pequeno corpo que sofria/Sem nada entender/Minha mulher em certa noite/Ao ver meu sono estremecido/Falou que os pesadelos são/Algum problema adormecido/Durante o dia a gente tenta/Com sorrisos disfarçar/Alguma coisa que na alma/Conseguimos sufocar/Meu pai tentou encher de fantasia/E enfeitar as coisas que eu via/Mas aqueles anjos agora já se foram/Depois que eu cresci/Da minha infância agora tão distante/Aqueles anjos no tempo eu perdi/Meu pai sentia o que eu sinto agora/Depois que cresci."

Quem poderia imaginar que, dois anos depois, aos 16, eu iniciaria minha própria trajetória no Banco do Brasil  (menor aprendiz para serviços gerais), lá permanecendo por mais de 40 anos? Meu filho certo dia me perguntou se durante todo esse tempo de banco eu não estava, na verdade, à procura de meu pai. Na hora, não soube o que responder, mas, hoje, eu não tenho nenhuma dúvida.



sábado, 26 de janeiro de 2019

Versões de nós mesmos


Toda quarta-feira eu e meu irmão Agostinho (Nena, para mim, porque quando nasceu eu não sabia pronunciar “nenê”) íamos ao mercado público do Parque Rio Branco, em Maceió, comprar carne, frutas e verduras, ali no início dos anos 70. Saíamos de casa ansiosos nem tanto pelos 6 km que separavam a Gruta de Lourdes - bairro onde morávamos - da feira livre na Levada, mas porque a revista “Placar”, para nós a revista mais importante daquela época, chegava às bancas justamente às quartas-feiras. 

Teríamos que subtrair do dinheiro da feira alguns trocados para comprá-la e devorar cada página, da capa à contracapa, muitas vezes ainda no ônibus que nos levaria de volta para casa. Nossa mãe, apesar do orçamento apertado - éramos nove filhos, sete em idade escolar - nunca percebeu a malandragem, mas nosso pai, tenho certeza, fazia vista grossa,  tão interessado quanto nós na leitura.

Até hoje o cheiro de tinta que saía da revista permanece intacto dentro de nós como um perfume caro. Sempre fomos apaixonados por futebol, desde os rachas diários nos campinhos de terra batida com amigos de infância, passando pelas noites de domingo, quando esperávamos até tarde da noite que a extinta TV Tupi exibisse os gols do final de semana no programa  “Ataque e Defesa”, sob o comando de Rui Porto.  E como esquecer as disputas de times de botão, com “craques” de acrílico feitos por nós mesmos? Bastavam dois discos, um colorido e outro translúcido, a imagem do craque recortada de “Placar”, seu nome de “guerra” e o número que usava na camisa do clube a que pertencia.

Certo dia apareceu no mercado um feirante vendendo frascos de uma mistura de álcool comum com gasolina, como se fosse um brinquedo. Com um chumaço de algodão, molhava uma folha de papel e, usando o fundo de uma colher de sopa, decalcava imagens de revistas velhas, reproduzindo-as de forma invertida, como se estivessem refletidas em um espelho. Balançamos quando vimos aquilo, naqueles tempos em que microcomputadores e impressoras não existiam nem em filmes de ficção científica.

Foi assim que descobrimos, por acaso, do que precisávamos para fazer a “cobertura jornalística” de nossos torneios de futebol de botão. Com folhas de cadernos de desenho e imagens extraídas das páginas de “Placar”, criamos “jornais” para um único leitor: eu lia o “Jortebol”, editado por ele, que lia o “Destaque”, feito por mim. 

O bicampeonato paulista de 1970-71, conquistado pelo São Paulo F.C., fez Nena virar tricolor doente, inspirando a confecção de seu timaço de botões: Sérgio, Forlan, Jurandir, Arlindo e Gilberto; Edson e Gerson; Terto, Pedro Rocha, Toninho e Paraná. Eu já era vascaíno, depois de ver nosso pai vibrar com a conquista do campeonato carioca de 1970, embalado pela magia da narração de Waldir Amaral e Jorge Cury, da Rádio Globo, que deu origem a meu time de botões: Andrada, Fidélis, Moisés, Renê e Alfinete; Alcir e Buglê, Luiz Carlos, Valfrido, Silva e Gilson Nunes.

Depois de uma partida de futebol de botões entre nós, Nena usava uma régua para alinhar a escrita com caneta esferográfica abaixo de algumas imagens decalcadas de “Placar”, e escrevia, por exemplo:
“ATAQUE FUNCIONA E TRICOLOR GOLEIA - O São Paulo massacrou o Vasco da Gama por 5 a 1, na noite de ontem, no Morumbi, com gols de Pedro Rocha (2) e Toninho (3). Buglê fez um gol de honra vascaíno. O tricolor fez mais uma partida espetacular, deixando os cariocas a ver navios ao assumir a liderança do torneio...”  

Na outra cabeceira da mesa de jantar, utilizando os mesmos recursos “técnicos”, eu escrevia sobre a mesma partida: 
“EM NOITE INFELIZ, VASCO PERDE - Numa noite marcada por vários gols perdidos por seus jogadores, e por erros grosseiros do árbitro da partida, o Vasco da Gama não teve como evitar a derrota para o São Paulo por 5x1, placar injusto e que de forma alguma traduz o que foi a disputa...”

Não é à toa que se diz que todos os fatos possuem três versões: a sua, a minha e a verdadeira. No nosso caso, o que de mais verdadeiro havia entre nós era o respeito ao que o outro escrevia, ainda que o desejo de rasgar a folha de papel que lia estivesse latente. A leitura e a escrita, assim, tornavam-se praticamente uma coisa só em nossas vidas, influenciados por jornalistas lendários como José Maria de Aquino, Lemyr Martins, Michel Laurence e Teixeira Heizer, todos de “Placar”.

Em março do ano passado li esta notícia que mexeu no baú dessas memórias: “Virtual Reality Football Club, primeiro jogo de futebol em realidade virtual, chega oficialmente nesta terça-feira. Desenvolvido e publicado pela Cherry Pop Games, o game inclui partidas online para até oito jogadores, partidas ranqueadas online e uma funcionalidade para criar jogos privados. Além das funcionalidades multiplayer, o título traz um modo offline de treinamento para que jogadores aprendam as principais jogadas, dribles e como se locomove pelo game. VRFC chega para o HTC Vive, PlayStation VR e Oculus Rift.”

O mundo mudou, eu e Nena mudamos. Fazer com lixa d’água botões de acrílico há quase meio século e disputar partidas inesquecíveis, dar asas à imaginação e fantasiar a realidade, nada disso nos transformou em jornalistas, escritores ou publishers, como sonhávamos. 


Resolvemos, alguns anos depois, ser bancários como foi nosso pai. Em todas as escolhas que fazemos, mesmo nas melhores, há perdas. Ser feliz é sobreviver à versão de nós mesmos que decidimos assumir.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Bolacha de Leite de Mãe de Jacaré



Nos anos 60, pelo menos uma vez por ano, papai, eu e meus irmãos esperávamos na plataforma da estação ferroviária de Patos (PB) o facho de luz e o apito do trem que traria nossa avó materna – mãe, para diferenciar de mamãe e porque nunca gostou de ser chamada de vovó – para ficar conosco algumas semanas no Sertão, longe do Sítio Jacaré, onde morava às margens do Rio Paraíba, na zona rural de Pilar (PB).


Vinha como de costume, com o coração dividido entre matar as saudades da filha e dos netos e deixar em casa seu primo e marido, nosso avô, que não arredava o pé do chão onde nascera por nada nesse mundo. Sofria também por ter que largar por alguns dias o tititi com que distribuía milho para galinhas e pintos em seu quintal.
Como não podia nos oferecer presentes caros, trazia sempre uma sacola com algumas broas escuras e cheirosas, embrulhadas em papel grosso, a que dava nome de “bolacha de leite”. Ela nunca concordou com os nomes pelos quais aquela iguaria que levava para seus netos era chamada na região: sorda, soda preta, bolacha preta, engasgador ou mata-fome.
Muito tempo depois, morando em Brasília (DF), já no final dos anos 80, presenciei meus filhos, entre beijos e abraços com minha sogra, receberem alguns brinquedos eletrônicos caros, e concluí que a felicidade deles em nada diferia da minha quando diante das tais bolachas de leite. Na semana seguinte, contudo, recebi a notícia de que Mãe de Jacaré havia falecido de repente e que já fora até sepultada. Lembro como hoje do travo em minha garganta e de algumas lágrimas que molharam os papéis com que trabalhava.
Ano passado, perambulando na Feira de Ceilândia, no Distrito Federal – espaço criado, em 1971, para reduzir a ocupação de áreas próximas ao Plano Piloto descobri que a bolacha que tomou muito mais doce minha infância ainda hoje é fabricada artesanalmente no Nordeste e não leva uma gota de leite sequer. E feita de farinha de trigo, mel de rapadura, manteiga, cravo, canela e gengibre.
Já na primeira mordida, a mesma sensação prazerosa de meio século atrás, mas com um ingrediente adicional: a lembrança do carinho com que Mãe de Jacaré, com sua marrafa nos cabelos longos, o olhar cintilante sob duas sobrancelhas espessas e o sorriso iluminado que me fazia esquecer todos os aperreios de criança, me abraçava apertado até doer às costelas.
Sabe-se que a angústia é uma sensação de vazio no peito, uma dor difusa que alcança a alma, aperta o coração, embrulha o estômago, às vezes mexe até com os intestinos, mas nunca se sabe de onde vem. Chega quando menos se espera, acompanhada de outros maus sentimentos tais como o medo, a ansiedade, o desassossego e a insegurança. Mas posso garantir que até hoje a indústria farmacêutica não criou remédio para essa agonia tão poderoso quanto a bolacha de leite de Mãe de Jacaré.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Capita... para sempre!


Aos 12 anos, diante da TV em preto-e-branco, vendo a final da Copa do Mundo 1970, na Rua da Vitória, bairro da Levada, em Maceió(AL), eu não sonhava ser Pelé, Tostão ou Jairzinho. Queria mesmo é ser Carlos Alberto Torres, habilidoso, clássico, que sabia como ninguém retomar a bola dos adversários e sair jogando com elegância, e que beijou e levantou a Taça Jules Rimet após o chute fulminante com que fechara os 4x1 contra a Itália. Se nunca consegui ser jogador de futebol, restou-me o consolo de, quatro anos depois, iniciar minha carreira profissional como office-boy em um banco.

Ainda bem que pude contar esta história, 43 anos depois, ao próprio capitão do tricampeonato mundial, em junho de 2013,  quando o conheci no Estádio Morumbi, em São Pulo, no lançamento do projeto "Brasil... um país, um mundo", exposição itinerante de acervo formado por peças históricas, como camisas usadas em jogos oficiais, troféus, medalhas e chuteiras, que passaria pelas 12 cidades-sede da Copa do Mundo 2014.

Fanático por futebol desde criança, daqueles que  “via” tudo pelo rádio e nas edições semanais da revista “Placar”, comentei com Carlos Alberto Torres que, em 1970, além dos 22 campeões mundiais que foram ao México, ficara no Brasil pelo menos outro elenco impressionante de craques. Ele concordou e, juntos, começamos a “escalar” quem seriam os titulares e reservas alternativos:  Ubirajara (Cláudio), Fidélis (Murilo), Scala (Jurandir), Djalma Dias (Roberto Dias) e Rildo (Paulo Henrique); Zé Carlos (Nei Conceição) e Ademir da Guia (Bráulio); Natal (Zequinha), Alcindo (Toninho Guerreiro), Dirceu Lopes (Eduzinho) e Abel (Lula).

Conversa vai, conversa vem, provoquei o Capita, como carinhosamente era chamado: “... é preciso certa dose de sorte, alem de talento, para se dar bem no futebol. Você, por exemplo, por jogar no Santos, nunca precisou enfrentar Edu, um dos melhores pontas esquerdas do futebol brasileiro. Já o coitado do Pablo Forlan, do São Paulo...”. Ele sorriu e rebateu de primeira, provando que o topo da sabedoria é alcançar a humildade: “Você só diz isso porque não sabe o trabalho que me dava Abel nos treinamentos. Hoje, não consigo mais ficar de pé nem 20 minutos porque meus joelhos ‘apodreceram’ de tanto drible que levei dele, desde quando eu jogava no Fluminense e ele, no Ameriquinha.” 

Há dois anos, numa manhã de outubro como outra qualquer, confesso que quis chorar quando me contaram que havíamos perdido essa lenda, no esplendor de seus 72 anos, vítima de enfarte fulminante. Comovido, me veio na hora Mário Quintana: “uma vida não basta ser vivida; ela precisa ser sonhada...”

domingo, 20 de janeiro de 2019

Brinquedos



A gente descobre mais cedo ou mais tarde que o tempo para ser feliz é breve e cada minuto que passa, passou. Aprendi isso cedo, nos dois anos que vivi em União dos Palmares, Zona da Mata alagoana, onde cheguei com meus pais e irmãos, em 1968, aos 10 anos de idade.

Não tive todos os brinquedos que sonhei, mas tive bem mais do que precisei, até o dia em que mudamos para Maceió (AL). Brinquei demais, vivi como se não fosse envelhecer. Joguei futebol-de-mesa (botões de casca de coco seco ou de capa de relógio), chimbra (bola-de-gude), finca (espeto de ferro) no chão, bafo de figurinhas repetidas, pião e ponteira. Mas nada me dava mais prazer do que marcar gols pelo “dente-de-leite” do Zumbi Esporte Clube, nas tardes de sábado, e, depois do racha, comprar por dois cruzeiros uma cocada de coco e uma garrafa d’água gelada.

Também mergulhei e pesquei cará, jundiá e piaba no Rio Mundaú, “cacei” calango com peteca de forquilha de goiabeira (estilingue), armei alçapão para pegar papa-capim, galo-de-campina, canário-da-terra,  brinquei de faroeste no quintal, desci ladeiras de carrinho de rolimã, roubei caju, goiaba e manga no sítio detrás do cemitério,  quebrei dente chupando rolete de cana caiana, deitei galinha choca em ninho de ovos de pata para ver depois a “mãe” agoniada com os pintos nadando na lama e ainda arranjei múltiplos apelidos para sete irmãos menores, pra desespero deles.

Essa apertada “agenda de compromissos” só era interrompida nos dias em que, revezando com alguns irmãos, ia à feira livre ajudar minha mãe a fazer compras, à padaria, à bodega ou levar lanche pro meu pai no trabalho. Era interrompida também quando o puxão de orelhas,  a chinelada, o cascudo ou a surra de cinto de couro, quase sempre por um motivo besta qualquer, ardia e me arrancava lágrimas.

Mesmo sem meu boletim escolar ser motivo de preocupação para meus pais, apanhar quase todo dia tornou-se experiência corriqueira e traumática para mim, não apenas pela dor física, mas porque abalou a confiança que deveria haver entre nós, base para me sentir amparado. E eu não poderia me sentir seguro se minha segurança dependia de quem se descontrolava com os aperreios de adulto. Aos poucos, aprendi a enganar, dissimular, mentir. E descobri várias maneiras de esconder o que sentia ou fazia temendo novas surras. Ninguém percebia, mas “eu era uma criança, esse monstro que os adultos fabricam com as suas mágoas”, como escreveu Sartre.

Sobre escola, confesso que nunca gostei de fazer “dever de casa”, depois de um turno inteiro em sala de aula. No Primário, surpreendi minhas professoras, pois só precisava ouvir ou ler algo uma vez para aprender e conseguir notas altas. Tanto que fui aprovado no temido Exame de Admissão - espécie de “vestibular” que havia para ingressar no Ginásio Santa Maria Madalena - com relativa facilidade, em 1969. Do Ginasial em diante, aí sim, quando misturaram números de aritmética com algumas letrinhas para resolução de problemas algébricos, já não foi tão fácil, mas a má vontade com “dever de casa” e o gosto pelas molecagens de rua foram preservados.

Cuidados com a saúde se limitavam a tratar verruga com leite de avelós, colocar gelo sobre as canelas para aliviar queimadura de urtiga e pomada preta “iodex” no dedão do pé, quase todo mês estropiado, correndo atrás de uma bola nos campinhos de terra batida. Vivia assoando o nariz, sempre escorrendo catarro empoeirado. A ancilostomíase (amarelão) e a esquistossomose (barriga d’água, doença do caramujo), resquícios das águas mornas do Rio Mundaú, só foram descobertas e tratadas algum tempo depois, na capital.

No fim da tarde, muitas vezes vi o sol se pondo na Serra da Barriga e imaginava como teria sido Zumbi, símbolo da resistência negra à escravidão, que liderou o Quilombo dos Palmares, comunidade livre formada por escravos fugitivos dos engenhos de cana-de-açúcar da antiga Capitania de Pernambuco, de que fazia parte Alagoas. Na minha inocência, me perguntava: seria alguém como Pelé, só que mais alto e mais forte, feito Maciste ou Spartacus das matinês de sábado, no cinema? Nunca encontrei uma resposta convincente.

Hoje, é difícil não concordar com o que disse Saramago no final dos anos 80: “Quero é recuperar, saber, reinventar a criança que eu fui. Pode parecer uma coisa um pouco tonta... um senhor nesta idade estar a pensar na criança que foi. Mas eu acho que o pai da pessoa que eu sou é essa criança que eu fui. Há o pai biológico e a mãe biológica, mas eu diria que o pai espiritual do homem que sou é a criança que fui”.

A gente acaba convencido, mais cedo ou mais tarde, de que o velho que hoje nos olha no espelho do banheiro não passa da casca que envolve uma criança ainda bem viva dentro de nós, vestida para o espetáculo da vida com seus novos brinquedos que surgem a cada amanhecer.