domingo, 15 de março de 2020

Cobrando a conta

Morto de cansaço e fome, Vieira chegava em casa  para o jantar quando seu filho lhe entregou um envelope com cara de quem cumpria uma missão importante: “Pai, a tia me pediu para entregar na sua mão. Quer que eu leve uma resposta até sexta-feira”.

Era a cobrança de mensalidades escolares em atraso, em tom de  ameaça, assinado pela diretora e pela tesoureira da escola. Vieira leu, engoliu seco e perdeu o apetite. Atrasaria qualquer conta a pagar  — prestação do imóvel, do carro etc. —, menos a que pudesse causar constrangimento ao filho.


Pior: não havia atraso algum. A transferência entre bancos via doc (documento de ordem de crédito) tinha sido criada no começo dos anos 80. Ele gostou da inovação e assim que recebia seus salários, transferia para a conta da escola o valor da fatura. Com o tempo escasso e dividido entre faculdade e trabalho, era a alternativa encontrada para não ter que se deslocar  todo mês à secretaria do colégio.
 
Vieira poderia ter sido mais elegante, politicamente correto. Chateado, no entanto, na manhã seguinte revidou com mão de chumbo, escrevendo no verso da cobrança recebida uma resposta curta, dura e grossa: 
 
“(...) Não devo nada!  Seguem os comprovantes de que transferi para a escola, nos prazos, os valores das mensalidades que me cobram.
Dinheiro não cai do céu. Se aparece na sua conta, procure identificar a origem no seu banco para evitar cobrança indevida, sobretudo através de portadores inocentes.
Não me cobrem mais dessa forma! Senão serei obrigado a mandar vocês enfiarem a cobrança no lugar onde macaco esconde castanha de caju (...)”

Teve sorte. Poderia sofrer processo judicial por injúria, misoginia ou, na pior das hipóteses, ser ameaçado de morte por alguém tomando as dores do revide no vale-tudo daqueles tempos. Só uma década depois, em 1990, surgiria o Código de Defesa do Consumidor para colocar alguma ordem “no recinto”.

Talvez as cobradoras não se deram conta quando ele se referiu ao esconderijo de castanhas do primata. Ou pensaram que fosse apenas uma alusão aos saguis que apareciam no cajueiro que havia próximo ao pátio de recreio. Para evitar novas cobranças, contudo, decidiu mandar pelo filho, todo mês, cópia do comprovante de transferência para a secretaria da escola. 
 
É verdade que, àquela altura do jogo, Vieira já andava de cabeça quente com a excessiva mercantilização da educação no país, a cobrar de pais de alunos, no começo de cada ano letivo, desde rolos de papel higiênico até caixa de fósforos, passando por garrafas, barbantes, pregos, velas etc., numa interminável lista de materiais supostamente escolares.
 
Também não engolia ver o filho ser cobrado pelas mesmas coisas que lhe exigiram nos anos 60, como aprender a ler soletrando sílabas ou a somar, diminuir, multiplicar e dividir, na ponta do lápis, como se as pequenas calculadoras que surgiam fossem modismo passageiro ou brinquedos eletrônicos descartáveis.

Mais tarde, seu filho ainda seria cobrado, assim como havia acontecido com ele, a decorar que “atmosfera é a camada de ar que envolve a Terra”, que “a raiz quadrada do número 1 será ele mesmo” ou que “duas ou mais retas paralelas  encontram-se no infinito”. Vieira esperava mais da escola, além de noções básicas de Ciências, Geografia, História, Língua Portuguesa e Matemática. 

Óbvio que não se tratava de terceirizar papéis 
— tinha consciência de que educar é tarefa compartilhada entre pais e educadores —, mas sonhava, por exemplo, que a escola lhe ajudasse a ensinar o filho a sentar ao lado dos que se sentiam sozinhos e precisavam de ajuda. A nunca se arrepender do bem que fizesse aos outros. A ser humilde e a encorajar os mais frágeis. A nunca se sentir dono da verdade nem ser egoísta. A se colocar no lugar dos "inimigos" num desentendimento qualquer. A não guardar mágoas, ressentimentos. 

Vieira sonhava receber da escola boletim com as notas do filho em "disciplinas" básicas como Compaixão, Generosidade, Inveja, Raiva, Resiliência, Solidariedade etc. Estava seguro de que é isso que diferenciaria uma vida plena de outra medíocre.

Viu com o tempo, no entanto, que, tal como lhe aconteceu no passado, foi a vida que educou seu filho — assim como faz agora com seu neto — pelo velho método de tentativas e erros de que todos os seres vivos se utilizam para criarem um mundo menos hostil. 

A escola aparece apenas para carimbar certificados e cobrar a conta. 

domingo, 1 de março de 2020

De pai para filho, às vezes

Reco do Bandolim (Henrique Filho) é músico, compositor, jornalista, radialista e produtor cultural.  Nascido na Bahia, radicou-se em Brasília desde os primórdios da Capital, onde cuida com zelo e talento do Clube do Choro, um dos templos sagrados da música instrumental brasileira. 


Há poucos dias compartilhou com amigos texto escrito por seu filho durante um voo que fizeram juntos, no começo do ano, de Salvador para Brasília. Texto que, segundo ele, discorre sobre uma manhã em que “Henriquinho se deixou diante do mar de Piatã”. Disse mais sobre seu filho, também músico e compositor: “... vive em Portugal, e meu coração, a um só tempo, feliz e aflito de saudades.”

Sob o título “Coração de Pedra”, Henrique Neto escreveu como se espalhasse notas musicais sobre um pentagrama:

“(...) Quando passo um tempo sozinho em frente ao mar sinto que reencontro alguma coisa que andava perdida. Acho que é uma certa sensação de transcendência que sua imensidão me causa e, ao mesmo tempo, por outra razão talvez ainda mais importante: o mar nunca se cansa de repetir seu balé. Milhões de anos repetindo o mesmo ritual, os mesmos movimentos e nada abala o desempenho do mar e seu prazer em somente existir. (Hoje em dia, com a quantidade ridícula de estímulos que temos a todo instante, ficamos com a impressão de que a repetição está associada necessariamente ao tédio. Que engano). Deve ser por isso que Caymmi gostava tanto de estar junto do mar. Ali, ele alimentava e renovava suas esperanças e se enchia de infinito que depois transformava em canções. 

Gosto muito de ver ele vir macio lá de trás, subir suas ondas, quebrar na praia, fazer sua espuma, recuar sua água e depois repetir a coreografia. E por mais tempo que passe olhando pra ele não canso de olhar. Parece que nada é banal naquele espetáculo e tudo tem um significado: o som das ondas, o recuo e o avanço das marés, a espuma que surge com a quebra das ondas... 

... O mar, com suas águas macias, não respeita (no melhor sentido da expressão) a força da rocha. Ele simplesmente envolve a pedra com a fluidez do seu bailado (...)”

                                      ***

Assim que fechei a leitura, quis dizer alguma coisa a Reco, mas eram pobres os adjetivos que me ocorreram para qualificar a beleza do texto, inspirado numa praia como outra qualquer, de águas um tanto frias e areia dura, amarelada, que conheço há anos.

Ah! Se ele, o autor do texto, soubesse das praias de Pajuçara e Ponta Verde — com sargaço e tudo! , onde quase todo dia vejo o sol chegando bem devagar, calado, a render a lua e a trazer no colo uma manhã vestida de esperança.

Ah! Se eu soubesse expressar como ele, com um violão nas mãos, o que transborda no coração dessa gente resignada que passa por mim logo cedo e vai em frente mesmo sem ter com quem contar, surfando nas alegrias e agonias de cada dia. 

Ah! Se eu soubesse, assim como o autor e o pai sabem, extrair de cordas sons tão caros e raros ao coração de quem se deixa diante do palco no Clube do Choro a lhes escutar. Nunca mais eu deixaria de tocar. 

Como nunca aprendi a tocar um instrumento  nem cuíca, prato, reco-reco ou tuba —, só consigo tocar meia dúzia de corações quando escrevo. Já não me iludo mais: bandolim e violão, assim como piano e saxofone, representam muita areia pro meu carrinho de mão enferrujado. 

Por isso, rendo minha homenagem inclusive aos tocadores de cuíca, prato, reco-reco e tuba. No caso da tuba, aliás, confesso que até hoje fico intrigado quando vejo aquele sujeito, na parada militar ou no coreto da praça, carregando um treco maior do que ele apenas para, de vez em quando, soprar um ofegante "fum-fum". 

Ainda bem que os filhos nem sempre puxam ao pai. 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Adeus, "Charles Brau"

Duas semanas depois da publicação da crônica Carpenters em Alagoas (reveja aqui), onde falei sobre Braulino, meu amigo “Charles Brau”, ele partiu levando consigo o punhado de histórias e sonhos que deveria compartilhar com seus bisnetos quando eles crescessem. 



Já vinha sofrendo com um quadro gravíssimo da chamada síndrome hepatopulmonar 
 doença no fígado que provoca dilatações nos vasos sanguíneos dos pulmões —, o que lhe obrigava a usar oxigênio quase o dia inteiro. 

O transplante de fígado seria a única solução para o problema, não fossem seus 76 anos de idade. Apareceram feridas nas costas que acabaram virando porta de entrada para bactérias, resultando numa infecção generalizada.

Um pesado coquetel de antibióticos ainda lhe permitiu sair uns poucos dias da UTI. Recuperava-se na medida do possível quando foram descobertos alguns cálculos renais, parcialmente retirados. Mas passou mal no dia seguinte, voltou à terapia intensiva com sinais de nova infecção e de lá não saiu com vida.

Nem teve tempo de ler o texto de Luís André, seu filho caçula, escrito justamente no dia da retirada dos cálculos renais:

“(...) O que esperar do tempo? Esperar 90 a 94 anos para despedir-se? Seria bom... Esperar que em 15 dias a felicidade volte a habitar nosso interior, já que há dois anos ela vem diminuindo aos poucos?
São 76 anos de amor, dedicados a sua família e poucos amigos, mas todos fiéis e retos, assim como ele.


Esperar que uma vida de bons exemplos, retidão e broncas merecidas retornem? Não sei o que esperar.
Um momento de desilusão... de tristeza profunda. Na verdade, um silêncio que grita para que, se pudesse, Deus desse um pouco de minha saúde para ele. Se pudesse, lhe fizesse o que ele sempre fez comigo... netos e bisnetos.


Nada de voltar no tempo. Eu queria mesmo é que o tempo parasse lá atrás, quando tudo estava dando certo para meus pais e para mim. Assim..., aproveitaria mais sua presença até certo ponto militar — mesmo sendo professor e bancário —, a transbordar de cuidados e de amor por mim, por todos nós.

Um tempo que nos traiu, nos levou a crer num possível Alzheimer, pela saúde e pelo porte físico avantajado de seus 1,90 metros de altura e 110 kg, hoje reduzidos a míseros 80kg. 

Nunca imaginei o que estamos passando. Uma dor seca, diferente da dor de coluna que me retorcia na cama ou na minha ex-cadeira de dentista. Uma dor seca que não há remédio que diminua sua intensidade... este abismo dentro de mim. Uma dor "molhada", trata-se; mas a dor seca, ... essa nos mata.

Meu herói está combalido, suas forças reduzidas não o deixam pular para fora de uma simples cama de hospital. Na realidade, suas forças já vinham sendo drenadas por uma síndrome rara.


Nunca, jamais entenderei os planos de Deus, mas os aceitarei (...)”

Naqueles dias de angústia, incerteza e esperança, Dayse recebeu do marido um bilhete curto com orientações bem claras e objetivas:

“Em caso de morte: 
    1. Que meu corpo seja cremado e as cinzas, se forem entregues, pouco importa onde serão jogadas.
    2. Que no ato crematório, se possível, sejam executadas duas músicas:

a) Adagio for strings, de Samuel Barber. (ouça aqui)

b) Requiém – Lacrimosa, de Mozart. (ouça aqui)

Onde você estiver, meu amigo “Charles Brau”, quando encontrar o poeta Mário Quintana, lembre-o de que ainda faz todo sentido o que ele andou pregando por aqui no mundo dos vivos: “uma vida não basta ser vivida; ela precisa ser sonhada...”

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Onde anda Ana Maria?

Voltava ao Sertão paraibano às vésperas do São João de 2002. Havia morado na cidade de Patos a partir de 1961, aos três anos de idade, até mudar para Alagoas sete anos depois, seguindo meu pai em sua jornada nômade de funcionário do Banco do Brasil.

Ele, que nos anos 60 trabalhara na extinta Creai (Carteira de crédito agrícola e industrial) da agência daquele município, seria homenageado pela AABB, cuja diretoria resolveu batizar o ginásio de esportes com seu nome: Agostinho Torres da Rocha. 

Eu teria assim a chance de rever o Colégio Cristo Rei, onde aprendi a ler e a escrever; a rua Bossuet Wanderley, os armazéns da Sanbra (Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro) com seus fardos de algodão, próximos à estação ferroviária;  o campinho de futebol da Cica (Cia. Industrial, Comercial e Agrícola), à margem do Rio Espinharas. 


Ao chegar lá, vi que o colégio continua no mesmo local, bem menor, é verdade, do que aquele que guardava na memória. Mas os colegas de infância da rua Bossuet Wanderley sumiram todos. Disseram-me até que alguns se envolveram com drogas, arruaças, e tiveram fim trágico. 

Não encontrei também meus irmãos a fazerem algazarra no quintal ou na calçada da casa onde morávamos. Nem armazéns de algodão ou campinho de futebol. "As coisas mudam no devagar depressa dos tempos" (Guimarães Rosa).

Apesar do calor, soprava um vento morno que deve ter jogado um cisco em meu olho na hora em que ajudava a descerrar a placa de inauguração com o nome dele gravado. Saudade bate, mas a gente disfarça, pensa no que tem por fazer e finge que passa. 



Em breve ritual, fez-se um comovido silêncio entre pessoas que conviveram com aquele trabalhador humilde, calado, de sorriso raro, que nas horas de folga era visto sempre ao lado da esposa e do cacho de filhos. Tinha raros amigos e cabiam todos em sua Rural Willys, mas não gostava de botecos.

O dia passou depressa. Estávamos eu e Magdala, minha mulher, com Sérgio Riede, então presidente da Fenabb (Federação Nacional de AABB). Não havia vagas nos hotéis da cidade, lotados por conta das festas juninas. Fomos então acomodados pelos anfitriões numa casa grande e confortável, com direito a canjica, pamonha, ventiladores e redes no alpendre. 

Caminhamos um bocado após o jantar até o arraial na praça Getúlio Vargas, defronte do Hotel JK, para assistir a apresentações juninas. Exaustos, no entanto, retornamos cedo, por volta das dez da noite. Viajaríamos bem cedinho.

Havia um boteco colado à casa em que iríamos pernoitar. Na porta, um automóvel — bem diferente da velha Rural Willys — com o som nas alturas desde as cinco da tarde. E assim permaneceu até as sete da manhã do dia seguinte, tocando sem parar "Ana Maria" (clique e ouça), carro-chefe do CD "Xote Pé-de-Serra", de Santanna, o cantador. 

“(...) Eu dei um beijo,
Eu dei um beijo,
Eu beijei Ana Maria.
Por causa disso
Eu quase entrava numa fria.

Ana Maria tinha dono e eu não sabia.
Mas quem diria? pra bem dizer
Foi sem querer, mas terminou em confusão.
A solução foi confundir o coração.
Daí então fiquei na vida de ilusão.

Agora adeus, Ana Maria,
Deus te guarde para o amor.
No céu, Santa Maria.
Aqui na terra, o seu amor (...)"

A canção era linda, digna de ícones da música nordestina como Dominguinhos, Luiz Gonzaga, Nando Cordel, Petrúcio Amorim ou Sivuca. Mas depois de ouvi-la horas a fio, sem conseguir dormir profundamente por 30 minutos sequer, nem tampouco saber onde andava a tal Ana Maria para matar o desejo de um bêbado encharcado de cerveja, aquilo virou motivo de boas gargalhadas entre nós.

Quase 18 anos depois, sempre que nos encontramos — eu e Sérgio Riede , um se antecipa e quer saber do outro: e aí, amigo, saudades de Ana Maria? 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

O coronel que gostava de flores

Às seis da manhã, pontualmente, lá estava ele no portão de sua casa a me esperar. Tinha nas mãos uma pequena flor branca:
— O senhor sabe que flor é esta?
— Não. Não conheço... 
— É um bugarim. Toda manhã, bem cedinho, venho aqui ao jardim colher um para oferecer à minha mulher... Seja bem-vindo, vamos entrar. 


Para mim, que mal distinguia uma rosa de uma orquídea ou de um girassol, o inusitado era ver a delicadeza com que o velho empresário e político dava a entender que seduzia a sua mulher. E para não dizer que não falei de flores, comentei apenas que o cheiro adocicado do bugarim (ou jasmim) talvez explicasse por que ele estava presente em tantos jardins no Sertão pernambucano. 

Petrolina é conhecida como a capital da “Califórnia” brasileira, o Vale do Rio São Francisco. Foi em torno do Velho Chico — apelido carinhoso de um dos maiores rios do País  que a cidade se desenvolveu e passou a produzir frutas em propriedades rurais irrigadas, com destaque para uva, manga, banana, coco-da-baía e goiaba.

Na noite anterior, após uma reunião com lideranças de classe tentando melhorar a relação estremecida entre produtores rurais, urbanos e o Banco do Brasil, fui abordado na saída do recinto:
— Eu gostaria de recebê-lo em minha casa para o café-da-manhã...
— Talvez não dê desta vez... Preciso viajar bem cedinho pro Recife.
— Você vai fazer uma desfeita dessas comigo?
— Não fale assim! A não ser que a gente se encontre às seis da manhã — ponderei, querendo desfazer o mal-estar e, a bem da verdade, contando que ele não acordaria tão cedo.
— Estarei esperando o senhor às seis.  Aqui está meu endereço — arrematou, com um cartão de visitas.

Poderia ser qualquer um dos filhos de Clementino de Souza Coelho (1885 — 1951), o mítico coronel Quelê, latifundiário e industrial tido como um dos responsáveis pela industrialização da região e um de seus maiores chefes políticos no século passado. 

Assim como outras oligarquias brasileiras, a família  Coelho, alinhada ao regime militar instaurado no país em 1964 e que durou até 1985, migrou dos negócios para a vida pública. Teve como expoentes cinco dos 13 filhos do coronel Quelê: Nilo, José, Geraldo, Paulo e Osvaldo. Nome não vem ao caso, mas foi um deles que me recebeu naquele dia. 

A mesa já estava posta. O anfitrião apresentou-me sua esposa enquanto a ela oferecia o pequeno bugarim que havia colhido.  Sentou-se na cabeceira e lhe serviram macaxeira com linguiça cuja gordura logo escorria no canto da boca e ameaçava, além da gravata, o paletó engomado de linho branco. Em seguida, pode parecer exagero meu, encarou uma tigela de coalhada, meia pamonha, uma tapioca, um pedaço de cuscuz, uma manga em cubinhos, uma fatia de bolo e uma caneca de café preto, onde pingou algumas gotinhas de adoçante  para manter o peso sob controle, esclareceu.

Ainda na mesa, com o suor escorrendo pela cara gorda e vermelha, sacou da algibeira o isqueiro e acendeu um cigarro que tragava com sofreguidão, esfumaçando o ambiente. Parecia cenário daqueles filmes antigos de Hollywood, que manteve ao longo de décadas contratos com a indústria de tabaco para inclusão de imagens em que os atores e atrizes fumassem.

Não demorou muito e foi direto ao ponto que o levou a me convidar na noite anterior: perguntou o porquê de eu não ter dado a devida atenção ao pedido que me fizera por telefone duas semanas antes, no sentido de refinanciar dívidas vencidas de um produtor rural de quem era compadre e avalista.

Esclareci que deveria haver algum engano, pois pedira para examinar o caso e, pessoalmente, havia comunicado o desfecho ao devedor, dizendo-o que não seria possível a renegociação da dívida na forma por ele pretendida. 

O anfitrião esfregou as mãos e contra-argumentou: 
— O “não” não é resposta. Só o “sim” constrói, ajuda quem precisa. O “sim” é como o dia; o “não” é como a noite, escurece tudo. Até as flores perdem a graça... 
— Entendo o que o senhor quer dizer, mas lá no banco a gente lida com o “sim”, com o “não” e com o “depende”. Se o rapaz quiser mesmo negociar de um jeito que fique bom para todo mundo... 
— Mas sei de alguns casos aqui na região em que vocês deram desconto no pagamento. Por que meu compadre, que tá passando um sufoco medonho, não merece?
— Banco é tudo igual, amigo. Não abre mão de um centavo...
— Como assim? 
— Só admite desconto quando não tem mais como receber todo o dinheiro que emprestou, inclusive os juros. Nem que tenha que recorrer à Justiça, se o devedor e o avalista possuírem bens.

E passamos a conversar sobre outros assuntos como o aumento das exportações de manga para os mercados asiáticos, a qualidade do vinho que já estava sendo produzido na "Califórnia" brasileira etc. 

Na despedida, foi gentil e pragmático comigo:
— Quero agradecer muito sua visita a nossa Petrolina. Pode deixar que vou convencer o compadre a melhorar a proposta. Onde já se viu achar que o banco vai dar desconto numa dívida avalizada por mim?

Tanto ele quanto os irmãos aqui citados já não se encontram neste mundo. Se a dívida foi paga, refinanciada ou seguiu para cobrança judicial, não sei dizer. Fui trabalhar na Bahia pouco tempo depois, em maio de 1999. 

Desde então, toda vez que vejo um bugarim branco ou alguém usando adoçante no café para controlar o peso, lembro-me do coronel que gostava de flores.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

"Carpenters" em Alagoas

Muitos brasileiros nascidos no Sul/Sudeste migraram para o Nordeste nos anos 70/80 em busca de oportunidades de ascensão profissional.  Além de coragem e esperança, traziam consigo o medo de encontrar a paisagem árida da caatinga com carcaças de seres derrotados pela fome e pela sede, como nos cenários espelhados nas obras clássicas Vidas Secas, de Graciliano Ramos (1892  1953), e Retirantes, de Cândido Portinari (1903  1962).

Com Braulino Lansac não seria diferente. Nascido em Araçatuba, polo universitário e gastronômico do Nororeste paulista, de economia bastante diversificada, ele teve uma grata surpresa ao chegar para trabalhar na pequena Anadia, na Zona da Mata alagoana, dando de cara com o horizonte verde dos canaviais em ponto de corte para a safra de açúcar e álcool da região. 

Viu também que não lhe pesavam quase nada os 90 km que separavam Anadia das praias mornas e dos coqueirais do Litoral alagoano. Aquele seria o seu destino a partir de então, todo fim-de-semana, com Dayse, sua mulher, e os filhos.

Sentia-se bem. Mesmo abrindo mão do sonho de ser professor universitário de Educação Física  além de ex-atleta amador de basquete, apaixonou-se pela “área” nos Jogos Olímpicos do Canadá 1976, que assistiu de perto —,  ficou feliz com a carinhosa recepção dos moradores da pequena cidade, o clima amistoso de trabalho e a perspectiva de crescimento na carreira profissional. 

Ele me disse outro dia que, ao retornar de Maceió no final de uma tarde de domingo, retirava “a tralha de praia” da velha Belina na porta de casa quando ouviu ao longe “Solitaire” (clique e ouça), canção de que mais gostava no repertório da dupla norte-americana Carpenters. Chegou a comentar com Dayse: “Puxa, alguém ouvindo Carpenters em Anadia? Quanto bom gosto, hein?!”


Carpenters foi uma dupla de New Haven, Connecticut, composta pelos irmãos Karen e Richard Carpenter, que fez muito sucesso com seu estilo musical soft, bem diferente do hard rock típico das bandas dos anos 70. Do seu modo leve de ser, em 14 anos a dupla vendeu quase 100 milhões de discos pelo mundo afora. A carreira chegou ao fim com a morte prematura de Karen no começo de 1983, aos 33 anos, vítima de parada cardíaca resultante de complicações de uma anorexia nervosa.   

Mas Braulino, "meu amigo Charles Brau"  tratamento carinhoso que lhe dou desde que passamos a trabalhar juntos nos anos 80, numa  alusão tola à canção Charlie Brown, de Benito di Paula    continuava a descarregar sua Belina. De repente, uma nova música no ar, mais outra, todas dos Carpenters

Ele conhecia aquele  disco de cor e salteado e achava pouco provável existir mais de um vinil em Anadia. Mas, de onde estaria vindo aquele som? Logo percebeu que os acordes saíam da cela da cadeia pública, que ficava defronte a sua casa. 

Luís André, seu filho mais novo, correu até lá, aproximou-se das grades e perguntou ao detento que, em êxtase, curtia aquelas músicas: “Que disco é este?” Mesmo assustado com o flagrante, o rapaz não mentiu: “É de seu pai... Maria me emprestou para que eu ouvisse no fim-de-semana. Diga nada não pra ele, senão vai mandar a moça embora...” 

Quando soube do que aconteceu, Braulino ficou bastante aborrecido com a ousadia da empregada doméstica em mexer em seus discos. Nem ele mesmo correria o risco de emprestar a alguém um de seus elepês favoritos, que poderia retornar danificado por uma agulha desgastada de uma vitrola qualquer.

Mas sempre teve o coração maior do que o corpanzil de quase 1,90 metros de altura.  Acabou relevando o ocorrido e perdoou Maria. Na época, já  estava acostumando com o jeito solidário de ser do nordestino, sobretudo do interior, que sabe compartilhar alegria e tristeza, saúde e doença, fartura e escassez. Afinal, dizia ele, “...já éramos íntimos dos policiais e dos presos há algum tempo”. 

A intimidade, nesse caso,  tinha explicação de cinema (ou de tevê): toda noite, na hora do Jornal Nacional, Braulino aumentava o volume do aparelho e deixava abertas as duas lâminas da porta da frente da casa  para que os detentos, empoleirados nas grades, assistissem a Cid Moreira e Sérgio Chapelin e, em seguida, à novela da oito. "O pior cárcere não é o que aprisiona o corpo, mas o que asfixia a mente e algema a emoção" (Augusto Cury).  

Em contrapartida, enquanto passava o dia fora trabalhando, sua família e sua morada estavam muito bem protegidas, tanto pelos policiais como pelo olhar cuidadoso dos encarcerados. A troca era justa.


Braulino, meu amigo "Charles Brau", nunca mais deixaria o Nordeste. Depois que se aposentou, há 25 anos, escolheu a Bahia para viver o resto da vida, onde agora curte seus primeiros bisnetos. Deve ter um punhado dessas histórias para contar quando eles crescerem. 

domingo, 26 de janeiro de 2020

O velho, o menino e o livro

Não sei o que se passava pela cabeça da criança que parou, olhou e me escutou dedicar a seus pais um exemplar do livro Só Eu Sei, quando do  lançamento em Brasília, sexta-feira, 17.

Imagem: Débora Marinho
Talvez imagine que sou um escritor de verdade, capaz de escrever fábulas daquelas que ouviu de seus pais antes de dormir e que agora lê para o irmão caçula.

Para uma criança, fábulas são muito mais do que a verdade. Não porque contam que fantasmas, bruxas e monstros existem, mas porque mostram que eles podem ser vencidos.

Não sei o que se passava por sua cabeça ao ver o título do livro: Só Eu Sei. A gente nunca sabe de tudo nessa vida. Por isso mesmo, nem deve levá-la tão a sério. 


Na sua inocente curiosidade, talvez já pense como Bertrand Russel (1872 – 1970), para quem havia “dois motivos para ler um livro: um, é o prazer em lê-lo; o outro, a possibilidade de melhorá-lo".

Mas sei o que se passou por minha cabeça ao ver aquela imagem pela primeira vez. Tenho um amigo que diz que escritor e fotógrafo se utilizam das mesmas ferramentas, mas enquanto um descreve uma cena com meia dúzia de palavras o outro descreve meia dúzia de cenas com uma imagem.

A imagem que abre este texto, quem sabe, revela o possível nascimento de um escritor de verdade. Nada é tão nosso quanto nossos sonhos de criança. "O que é um adulto? Uma criança de idade", dizia Simone de Beauvoir (1908  1986).


Se for assim, só eu sei como me fará bem contribuir para que Rafael – neto de meu irmão Agostinho e filho de meu sobrinho-afilhado Michel – ame livros acima de todas as coisas. 


"Há livros escritos para evitar espaços vazios na estante", dizia Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1986). A imagem de Rafael me dá a ilusão de que aquele pode ser um pouco mais útil.



quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Roteiro de viagem

Existem cartilhas e cartilhas. Umas surgem nos primeiros anos de nossas vidas, a revelar-nos os segredos da arte de ler, escrever, somar, multiplicar e dividir. Outras, como Roteiro de Viagem, nascem bem mais tarde. São como frascos de vivências a cruzarem o nosso caminho. É preciso estar atento para não perder a chance de descobri-los, admirá-los e, mais que tudo, beber de uma fonte de reflexões que traduzem a essência do mundo corporativo. 

Era uma cartilha simples que eu gostaria de ter recebido de meu pai ou de meu sogro lá pelos idos de 1977, quando retomei minha carreira no Banco do Brasil após o período como menor estagiário para serviços gerais. Não que trouxesse algo inovador ou o segredo definitivo da arte do bem-estar pessoal e profissional, mas porque continha em suas páginas o testemunho sábio de gente que estava escrevendo com tintas de paixão a história de uma instituição bicentenária.

Corria julho de 2005. A rede de agências vinculada à superintendência do Distrito Federal possuía 70% de seu quadro (2.300 funcionários) com menos de quatro anos de experiência, a lidar com consumidores cada vez mais exigentes, detalhistas e instruídos sobre seus direitos. Havia uma explicação para tantos jovens: a elevada rotatividade decorrente do fato de a sede da direção geral do banco ser em Brasília e preencher suas vagas “pescando” na rede. 

Para acelerar a maturidade daquela molecada e auxiliá-la a conhecer melhor o caldo de cultura de que era feita a organização, inspirei-me numa experiência realizada no Paraná três anos antes, por iniciativa de Vanderlei Engels, do centro de formação regional liderado pela saudosa Marlene Viero (Kuki):  disseminar conselhos de pessoas que haviam escrito a história da empresa naquele estado.

Claro que cada um tinha seu jeito próprio de lidar com o trabalho e não havia uma pedra filosofal ou uma fórmula mágica para alguém ser bem-sucedido profissionalmente. Decidi então entrevistar e, no passo seguinte, coligir respostas para duas perguntas simples, feitas a meia centena de dirigentes e técnicos da empresa
1. O que foi determinante para que você pudesse construir uma carreira vitoriosa?
2. Que conselho daria para que um novo funcionário consiga construir uma carreira bem-sucedida?

Antônio Sérgio Riede, na época gerente executivo na diretoria de Relações com Funcionários e Responsabilidade Socioambiental, disse: “(...) É importante ter coragem para divergir e sabedoria para entender que a divergência de ideias não significa rejeição às pessoas — e isso vale nos dois sentidos, de você e para você... Nunca ‘terceirize’ a culpa quando há espaço para você fazer alguma coisa... Não tenha vergonha de ensinar, nem falsa modéstia. Nunca se confunda com seu cargo quando ele for importante. Nunca se esconda na sua função quando ela for de subordinação... Enfim, esteja sempre presente. Participe, arrisque-se, peça desculpas quando necessário, reformule ideias e propostas quando julgar sinceramente que é o mais recomendado. Peça ajuda, ofereça-se para trabalhar. E, se conseguir a mágica, faça isso com humildade e altivez. Depois, se conseguir a fórmula, me conte!”

Já Francicarlos da Silva Diniz, então analista sênior na diretoria de Reestruturação de Ativos Operacionais, recomendou:  “(...) Busque a especialização. Embora seja importante ter uma visão geral de como funciona o banco, é impossível dominar todos os assuntos. É preciso ser um ‘papa’ naquilo que você faz no dia-a-dia. No restante, ser ‘bispo’ já basta... Estude. Questione. Leia muito. Não leia apenas as instruções internas: isso é básico. Leia jornais, revistas e livros especializados na área em que você atua... E nunca deixe de perguntar: ‘Em que posso ajudar?’ “(...)”

Izabela Campos Alcântara Lemos, naquele momento diretora de Relações com Funcionários e Responsabilidade Socioambiental lembrou: "(...) é preciso aprender sempre, com o outro, estudando, lendo muito. Saber ouvir, cultivar relacionamentos duradouros... é preciso ligar-se  nos movimentos e direcionamentos que a empresa aponta para, com sensibilidade, identificar e aproveitar as oportunidades que aparecerem. E elas sempre aparecem! "(...)" 

Para José Marcelo Torres Batista, na época assessor pleno na diretoria de Marketing e Comunicação, havia alguns pressupostos a serem observados: “(...) Tenham um pouco de cada coisa da maneira de ser, de agir e de olhar o mundo. Tenham vontade de aprender, humildade para perguntar, solidariedade para ensinar e paciência para esperar as oportunidades, pois a vida é como um rio em seu curso natural... Mirem-se nos exemplos daqueles que vencem por méritos próprios, por competência e com ética. Questionem sem destruir. Elogiem sem bajular... Não trabalhem apenas pelo dinheiro. Procurem fazer aquilo que gosta e goste de fazê-lo. O reconhecimento e a recompensa virão em consequência (...)” 

O então vice-presidente de Negócios Internacionais e Atacado, José Maria Rabelo, ponderou: “(...) Fiz sempre o exercício crítico da autoestima. Estive sempre convencido de que deveria e poderia ter orgulho de meu trabalho... Para você chegar lá, acredite tanto na empresa quanto em si próprio. Não coloque seu futuro na dependência exclusiva de atos ou pensamentos de outras pessoas. Negocie e construa seu caminho. Esteja atento para aprender o que fazer e o que não fazer. Não dissocie a formação acadêmica do investimento profissional. Não perca a oportunidade de fazer o melhor que puder, sempre... Lembre-se de que seu supermercado e a escola das crianças dependem do fruto do seu trabalho. Se por uma questão pessoal esta última parte não for verdadeira, aja como se fosse! Um dia ela certamente será. “(...)”

Renê Sanda, naquele momento gerente adjunto no BB New York Branch, orientou: “(...) Sigam sempre o ‘Princípio de Occam’, que diz que não devemos fazer mais suposições para resolver um problema do que as estritamente necessárias. Você vai notar que na maioria das vezes não existe solução que atenda aos interesses de todos, mas você será mais produtivo e eficiente se aprender a focar no problema principal, entender as principais restrições e relevar as questões ‘cosméticas’ (...)"

Juntei outros 30 depoimentos de colegas com uma história a contar que ajudasse aqueles marinheiros de primeira viagem a construírem seu próprio roteiro e aprumarem as velas do barco, na expectativa de acelerar a maturidade coletiva de jovens com as mais diferentes origens.

É difícil, agora, avaliar o impacto de uma obra tão pequena como uma cartilha dessas sobre seu público-alvo. Nem sei se foi lida por um quarto ou metade dos navegantes que apenas começavam a viagem, mas posso falar do bem que ela me fez, àquela altura com 28 anos navegando em mares ora agitados, ora calmos. Sempre acreditei na magia e no poder dessas histórias contadas de geração para geração. 

Aprendi que o bom da viagem — com ou sem lanterna a iluminar os momentos de escuridão  — nunca é onde estamos, mas para onde nos movemos. É saber navegar algumas vezes na direção do vento e outras contra ele, mas navegar sempre. Não se deixar à deriva nem ancorar antes ou depois da hora. Tem dado certo até agora.