quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Palavra de coronel


Há 33 anos, o Brasil convivia com uma inflação descontrolada de 15% ao mês. Mergulhado na mais completa incerteza sobre como sair daquela situação, o governo Sarney lançou o “Plano Cruzado”, em 28 de fevereiro de 1986, tentando arrumar a economia com congelamento de preços, salários, além de tabelamento de juros bancários. Queria também colher frutos nas eleições marcadas para o final daquele ano, quando o PMDB fez 22 governadores em 23 possíveis e fez a maioria dos senadores, deputados federais e deputados estatuais eleitos.


Um mês antes, desconfiada do que poderia acontecer ao dinheiro que vinha poupando com enorme sacrifício, Dona Madalena, minha sogra, pediu-me para ajudá-la a adquirir uma casa de praia, de preferência em Paripueira(AL), onde pudesse investir, o mais urgente possível, tudo o que ela e Seu Terto, meu sogro, conseguiram economizar ao longo de vários anos.

Naquela mesma semana tomei conhecimento de que um certo coronel reformado da Polícia Militar de Alagoas, aborrecido porque sua esposa, já idosa, havia trabalhado demais, no domingo, recebendo filhos, genros, noras e amigos, decidira colocar à venda aquele sobradinho de esquina que minha sogra já admirava há algum tempo.

Fui então procurar o coronel e, em menos de meia hora de conversa, chegamos a bom termo quanto ao valor e à modalidade “porteira fechada” (somente os donos sairiam; nada seria retirado), ficando acordado, verbalmente, que o pagamento e a transferência em cartório da propriedade do imóvel aconteceria no dia 20, como me pedira minha sogra, que contava com a próxima rodada de juros e correção monetária da caderneta de poupança.

Se havia rumores de que aplicações financeiras com rendimentos altos estavam com dias contados e de que não mais valeria a pena manter dinheiro em poupança, era de se esperar que a família do vendedor o pressionasse a desistir do negócio, até porque não havia nenhum documento assinado. Achei prudente, então, conversar a respeito com Dona Madalena e sugeri que fôssemos ao coronel para ratificar o compromisso que assumi em nome dela, se possível adiantando uma parte do pagamento, o que dificultaria eventual desistência.

Ela, de uma sagacidade impressionante, mesmo sem nunca haver explorado seu tino comercial como poderia, entendeu rápido o cenário e o motivo de minha preocupação. Foi até seu quarto de dormir, raspou o que havia no cofre e me pediu para apresentá-la ao vendedor naquele dia mesmo, quando daria de sinal 20% do valor do imóvel.

À noite, ainda no portão da casa do vendedor e antes que fosse por mim apresentada, minha sogra antecipou-se de uma forma fulminante, concisa, clara e objetiva: “... muito prazer, coronel, eu me chamo Madalena Veras e pelo que sei palavra de coronel não volta atrás, não é mesmo?” 

O velho militar arregalou os olhos, engoliu seco, cumprimentou-a com breve aperto de mãos e nos convidou a entrar e sentar. Em alguns minutos, ele e a esposa assinaram em silêncio o recibo de compra e venda que eu, testemunha do negócio, preparei ali mesmo com minha Olivetti Lettera 32. 

Três meses depois, numa manhã de domingo, o coronel passava diante de sua antiga casa de praia quando foi convidado pelos meus sogros a beber uma dose de uísque com água de coco e camarão acebolado. Aparentemente refeito do “xeque-mate” que sofrera, estava em paz e falava sobre a nova obra que estava construindo ali perto, no momento em que olhou para Dona Madalena e nos revelou: “...naquela noite, eu sei que perdi dinheiro, que arranjei uma briga feia com meus filhos, genros e noras, mas não podia, de maneira nenhuma, deixar uma mulher corajosa como a senhora ter dúvidas quanto a minha palavra na frente de minha família!”



19 comentários:

  1. Excelente. Dona Madalena, matuta esperta. Rsrsrs Pena que foi um alagoano que iniciou um processo tão tenebroso: Collor de Mello.

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  2. Excelente. Dona Madalena, matuta esperta. Rsrsrs Pena que foi um alagoano que iniciou um processo tão tenebroso: Collor de Mello.

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  3. Excelente. Dona Madalena, matuta esperta. Rsrsrs Pena que foi um alagoano que iniciou um processo tão tenebroso: Collor de Mello.

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  4. Vivemos muitos carnavais felizes nessa casa! 😄

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    1. Lembra que não havia corrimão na escada? E nunca nenhuma criança se estatelou no chão. Os anjos da guarda ganhavam hora extra e adicional noturno naquele tempo.

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  5. Eu aqui, de longe, apenas lendo - já fiquei com medo de D. Madalena... imagino o Coronel, ao vivo, frente a frente e ainda "tendo" que apertar a mão dela... (rsrs).
    Nasser.

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  6. Muito esperta dona Madalena!Lembro muito bem desse período em que os juros da poupança andavam a galope.

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  7. Mais um belo texto! Gosto muito dos seu relatos cotidianos!

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  8. Hayton, Boa crônica. Gostei da leitura.

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