quarta-feira, 1 de maio de 2019

Millôr tinha razão

O impagável Millôr Fernandes (1923 – 2012) dizia que “a única diferença entre a loucura e a saúde mental é que a primeira é muito mais comum”. Seria loucura minha duvidar de sentença tão lúcida. Isso só aumenta a certeza de que está em minhas mãos resolver um pequeno problema que me aflige desde moleque.

Sei que se trata de compulsão mais difícil de superar do que o tabagismo. Eu, por exemplo, já não fumo desde abril de 1990. Se bem que até agora quando preparo meu cuscuz com ovos mexidos e café preto, bate saudade dos últimos tragos numa rede no alpendre da casa em que morava em Porto Calvo, Norte alagoano.

O tal distúrbio, osso duro de roer, começa na infância e metade das pessoas em idade escolar vive às voltas com ele. Comigo foi exatamente assim. Surgiu entre dois e três anos de idade lá onde nasci, em Itabaiana, Agreste paraibano, terra muito bem descrita por seu filho mais ilustre, o músico e compositor Severino Dias de Oliveira, vulgo Sivuca, que resgatou da memória imagens assim: 

"Fumo de rolo, arreio e cangalha,
eu tenho pra vender, quem quer comprar?
Bolo de milho, broa e cocada,
eu tenho pra vender, quem quer comprar?
Pé-de-moleque, alecrim, canela,
moleque sai daqui me deixa trabalhar!
E Zé saiu correndo pra Feira de Pássaros
e foi ‘passo-voando’ pra todo lugar.
Tinha uma vendinha no canto da rua
onde o mangaieiro ia se animar,
tomar uma bicada com lambu assado
e olhar pra Maria do Joá...”

Mas não teve Maria do Joá que me curasse da bendita compulsão. Dona Eudócia, minha mãe, deve ter se perguntado: por que só ele, coitado, dos nove filhos? Tive que suportar olhares curiosos desde cedo. Por isso considero falha imperdoável dos estudiosos do assunto que suas causas ainda sejam desconhecidas. 

O que se descobriu até agora é que a crise aparece de forma automática, especialmente quando a pessoa está envolvida numa atividade imersiva, como: ler, escrever, ver filmes, ouvir música ou assistir a uma partida de futebol quando seu time está perdendo, sob ameaça de ser rebaixado de divisão. 

Existe alguma explicação para isso? Nenhuma. O perigo é que maioria de nós sente prazer e relaxamento quando a crise se instala, mesmo sabendo que está  sujeito a outras doenças associadas, como os chamados transtornos de ansiedade. Millôr tinha razão: "não devemos resistir às tentações; elas podem não voltar".

O prejuízo de quem sofre com esse distúrbio não é apenas estético. Já foi demonstrado que pode causar anormalidades na arcada dentária, na língua ou até causar complicações mais graves - infecções da pele, gengivites, dentre outras.

Não duvido nada já haver deputado federal rascunhado projeto de lei voltado para criação de espaços especiais onde possam nos confinar sem a menor crise de consciência. E o cartel das empreiteiras, de olho nas chamadas oportunidades de mercado, quem sabe anda discutindo as regras básicas para constituição de um novo propinoduto.

Paciência. Como ainda me sinto um idoso ligeiramente jovem – velho só é velho quando não pensa noutra coisa –, espero qualquer hora dessas, com um pouco mais de força de vontade, resolver de vez o meu problema. 

Millôr dizia também que “certas coisas só são amargas se a gente as engole.” Por isso continua tão difícil para mim resistir à compulsão de roer às unhas.

Das mãos, que fique bem claro! Pra não dar mau exemplo pros netinhos. 

47 comentários:

  1. Adorei o cantinho do pensamento. Cacacaca. De fato, estamos sempre ávidos por compensações para atenuar a jornada da vida e do viver. Contudo, as melhores delas, ainda são em forma de gente. Algumas pessoas têm o dom de nos resetar, quando chegam até nós, e de nos reinicializar, quando nos abraçam. Estas pessoas, e por elas, vale a pena a sofrência do cuscuz, com ovos e café, e sem a pitada costumeira de fumaça.

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    1. Isso mesmo, Ricardo! A fumaceira apenas ofuscava o que meus olhos poderiam ver.

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  2. E ainda encontrou o seu " Par prefeito"!Como dizem wue os exemplos" arrastam", tadinhos dos netinhos. ..rsrsrsrs

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  3. Quanto suspense, rs... Muito bom! E minha vó diria que é só passar pimenta nos dedos!

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  4. Aos 74 deixei. O anelar da mão direita foi a última e mais sacrificada vítima. Após cirurgia na mão por conta de uma cirurgia de tunel do carpo. 🤭🤭🤭

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  5. Síndrome de túnel do carpo, corrigindo.

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  6. Quem torce por Vasco da Gama, não pode fugir muito disso. Coitadas das unhas....

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    1. E agora com o CSA vacilando feio, outras unhas dos correm risco.

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    2. Kkkkkkkkkkkkkkkkk. Desculpa, tio. Não contive a gargalhada.

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  7. Texto bem compreensível , e saudoso. Até os amigos também pegam esse mal, a esposa , a cunhada ... síndrome da ansiedade diária , kkkk

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  8. Como Millor tinha razão, que volte o Pasquim.

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  9. Já tive essa compulsão, Hayton. Hoje em dia não mais!

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  10. Adorei! Fiquei curioso até o último parágrafo!

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    1. Daria quase tudo para saber em quais alternativas essa mente brilhante pensou...

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  11. Vício danado ,este de roer as unhas!!!kkkk

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  12. Excelente crônica, Hayton. Sou também um irrecuperável devorador das unhas das mãos. As dores decorrentes desse hábito não costumam ser pequenas. Para nós, parafraseando Pessoa, tudo vale a pena se a unha não é pequena. Abraçáo do Sidney.

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  13. E eu pensando que era “fumar”! Me enganou bem!

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  14. Realmente Aguilar, com esse vício e torcendo para o Vasco, não há unhas que resistam..

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  15. Ainda bem que nunca te roendo unha, senão ia puxar sua orelha. Kkk

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  16. Rindo alto aqui. Kkkkkkkk
    Fiquei curiosa até o fim.
    Um vício é um vício. Sorte a minha que escapei desse. Rsrsrs

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  17. Pelo texto, relembrei você fumando no banheiro da Rural, na Centro Maceió. Jura que nunca fumou?

    Um abraço do Orlando

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  18. Fumei sim, Orlando. Como escrevi no segundo parágrafo, até abril de 1990. Foi bom (e ruim) enquanto durou...

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  19. “Olha, já estou roendo unha, a saudade é testemunha do que agora vou dizer (...)”
    Se até o seu Luiz é viciado, ninguém tá qualificado para censurar você.

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    1. Os iniciados sabem, Dedé, que existem poucas coisas que dão mais prazer e relaxamento.

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  20. Este trouxe a impaciência da descoberta, que Hábito?
    Bom Demais.
    Cada vez melhores textos.

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  21. Caraca! Que suspense! E que revelação! Hahahaha
    Muito bom, como sempre!

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  22. Parabéns!!!!!fumo de rolo de Arapiraca!!!!!! Lindo texto!!!!

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  23. Millôr sabe tudo: "não devemos resistir às tentações; elas podem não voltar". Adorei, me vi nessa crônica. Sou uma roedora de unhas inveterada. De vez em quando a compulsão ataca, e aí não tem jeito, é melhor não resistir.

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    1. É isso, Helô. Chuva de morro abaixo, fogo de morro acima e a vontade de roer as unhas quando se instala, não tem cristão que segure.

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  24. Roer o cantinho da unha é trazer o cantinho do pensamento pra perto da gente. Que gostoso esse texto Hayton.

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  25. Excelente o texto! Daqueles que nos fazem ir até o fim. Parabéns!

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  26. Sensacional! kkkk. Lembro bem deste dia em que o Breno, junto com o avô, assistiam um Vasco e Flamengo. Eu estava segurando a câmera com uma das mãos para capturar o momento e a outra mão, imaginem.

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    1. Mais dois roedores a caminho. E o cordão dos compulsivos cada vez aumenta mais... rsrsrs

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  27. Roberto Ferreira da Silva2 de maio de 2019 às 06:02

    O nível acadêmico de suas crônicas certamente será oportunamente reconhecido. Os seus amigos torcemos por isso. Grande abraço.
    P.S. Muito obrigado.

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  28. Nem tanto, meu caro Roberto. Já me dou por satisfeito por merecer a atenção e o carinho de amigos como você.

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  29. Crônica maravilhosa, muito bem escrita e com conteúdo que segura o leitor até o final. Dá de 100 nesses pseudo jornalistas que existem hoje em dia. Parabéns!

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  30. Que suspense! Excelente crônica.
    Marival

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  31. fiquei pensando em minha filha mais nova Bianca, ela até tenta, planeja, sonha mas não consegue deixar de roer.

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  32. Não tenho mais palavras para explicar o quanto me emociono ao ver suas crônicas, quando deparo com essas saudosas fotos: Agostinho, Eudocia, o garotão Hauton e a titia Vitória do lado. Também o jovem idoso Hayton com seu netinho.Bravo!!!

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  33. Ainda tem Agostinho Filho nos braços da mamãe Eudocia

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  34. A santa curiosidade segurou minha atenção até o final. Cada dia melhor amigo Hayton. 👏👏👏👏

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  35. 😂😂😂😂😂Elizabeth Otaviano

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