Faltava energia às 10 horas da noite de terça-feira, 26 de fevereiro de 1958, quando ele nasceu na maternidade do Hospital São Vicente de Paulo, em Itabaiana, na Paraíba, berço de grandes artistas como Zé da Luz, Sivuca e onde vive, atualmente, o grande Jessier Quirino.
Era uma criança tão feia que assim que a energia voltou o médico foi conferir se por acaso não teria jogado no lixo o pimpolho e deixado a placenta nos braços da mãe que, aos 19 anos, exausta, recuperava-se do esforço sobre-humano feito para expulsar aquela respeitável caixa craniana.
Nas 48 horas seguintes, aguardou-se para ver se não brotava algum apêndice caudal na figurinha cabeluda de pouco mais de 4 kg, chorona e de olhos tristes, que começava a bisbilhotar o universo em sua volta, sem entender de onde vinha nem para onde estava indo.
Era humano! Uma santa teria soprado aos seus ouvidos: “Calma! Só dói assim na descida e na subida; aproveite o vôo e boa viagem.”
A mãe jura que exageram quando tocam nesse assunto. Cabeça de mãe é tudo igual. Ela mesmo contou outro dia que, ao receber o filhote para amamentá-la pela primeira vez, indagou da freira responsável pelo berçário se não teria ocorrido alguma troca de bebês quando a luz apagou. O correr do tempo, o mingau de amido de milho, a tapioca, o cuscuz, o futebol e as braçadas em açudes e rios, melhoraram bastante a proporção entre cabeça, tronco e membros daquela criatura.
É claro que a mãe até hoje é grata ao filho porque sem querer facilitou a chegada suave dos sete irmãos seguintes. Interessante notar que não havia nada hereditário que justificasse o cabeção da criança. Nem mesmo uma possível ascendência cearense, região pra lá de distante do Oeste maranhense e do Agreste paraibano onde viveram seus ancestrais paternos e maternos.
Passados os dois primeiros dias, o pai foi ao Cartório Santiago Bandeira fazer o registro do nascimento tendo em mãos um documento fornecido pela maternidade onde escrito que se tratava de uma criança de cútis morena. Anos depois, um cunhado seu, pouquinho mais moreno, achou de perturbar o juízo da sogra exibindo o próprio registro onde consignado que nascera de cútis branca. A resposta foi curta e afiada feito coice de porco: “pelanco de urubu também nasce branco!”. De novo: cabeça de mãe é tudo igual.
O costume execrável de misturar nomes de pai (Agostinho) e mãe (Eudócia) para nominar recém-nascido aqui não daria certo mesmo: Agostócio ou Eutinho seria cruz de pau-ferro, pesada demais para os ombros do inocente. O pai até poderia homenagear — não quis assim — dois ídolos chamados Orlando: o quarto-zagueiro vascaíno, que integrava a seleção brasileira que viria a ser campeã mundial na Suécia meses depois; e o Silva, o cantor das multidões da época de ouro do radio, grande intérprete de “Aos pés da cruz”, “Carinhoso” e “Rosa”.
“Hayton”, na verdade, é sobrenome lá para as bandas do Reino Unido. Já o primeiro sobrenome é na verdade nome próprio nativo, de raiz: “Jurema”, que em tupi significa “arvore de espinhos de cheiro desagradável”. É planta comum no Nordeste, cujas folhas podem dar origem a um chá narcótico e alucinógeno. “Rocha”, último sobrenome, seguramente veio da Península Ibérica com os expatriados para Pindorama.
Ao resolver homenagear um colega de trabalho (Hayton Vidal dos Santos) que fora seu guru-orientador nos passos iniciais da carreira no Banco do Brasil, o pai não imaginava que o filho seria chamado de várias formas pelos professores a cada primeiro dia de aula nas escolas em que estudou: Ail-ton, Ei-ton, Rai-ton, Rei-ton, Uai-ton etc. Menos de Hayton (ái-ton). Só depois de breve explicação ninguém mais esquecia daquele nome, bem mais complicado, por exemplo, do que: Ciço, João, Raimundo, Tonho ou Zé.
O nome esquisito e o crânio levemente avantajado eram pratos cheios para "bullying", mas desde cedo o menino aprendeu a se defender de quem se atrevesse a lhe apelidar. Dotado de altura e força acima da média dos moleques de sua idade, possuía, além disso, respostas afiadas e cruéis na ponta língua para calar os buliçosos, a quem faltava coragem e imaginação para lhe chamar, por exemplo, de: Caixa d’Água, Estoura Gola, Lua Cheia ou Maçã do Amor.
Conseguiu atravessar ileso a infância e a adolescência, sem que lhe colassem nenhum apelido digno de nota. Mas, início dos anos 90, num belo dia em que acabara de mergulhar na piscina da AABB Salvador, uma irreverente cidadã carioca, tia de grande amiga sua, depois de uns bons goles de cerveja resolveu cutucar o gatão felpudo no esplendor de seus 33 anos para ver o que acontecia: “e aí, Cabeção, a água está boa?”
Ele fez cara de besta mas respondeu com outra pergunta, na lata: “com qual delas a madame está falando?” A própria sobrinha Sílvia, com o marido, vulgo Gasolina, ambos numa mesa com pelo menos dez pessoas, quase racham as costelas de tanto rir da coitada da Tia Odete. E entre acarajés, pilombetas e vatapás, a cerveja gelada rolou até a pôr do sol. Ainda não havia bafômetros estraga-prazeres a espreitá-los pelas ruas da Bahia.
A vida é assim mesmo. Quem tem orelha de abano, nariz de batata, olho de jipe ou boca da noite não escapa da zoação geral. Ser cabeçudo, porém, é o que mais tira um sujeito do prumo, principalmente depois de velho, quando a barriga cresce, os pelos caem e as canelas afinam.
Mas chega a hora em que o sujeito se dá conta de que tudo isso não passa de coisa de sua própria cabeça. É quando a vida lhe dá de presente mais um neto geneticamente perfeito, parecendo um pirulito cabeludo. E a mãe acha lindo. Tudo igual.