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Tiro por mim… Muda tudo!

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Já se foi o tempo em que, de tardezinha, mesmo nos bairros mais nobres das grandes cidades, era costume as vizinhas se darem boa noite, levarem cadeiras de balanço para as calçadas e baterem com gosto a língua nos dentes, retirando as aranhas da garganta, a falarem de tudo e de todos enquanto aguardavam a janta.  Vivemos em  casulos domésticos desde antes da pandemia, o que tem nos isolado cada vez mais. Grades ou telas nas janelas não conseguem mitigar o tédio de almas carentes de calçadas e quintais, engolidas pelo uso desmedido de celulares e pela programação da TV divulgando da forma mais cruel a barbárie da hora.  Tiro por mim, aqui debruçado sobre uma triste constatação no fechamento do balanço de meus atos e omissões durante o ano. Moro há tempos em prédios residenciais e, afora os cumprimentos inevitáveis e protocolares no elevador ou na garagem, não me recordo de haver trocado três palavras com vizinhos sobre algo de fato relevante, capaz de propiciar retorno reflexivo mútuo.

Não se abandonam os amigos

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Na fábula Os viajantes e o urso , de Esopo, dois amigos topam na floresta com o bichão peludo e bravo. O primeiro se salva escalando às pressas uma árvore, mas o outro, sabendo que não conseguiria enfrentar o animal que se aproxima, joga-se no chão e finge estar morto. A fera começa a farejar suas orelhas frias de pavor, porém, convencida de que a presa estava morta, perde o interesse e vai-se embora. O amigo então desce da árvore e pergunta: – O que o urso tanto cochichava em seu ouvido? 
 – Ora, ele só me alertava para pensar duas vezes antes de sair por aí com gente que abandona os amigos na hora do perigo.   Esopo foi um contador de histórias populares que viveu entre os séculos VII a.C. e VI a.C. na Grécia Antiga. Tornou-se famoso com narrativas que ganharam o mundo pela tradição oral, como “A Lebre e a Tartaruga” ou “A Raposa e as Uvas”. Suas fábulas, utilizadas na educação infantil de várias gerações, são protagonizadas por animais que assumem comportamentos humanos. São alegori

Experimente... Se puder, claro!

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Soube outro dia que a jornalista norte-americana Pamela Paul, 50 anos, editora da seção de livros do  The New York Times , acaba de publicar um ensaio intitulado   100 things we’ve lost to the internet , com reflexões acerca de objetos e sentimentos que se perderam com a chegada da rede mundial de computadores a partir de 1991.     Parece uma dessas obras melancólicas sobre um mundo que não existe mais e que não voltará. Mas a autora garante que o livro não foi escrito apenas para lamentar o que desapareceu. Ela se diz nostálgica, sentimental e pessimista, mas tem consciência de que alguns desses desdobramentos foram bons. “O que teríamos feito durante o confinamento sem a internet?”, pergunta.   Diz também que a tecnologia – que nos roubou ou limitou coisas que eram boas – não é algo natural, nem inevitável. Para ela, somos enganados, o tempo todo, por uma falsa mensagem da indústria segundo a qual quando não adotamos certa novidade tecnológica o problema está conosco, e não com o pro

Palavras que (en)cantam

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Sei de ouvir falar que, há muito tempo, o poeta Manuel Bandeira (1886 – 1968) teria sentenciado que “Tu pisavas os astros distraída”, de Orestes Barbosa (1893 – 1966), era o verso mais bonito de nossa língua, numa visão bem mais ampla do que a própria MPB.    Antes que os puristas (em literatura e em música) argumentem que existem diferenças entre a poesia e a letra de uma canção, digo que, para um simples curioso como eu, poetas e compositores fazem praticamente a mesma coisa. Isto é, pintam quadros com os mesmos pincéis e tintas, ainda que usem telas de material diferente. Trovadores. Anônimo alemão (séc. XIV) Sei de ouvir falar também que os antigos trovadores foram artistas da nobreza do período medieval. E a própria origem deles se conecta com a música, pois, como poetas-cantores, compunham poesias e melodias para se acompanharem ao alaúde (instrumento de cordas).  Portanto, letra de música é poesia e poesia é letra de música. A depender da melodia, um poema pode virar uma bela ca

Os papa-figos e a nação do desassossego

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Entre calçadas, escolas e quintais, vivi quase todas as traquinagens e safadezas de um curioso e impulsivo representante daquilo que o poeta paraibano Jessier Quirino chama de nação do desassossego. Recuperei-me bem dos primeiros anos em que me botavam para dormir sob a ameaça de boi da cara preta ou de prisão num quartel, se não marchasse direito com minha cabeça de papel. A canoa quase virou, eu não sabia remar, mas ainda estou por aqui vendo meus netos crescerem.   Existe um malassombro, porém, que mexeu comigo e com toda uma geração de desobedientes: o papa-figo (contração de " papa fígados "), também chamado de “homem do saco” ou "velho do saco", que os mais letrados teimam em tratar como lenda do folclore brasileiro. Descobri mais tarde que a versão portuguesa "papa figos", uma ave, inspirou o rótulo de um belo vinho, bem mais palatável que o papa-figo tupiniquim .   Voltemos à suposta lenda do folclore brasileiro. Lenda coisa nenhuma! Lenda é boitat

Que trambolho, hein?!

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De uma hora para a outra, tive que me adaptar a novas formas de consumo, socialização e trabalho doméstico. Com as restrições impostas pela pandemia, as caminhadas, que antes eram feitas no calçadão da orla, migraram para a esteira da sala de ginástica do prédio.  Manter-se sedentário seria o pior dos mundos. Disseram-me que atividades físicas melhoram o sistema imunológico, além de ajudar na gestão de doenças crônicas que se herdam ou se adquirem com o passar dos anos, caso se tenha a sorte de chegar ao último terço da estrada.   Mas a sala de ginástica do prédio também acabou interditada. Os moradores, muitos deles desde a entrega das chaves, envelheceram e engordaram. Mesmo assim, ninguém questionou a medida, embora soubessem que o crescimento coletivo da massa corporal não foi previsto nos cálculos estruturais dos alicerces.    Eu e meu vizinho de andar, Jorge Bola Sete – apelido dado por alguns invejosos porque já está na sexta relação conjugal “estável” –, fazíamos ginástica e re

Sobre dar e receber presentes

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O  potlatch  é uma festa religiosa ainda hoje praticada por algumas tribos indígenas canadenses e norte-americanas.   Depois de um banquete de carne de foca e salmão, acontece o ponto alto: uma pessoa que está sendo homenageada renuncia a todos os seus bens materiais, inclusive dinheiro, pedras preciosas, taças, mantas etc., distribuindo-os entre parentes e amigos. A expectativa de quem está sendo objeto da homenagem é, mais adiante, também receber presentes daqueles para os quais está doando seus bens, num troca-troca sem fim. Com a influência de negociantes europeus que chegaram ao continente americano no decorrer do tempo, esses eventos passaram a ser mais frequentes, surgindo uma verdadeira guerra de poder entre algumas tribos. Algumas vezes, os bens foram simplesmente destruídos ou queimados após a cerimônia, embora a história nada registre acerca de sexo, drogas e  rock’n roll  para justificar a bagunça, se é que você está pensando nisso.   No começo do século XIX, os governos do

Pequenos inventos, grandes mudanças

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A gente não percebe, mas algumas pequenas invenções mudaram de forma radical a vida dos seres humanos. E quase tudo deriva do ócio em suas múltiplas formas de prostração e moleza. Para o poeta Mário Quintana, “a preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda”.    Mas não vou falar sobre a roda – presente em quase todos os avanços da inteligência humana, da tecelagem até os motores mais complexos –, que não pode ser vista como uma pequena invenção. Longe disso. Há alguns milênios, desde que se percebeu que ela servia para alguma coisa, a humanidade já deu milhões de giros até os dias de hoje, chegando a criar uma rede de comunicação instantânea que conecta os pontos mais remotos da Terra e que meus netos acham que sempre existiu.   A ideia é refletir sobre pequenos inventos, simples como a sandália de dedo, que mudaram o mundo. Ícone do bem-estar, desconheço quem nunca teve (ou não tenha) pelo menos um par. Apenas sola e correias a

Juramento de Almirante

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Há meio século, boa parte dos brasileiros esperava a edição de domingo do Jornal Nacional , da TV Globo , para conferir o resultado da Loteria Esportiva, com a participação de uma zebrinha falante de olhos e boca móveis criada pelo cartunista Borjalo. Em 1971, com a estreia, do programa “Fantástico  –  o show da vida”, a mascote migrou para a revista eletrônica. Borjalo inspirou-se no jogo do bicho, invenção de João Batista Viana Drummond, o Barão de Drummond (1825–1897), para levantar fundos destinados ao custeio do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, que lhe pertencia. Essa antiga bolsa de apostas logo seria encampada para práticas ilícitas que ainda hoje enriquecem algumas famílias.   O jogo incluiu 25 animais (bichos), mas não a zebra, parente africana de nosso resignado jegue, este com séculos de serviços prestados ao povo brasileiro. Quando o resultado era negativo aos olhos do apostador, dizia-se ter "dado zebra". Daí à adaptação para placar esportivo imprevisto foi um