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Cobrando a conta

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Morto de cansaço e fome, Vieira chegava em casa  para o jantar quando seu filho lhe entregou um envelope com cara de quem cumpria uma missão importante: “Pai, a tia me pediu para entregar na sua mão. Quer que eu leve uma resposta até sexta-feira”. Era a cobrança de mensalidades escolares em atraso, em tom de  ameaça, assinado pela diretora e pela tesoureira da escola. Vieira leu, engoliu seco e perdeu o apetite. Atrasaria qualquer conta a pagar   —  prestação do imóvel, do carro etc.  —,  menos a que pudesse causar constrangimento ao filho. Pior: não havia atraso algum. A transferência entre bancos via doc (documento de ordem de crédito) tinha sido criada no começo dos anos 80. Ele gostou da inovação e assim que recebia seus salários, transferia para a conta da escola o valor da fatura. Com o tempo escasso e dividido entre faculdade e trabalho, era a alternativa encontrada para não ter que se deslocar  todo mês  à secretaria do colégio.   Vieira poderia ter sido mais eleg

De pai para filho, às vezes

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Reco do Bandolim (Henrique Filho) é músico, compositor, jornalista, radialista e produtor cultural.  Nascido na Bahia, radicou-se em Brasília desde os primórdios da Capital, onde cuida com zelo e talento do  Clube do Choro , um dos templos sagrados da música instrumental brasileira.  Há poucos dias compartilhou com amigos texto escrito por seu filho durante um voo que fizeram juntos, no começo do ano, de Salvador para Brasília. Texto que, segundo ele, discorre sobre uma manhã em que “Henriquinho se deixou diante do mar de Piatã”. Disse mais sobre seu filho, também músico e compositor: “... vive em Portugal, e meu coração, a um só tempo, feliz e aflito de saudades.” Sob o título “Coração de Pedra”, Henrique Neto escreveu como se espalhasse notas musicais sobre um pentagrama: “(...) Quando passo um tempo sozinho em frente ao mar sinto que reencontro alguma coisa que andava perdida. Acho que é uma certa sensação de transcendência que sua imensidão me causa e, ao mesmo tem

Adeus, "Charles Brau"

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Duas semanas depois da publicação da crônica  Carpenters em Alagoas ( reveja aqui ) , onde falei sobre Braulino, meu amigo “Charles Brau”, ele partiu levando consigo o punhado de histórias e sonhos que deveria compartilhar com seus bisnetos quando eles crescessem.  Já vinha sofrendo com um quadro gravíssimo da chamada síndrome hepatopulmonar  —  doença no fígado que provoca dilatações nos vasos sanguíneos dos pulmões —,  o que lhe obrigava a usar oxigênio quase o dia inteiro.  O transplante de fígado seria a única solução para o problema, não fossem seus 76 anos de idade. Apareceram feridas nas costas que acabaram virando porta de entrada para bactérias, resultando numa infecção generalizada. Um pesado coquetel de antibióticos ainda lhe permitiu sair uns poucos dias da UTI. Recuperava-se na medida do possível quando foram descobertos alguns cálculos renais, parcialmente retirados. Mas passou mal no dia seguinte, voltou à terapia intensiva com sinais de nova infecção e de lá

Onde anda Ana Maria?

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Voltava ao Sertão paraibano às vésperas do  São João de 2002. Havia morado na cidade de Patos a partir de 1961, aos três anos de idade, até mudar para Alagoas sete anos depois, seguindo meu pai em sua jornada nômade de funcionário do  Banco do Brasil . Ele, que nos anos 60 trabalhara na extinta   Creai (Carteira de crédito agrícola e industrial) da agência daquele município,   seria homenageado pela  AABB , cuja diretoria resolveu batizar o ginásio de esportes com seu nome: Agostinho Torres da Rocha.  Eu teria assim a chance de rever o  Colégio Cristo Rei,  onde aprendi a ler e a escrever; a rua Bossuet Wanderley, os armazéns da  Sanbra (Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro) com seus fardos de algodão , próximos à estação ferroviária;  o campinho de futebol da  Cica (Cia. Industrial, Comercial e Agrícola) , à margem do Rio Espinharas.  Ao chegar lá, vi que o colégio continua no mesmo local, bem menor, é verdade, do que aquele que guardava na memória. Mas os coleg

O coronel que gostava de flores

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Às seis da manhã, pontualmente, lá estava ele no portão de sua casa a me esperar. Tinha nas mãos uma pequena flor branca: — O senhor  sabe que flor é esta? —  Não. Não conheço...  —  É um bugarim. Toda manhã, bem cedinho, venho aqui ao jardim colher um para oferecer à minha mulher... Seja bem-vindo, vamos entrar.  Para mim, que mal distinguia uma rosa de uma orquídea ou de um girassol, o inusitado era ver a delicadeza com que o velho empresário e político dava a entender que seduzia a sua mulher. E para não dizer que não falei de flores, comentei apenas que o cheiro adocicado do bugarim (ou jasmim) talvez explicasse por que ele estava presente em tantos jardins no Sertão pernambucano.  Petrolina é conhecida como a capital da “Califórnia” brasileira, o Vale do Rio São Francisco. Foi em torno do Velho Chico  —  apelido carinhoso de um dos maiores rios do País  —  que a cidade se desenvolveu e passou a produzir frutas em propriedades rurais irrigadas, com destaque para u

"Carpenters" em Alagoas

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Muitos brasileiros nascidos no Sul/Sudeste migraram para o Nordeste nos anos 70/80 em busca de oportunidades de ascensão profissional.  Além de coragem e esperança, traziam consigo o medo de encontrar a paisagem árida da caatinga com carcaças de seres derrotados pela fome e pela sede, como nos cenários espelhados nas obras clássicas  Vidas Secas , de Graciliano Ramos (1892  —  1953), e  Retirantes , de Cândido Portinari (1903  —  1962). Com Braulino Lansac não seria diferente. Nascido em Araçatuba, polo universitário e gastronômico do Nororeste paulista, de economia bastante diversificada, ele teve uma grata surpresa ao chegar para trabalhar na pequena Anadia, na Zona da Mata alagoana, dando de cara com o horizonte verde dos canaviais em ponto de corte para a safra de açúcar e álcool da região.  Viu também que não lhe pesavam quase nada os 90 km que separavam Anadia das praias mornas e dos coqueirais do Litoral alagoano. Aquele seria o seu destino a partir de então, todo fim-d

O velho, o menino e o livro

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Não sei o que se passava pela cabeça da criança que parou, olhou e me escutou dedicar a seus pais um exemplar do livro  Só Eu Sei , quando do  lançamento em Brasília, sexta-feira, 17. Imagem: Débora Marinho Talvez imagine que sou um escritor de verdade, capaz de  escrever fábulas daquelas que ouviu de seus pais antes de dormir e que agora lê para o irmão caçula. Para uma criança, fábulas são muito mais do que a verdade. Não porque contam que fantasmas, bruxas e monstros existem, mas porque mostram que eles podem ser vencidos. Não sei o que se passava por sua cabeça  ao ver o título do livro:  Só Eu Sei . A gente nunca sabe de tudo nessa vida. Por isso mesmo, nem deve levá-la tão a sério.  Na sua inocente curiosidade, talvez já pense como Bertrand Russel (1872 – 1970), para quem havia “dois motivos para ler um livro: um, é o prazer em lê-lo; o outro, a possibilidade de melhorá-lo". Mas sei o que se passou por minha cabeça ao ver aquela imagem pela prim

Roteiro de viagem

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Existem cartilhas e cartilhas. Umas surgem nos primeiros anos de nossas vidas, a revelar-nos os segredos da arte de ler, escrever, somar, multiplicar e dividir. Outras, como Roteiro de Viagem ,  nascem bem mais tarde. São como frascos de vivências a cruzarem o nosso caminho. É preciso estar atento para não perder a chance de descobri-los, admirá-los e, mais que tudo, beber de uma fonte de reflexões que traduzem a essência do mundo corporativo.  Era uma cartilha simples que eu gostaria de ter recebido de meu pai ou de meu sogro lá pelos idos de 1977, quando retomei minha carreira no Banco do Brasil após o período como menor estagiário para serviços gerais. Não que trouxesse algo inovador ou o segredo definitivo da arte do bem-estar pessoal e profissional, mas porque continha em suas páginas o testemunho sábio de gente que estava escrevendo com tintas de paixão a história de uma instituição bicentenária. Corria julho de 2005. A rede de agências vinculada à superintendência do