terça-feira, 16 de abril de 2019

Os afilhados de Dona Canô


Chegava à Bahia em maio de 1999, vindo de Pernambuco. Na primeira conversa com os gerentes sobre o papel do Banco do Brasil na virada do século 21, recorreu à questão filosófica que abre “Cajuína”, canção com a qual o filho de Dona Canô, a mais ilustre moradora do Recôncavo baiano, havia expressado sua angústia diante da morte do poeta Torquato Neto: “existirmos: a que será que se destina?”

Achava absurdo que o volume de empréstimos concedidos no maior estado do Nordeste estivesse bem abaixo dos depósitos ali captados. Exportar essa diferença de recursos para estados mais desenvolvidos só iria ampliar o imenso fosso de desigualdades regionais no país.

Como alertara nos anos 80 o ex-superintendente Nivaldo Alencar, a grande ameaça à sobrevivência do bancão seria perder a sua identidade  e "bradescalizar-se". Isto é, passar a fazer apenas aquilo que seu maior concorrente privado já fazia muito bem e a custos menores. Acabaria tornando-se descartável.

Mas o que poderia e deveria ser feito? "Caminhe sempre com um saco de interrogações numa mão e uma caixa de possibilidades na outra", diria Nizan Guanaes.

Antes de tudo, reaproximar-se das pessoas, das prefeituras, principalmente nas cidades menores, aquelas que mais sofreram com ameaças de fechamento de agências, demissões ou transferências compulsórias de funcionários durante o ciclo de recuperação do banco nos anos 1995/96.


Havia em algumas regiões pelo menos 60% de analfabetos – zona rural de Jacobina, por exemplo. Embora subutilizado, dormia em berço esplêndido na prateleira um santo remédio para curar a dor desse flagelo humano: o
BB Educar, programa de alfabetização de adultos, criado em 1992 pela área de RH do bancão, com base no método Paulo Freire.

O filósofo e pedagogo Paulo Freire (1921 – 1997) desenvolvera seu método de alfabetização no início dos anos 60. Não utilizava cartilhas para ensinar coisas como “o boi bebe e baba” ou “vovó viu a uva”.

Preferia termos comuns no dia a dia das pessoas. Pescadores deveriam aprender a escrever: “peixe”, “canoa”, “anzol”; já agricultores aprenderiam: “enxada”, “terra”, “plantio” etc. A partir da decodificação fonética desses termos, o repertório seria ampliado com outras palavras e suas conexões.

Coordenada por Vânia Venâncio e Avelar Matias, hoje diretor de gestão de pessoas do bancão, nasceu uma poderosa networking, envolvendo líderes comunitários de todo o estado. É bom lembrar que ainda não existiam: FaceBook, Twitter, Whatsapp etc.  

Sem as plataformas de hoje nas redes sociais, era importante escolher uma madrinha carismática e respeitada para despertar na população o interesse pelo BB Educar na Bahia e ajudar a esclarecer os formadores de opinião sobre o propósito de tudo.

Falou-se à época em Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Zélia Gattai etc. Acabou sendo convidada Dona Canô que, aos 92 anos, com sangue nos olhos, topou na hora: “é isto mesmo que estou ouvindo? o grande Banco do Brasil quer que eu seja a madrinha de um programa lindo como este?!”

Logo depois, no lançamento em Santo Amaro da Purificação, lembrava a seus afilhados, a maioria na casa dos 40 a 50 anos: “... minha gente, temos mais é que agradecer a Deus por essa oportunidade, porque quem aprende a ler, mesmo depois de velho, deixa de querer advinhar o que está escrito nos livros e nos jornais...”

Depois do almoço, ao retornar para Salvador pela BR-420, trazia a certeza de que tudo  acabaria bem – empresas desse tipo nunca serão descartáveis  – quando ouviu no rádio do carro a voz marcante de uma filha de Dona Canô, que assim cantava outros versos do irmão querido:

“...Eu sou o cheiro dos livros desesperados,
sou Gitá gogoia, seu olho me olha, mas não me pode alcançar.
Não tenho escolha, careta! vou descartar:
quem não rezou a novena de Dona Canô,
quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor,
quem não amou a elegância sutil de Bobô,
quem não é Recôncavo nem pode ser reconvexo...”

37 comentários:

  1. Gosto da escrita de fácil entendimento, com um cheirinho de romantismo e gosto de saudade. Parabéns, amigo escritor

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    1. Ops! Escritor? Não. Quando muito, um cronista aprendiz, que mistura memória, pesquisa e imaginação.

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  2. Grande Hayton, a beleza e qualidade de seus textos, crônicas, tem como primor a verdadeira história da vida. Relembro e tenho a Felicidade de ter conseguido aplicar este Programa, após várias tentativas, quando foi Gerente em Luis Eduardo Magalhães. Programa Fantástico, de uma Contribuição Social elevada. Gratificante.

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  3. não existiam: FaceBook, Twitter, Whatsapp... ficou mais fácil ensinar a escrever correto...

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    1. Blz, amg! Vc é 10! Pq será q escrevem assim? Qq6 acham? 🤣

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  4. Considerando que carreguei a bandeira do BB Educar por onde passei, essa crônica alimenta a alma.

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  5. Pura realidade, mas adoçada pela métrica suave.

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  6. Quanta emoção senti por ter vivido esses momentos com você. Privilégio meu. Me lembro como hoje os belos comentários a seu respeito por ter ido buscar uma senhorinha tão marcante . Parabéns meu amigo amao

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    1. O privilégio era meu, minha amiga! Como dizíamos antigamente, a Bahia é a Bahia. Foi ela que me deu “régua e compasso” para tocar em frente. Depois disso, “aquele abraço”.

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  7. Foi nessa época que conheci ele (já que você resolveu escrever na terceira pessoa), quando fui escalado para representar minha área na posse de novos funcionários após longo período sem admissões.
    Era um momento de profundas mudanças para mim, pro BB e para o país, mas a fala dele na cerimônia enchia a todos de fé no poder transformador de nossa mobilização.
    Algo acontecia na Bahia e a gente de longe sabia, assim como o vento que lança a areia do Saara sobre os automóveis de Roma.

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    1. Meu amigo, alguém um dia disse que a vida é feito uma pista de aviação: liga o nada a coisa nenhuma; o importante é o vôo. A Bahia nos inspirava a todos a voar alto. Deve ser por isso que Gil um dia disse “o melhor lugar do mundo é aqui e agora!”

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  8. Muito bom. Sinto orgulho de ter participado desse momento.

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  9. O BB, historicamente, sempre se destacou por ser um braço do desenvolvimento do nosso país!

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  10. Ao ler essa saborosa história, lembrei que fui coordenador nacional do BB Educar de 1993 a 1995. Experiência riquíssima!
    Hoje figuras públicas perguntam quem foi Paulo Freire!!!!

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    1. Figuras públicas, hoje, mas despontando para o anonimato, meu caro Riede. Enquanto Paulo Freire virou uma figura lendária a inspirar inclusive novas gerações de educadores.

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  11. Faltou alfabetizar a turma que agora bate no Paulo Freire. rsrsrs

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  12. Com certeza seria publicada na inesquecível série "histórias não escritas do Banco do Brasil". Mas por que você chama o BB de bancão, e ainda por cima no diminutivo?

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  13. Não é diminutivo, Diniz. Uso letra minúscula para escrever “bancão” porque não se trata de nome próprio. E se o trato assim é justamente para diferenciá-lo dos demais bancos e banquinhos. Nem poderia ser diferente para quem, como eu, devotou 42 dos melhores anos da vida a essa paixão.

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  15. Boas lembranças, amigo Jurema! O lema do BB Educar era voltado para a libertação das pessoas a partir do aprendizado e leitura. Lembro como hoje, no encerramento de uma das turmas do BB Educar em Ipirá-BA, ouvi de uma senhora, aparentando seus 60 anos... “agora eu posso ler a Bíblia!”, em resposta à minha pergunta sobre o que aquele programa significava para sua vida? De 1999 a 2001, foram mais de 18 mil jovens e adultos alfabetizados na Bahia nesse programa.

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    1. Que maravilha, Avelar!18 mil alfabetizados só na Bahia. Imagine o que teria acontecido se todos os estados do Norte e Nordeste tivessem feito algo na mesma linha há 20 anos.

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  16. Grande crônica e importantes comentários. Muito bom saber que o BB tem sua parcela na educação deste Brasil, através do método do grande Filósofo Educador Paulo Freire.

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  18. Amigo Hayton, Vou respeitar sua opinião, mas diria que você já é um bom cronista e escritor. Sucesso.

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  19. O seu livro te espera, você tá esperando o quê?
    Vou esperar você se deliciar com as pratadas de Peixada com camarao, pimenta de cheiro e pirão.
    Depois sente-se e escreva o esperado livro " Crônicas de Hayton Jurema da Rocha". O Paraíba mais Alagoano que já vi. Kkkkkkkkkk

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  20. Muito bom escritor! Escrita com conteúdo e de fácil assimilação. Bravo!

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  21. É, você enxergava longe. Logo a Dona Canô, uma das figuras mais veneradas da Bahia. Só podia dar certo.
    Parabéns, Hayton, pela ideia e pelo texto.

    Um abraço do Orlando

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  22. Interessantíssimo o espectro de raciocínio para alavancar o BB, uma pessoa querida , um bom projeto já existente, e lógico , alguém com a ideia esplêndida de executar!! A escrita do fato nem se comenta , falanonque muitos não testemunharam!

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  23. Dona Canô...mulher de fibra,inteligente...

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  24. Roma Negra, que cidade, que Santo Amaro da Purificação, que beleza !!!

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