quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Nem se fosse possível!

No auge do bate-boca sobre se havia entre nós uma gripezinha à-toa ou uma virose de proporções funestas, Pedrinho viu o seu querido sogro se queixar de formigamento nas mãos e nos pés. Embora não fosse do ramo, desconfiou do descontrole da diabetes. Como o velho tinha pavor de hospital, vinha evitando o acompanhamento médico durante a pandemia. 

 

Isso foi ruim. O sogro acabou tendo que amputar um dedo, parte do pé esquerdo e contraiu osteomielite – infecção nos ossos, com muita dor, febre e calafrios.  Para a família, a falta de higiene dos enfermeiros nos curativos teria transmitido a bactéria de uma criança internada no quarto ao lado. Deu-se então o pior: ele não resistiu. 

 

Muito apegado ao sogro – que lhe dera abrigo e comida nos primeiros anos de casamento –, Pedrinho sentiu bastante. “Virei um cocô, e queria mais que alguém puxasse a descarga”, disse-me. Nem esse empurrão recebeu dos amigos. Restou-lhe dividir o luto oferecendo o ombro à sogra, à mulher e aos cunhados.

 

Vieram em seguida os aborrecimentos com o inventário e até hoje não ocorreu o desfecho do arrolamento de miudezas no valor, se tanto, de R$ 250 mil. Por ser bancário aposentado e mais afeito a essas coisas, teve que assumir o leme do barco.

 

Contou que procurou alguns advogados e o mais barateiro, um amigo de ginásio, pediu R$ 4 mil, contra R$ 12 mil exigidos por “uma tarada jurídica que a sogra lhe apresentou. "Isso porque era amiga da família, veja você!”, me disse.

 

Quis ajudá-lo apontando um ex-colega de trabalho que inclusive lhe devia alguns favores: Dr. Galdino Lima, vulgo “Dino” – por conta de petições jurássicas recheadas de “destartes”, “entrementes” e “outrossins” –, que hoje advoga na região de Penedo, na foz do rio São Francisco, no sul de Alagoas. 

 

Por e-mail, Dino pede R$ 25 mil. Esclarece que trabalhou na OAB e viu a diferença entre um bom e um mau profissional, que a tabela prevê 10% de honorários. E narra dois casos: primeiro, refere-se a tratamento dentário onde o odontólogo cobra R$ 50 por extração, o prático, R$ 25 e, se o paciente topar sem anestesia, fica por R$ 10. Noutro caso, relata que um bancário se demitiu e emprestou a “indenização” a 8% a.m. Agora, não consegue receber do tomador e as despesas com custas advocatícias e processuais são maiores do que esperava ganhar. E provoca no final: “Não venha me dizer que você não pode pagar por sua sogra!”




Chateado com “a ingratidão, a insensibilidade e o corporativismo improdutivo”, Pedrinho rascunha uma possível resposta em 10 tópicos e 
pede minha opinião a respeito

 

“Dr. Dino,

 

Primeiro: um dos princípios do Direito é cristalino – “Ninguém poderá alegar em sua defesa a ignorância das leis”. 

 

Segundo: o direito à herança está previsto no Código Civil.

 

Terceiro: no tempo em que se amarrava cachorro com linguiça, boa parte da população era analfabeta, necessitando-se de advogados. Agora, não. 

 

Quarto: se um homem morre sem dever nada a ninguém e sua família decide quem fica com o quê, qual o custo de se fazer um simples requerimento ao juiz? Gasta-se tanto em tinta, papel, tempo e fosfato que justifique pagar de 5% a 10% do valor dos bens?

 

Quinto: você, que foi assessor da OAB, pode ter esquecido, mas vários companheiros seus negociam por menos que os 10% previstos na tabela.

 

Sexto: de carrinho de pipoca até prédio de apartamentos, o rito judicial é praticamente o mesmo. É justo isso? 

 

Sétimo: você sabe quanto custa ganhar R$ 25 mil? Acha justo que uma viúva, para permanecer com aquilo que juntou a vida inteira de trabalho, economias, de filas e de ônibus, que terá agora que sobreviver com aposentadoria de R$ 350 por mês, pague 10% de tudo que tem para que alguém coloque seu nome e descreva seus bens num formulário padrão em poucos minutos de trabalho e o submeta ao juiz? Ah! – você dirá –, tem o acompanhamento! Isto é, consultar o andamento do processo via Internet ou, na pior das hipóteses, quando o advogado passa no fórum, verificar se o dossiê não foi extraviado ou pedir para que lhe soprem a poeira de cima.

 

Oitavo: no caso do meu sogro, nem há necessidade de inventário. Basta arrolamento.

 

Nono: era como os netos dele o chamavam.

 

Décimo: para mim, o bom profissional é aquele que sabe atribuir valor justo ao que faz. Não é preciso mestrado ou doutorado para se fazer um trabalhinho desses. Está no “bê-á-bá” do Direito. Quem opta por extrair um dente por R$ 10, sem anestesia, sabe do risco. É mais um mesquinho tragado pela avareza, pecado capital em que também incorrem aqueles que emprestam dinheiro a 10% ao mês ou os que querem ganhar muito com pouco esforço...”


Li, reli e propus apenas algumas vírgulas, além de dois ou três ajustes. Pedrinho sabe que há 13 anos já não é obrigatório fazer inventário por via judicial quando não existe divergência na partilha de bens entre os herdeiros e todos são maiores. Mesmo assim, fez questão de responder à mensagem recebida. 

 

Sentiu-se livre e solto, como se gritasse: "Nem podendo, doutor!" 

29 comentários:

  1. Adorei a carta. Você, realmente soube aproveitar muito bem uma situação comum e transformar num texto palatável e informativo. Os advogados são profissionais importantes e necessários e há de se valorizar o seu trabalho, mas convenhamos que, em alguns casos, não são indispensáveis, como nos casos de inventários e divórcios consensuais. No entanto,
    muitos agem como escrevedores de cartas para analfabetos, cheias de floreios e expressões inteligíveis que dificultam o entendimento e usam a burocracia da justiça como desculpa para tirar dinheiro de desavisados. É preciso simplificar os processos jurídicos, extinguir o advoguês para dar a todos acessibilidade à justiça. Essas complicações que ainda gravitam no universo imaginário, de quem não sabe que muitos processos dispensam um advogado, deveriam ser melhor divulgados e se criar orientações com termos digeríveis para normais mortais que já não sabem o latim.

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    1. Corrigindo: onde está escrito inteligível, leia-se ininteligível.

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  2. Por isto eu e Braulino fizemos doação. Já repartimos os unico bem que amealhamos, cada um com sua parte sem precisar de inventário. Tudo acabado. Sem dor de cabeça. Abração Dayse.

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  3. Reserva de mercado, corporativismo e ...criam um mercado sem regras justas no mundo das normas legais.

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  4. Meus pais foram sábios, minha mãe, trabalhou no cartório de imóveis e conhecia vários casos sobre inventário, ou famílias que se separavam por heranças. Eles passaram tudo que tinham conquistado para os filhos, deixando assim, cada um com seu cada qual.
    Obrigada por fazer o amanhecer das
    quartas- feiras mais interessante.

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  5. Super legal. Mesmo com eventuais vírgulas em lugar errado, eu até aprovaria a cartinha do jeito que veio. E, outra coisa, "Nem podendo, doutor" é ótimo, kkkkkkkkk. Adorei.

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  6. Adorei o "Nono"...

    Me fez lembrar de meus dois novos que nem cheguei a conhecer. Lembro apenas das fotos deles na parede da sala onde morávamos em SC.

    O nono materno era a o próprio Barão do Rio Branco, com seu bigodão e a carequinha reluzente.

    Andreola

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  7. Hahahaha... Ele me ganhou e ganhou tudo com o Nono.
    Dedé

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  8. Causo interessante. Parece que certas coisas correm atrás de mim. Não obstante (olha outro termo que os advogados gostam de usar em suas caudalosas petições ctrl v, ctrl c “googleanas”) as fortes chuvas, fui, ontem, e por conta da atividade que ainda exerço, visitar produtor rural, de banana prata e pacovan, lá no alto do Vale da Pelada, em União dos Palmares. Lugar lindo, mesmo estando no topo da Serra dos Frios. O vale vem depois, mas aí já é outro assunto. O meu visitado agricultor me falou, exatamente, de situação análoga ao que o Hayton tão bem aborda e nos brinda em mais uma quarta-feira ainda de muita chuva. Vou compartilhar a indignação, com o mercenarismo dos advogados, do Pedrinho, com o agricultor visitado e aconselhá-lo mandar os causídicos dele se lascarem, acrescentando: “nem a pau Juvenal”!

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  9. Rapaz… passamos por um inventário recentemente, nunca vi tantas despesas, taxas, emolumentos etc etc. por pouco, não precisaríamos vender o imóvel pra cobrir tanta despesa. Esse processo deveria ser facilitado muito…..
    Aguilar

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  10. Todo dia, na floresta de Aiag, acordam o tolo e o esperto. O tolo, por negligência, imprudência ou imperícia (elementos da culpa, ínsita da condição de tolo) fica lá, inerte, como se aguardasse, por um anátema de vida, ser o "prato principal" do oportunista da vez. O esperto, farejando isso, sabe que não precisa de muito esforço para sugar a alma de sua "presa". Em um bote rápido e certeiro, crava suas "presas" no tolo incauto e, tal qual uma "sanguessuga em pele de cordeiro", sorve-lhe até a última gota de sangue. Qualquer semelhança com acontecimentos do mundo real terá sido mera coincidência!

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  11. Bom Dia... Esse "causo" de causídico, é, de fato, mais comum do que se pensa. Tem vezes que o advogado vê a "presa" fragilizada e apresenta uma conta enrolada para, num golpe de misericórdia, posar de herói e propor a aquisição do imóvel a um preço "justo" para que os herdeiros não "sofram" mais o interminável processo jurídico e a enxurrada de custas...

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  12. Belo decálogo! Deveria ser incorporado ao Código Civil. Rsrs

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  13. Cleber Pinheiro Fonseca3 de agosto de 2022 às 12:27

    Irretocável. Apenas senti falta da indefectível “data venia”.

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  14. Bom dia a todos. Esplêndido texto Hayton, o que não é novidade para nós, porque já é rotina, toda quarta feira você nos presentear com suas crônicas interessantes. Como você é hábil em transformar fatos simples em registros tão coerentes e nós remete ao tempo e vivências similares. Minha família também enfrenta os abusos advocatícios com inventário. Não subestimando nenhum trabalho como o dos advogados. Sabemos que toda profissão tem os bons profissionais e outros não. Parabéns, abraço

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  15. “O bom profissional é o que sabe atribuir valor justo ao que faz”. Cada caso é um caso. Eles acabam complicando para valorizarem seus trabalhos. E nós usuários ficamos reféns desses profissionais.

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  16. Esqueci de me identificar👆👆Perpetua

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  17. A gente pensa que não tem como você conseguir, mas você consegue, se supera sempre, qualquer que seja o tema proposto.
    Nesta agora, o "nem podendo, doutor", nos leva a elocubrações.
    Por isso, nem podendo, eu falo mais nada...

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  18. Por que não facilitar as coisas? Chega de burocracia, taxas, impostos, contribuições, aporrinhações, etc. etc. Basta seguir os sábios conselhos do guru e representante divino, que é dono de rádios, jornais, TVs, igrejas e outras coisitas. Diz ele, na maior cara de pau e cinismo que um charlatão pode ter:
    “Você meu amigo, você minha amiga, senhor e senhora, pessoas que têm bens e propriedades, que têm riquezas... ora, preste atenção, se você quer fazer algo que agrade a Deus... antes de você morrer, antes de você passar pra eternidade, deixa os teus bens para a Igreja...”
    Pronto, o santo bispo tem a solução para os rábulas que querem enriquecer às custas das pobres viúvas. Melhor que ele próprio cuide de tudo o que você tem. O dourado/mestrado em finanças em universidade do estrangeiro garante que teus bens serão bem administrados.
    Não sei o que é pior: cair nas garras do bispo, ou dividir a pouca herança com rábulas inescrupulosos.
    Todas as vênias aos bons e decentes advogados.


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    1. Em tempo: chamo Nona a minha irmã mais nova, pois é assim que se chama. Francisca Nona.

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  19. Sensacional esse texto meu caro Hayton. Boas e sonoras gargalhadas dei da primeira palavra a última!!! Pura diversão.

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  20. Texto saboroso! Adorei! Diniz.

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  21. Uma das razões para os herdeiros se harmonizarem qdo da divisão dos bens.

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  22. Verdade que muita coisa já se pode fazer diretamente no cartório. O problema é que no cartório demora muito mais! Fica a sugestão para novo blog: a esperteza dos tabeliões!

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  23. Faleceram meu sogro e minha sogra. Sei o que é o problema. Como eu era muito amigo de meu sogro, que me chamava de filho, os cunhados não tocam o inventário e não me deixam fazê-lo. Por ciúmes e achando que tirarei vantagem. Eita povinho...

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  24. Não pode nem sai de cima! Mais uma crônica leve mas de conteúdo crítico e certeiro! Parabéns meu amigo. Grande abraço, Daniel Souza

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  25. Hoje em dia muita coisa dispensa a presença de um advogado. Vide as causas até 20 salários nos juizados especiais e alguns procedimentos administrativos, outrora exclusivamente judiciais. Contudo, para algumas situações, economizar no advogado pode ser o barato que sai caro. Ao final do processo, muita gente desejaria ter pago um a peso de ouro lá atrás. No mais, como um elemento dessa laia, vou me valer do direito de ficar calado e de não produzir provas contra mim mesmo, rs. P.S.: o Nono lacrou.

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  26. Ótima crônica. Já vi casos assim em algumas famílias. A presença de advogados para coisas simples é simplesmente para quem tem preguiça de ler ou não quer se envolver com situações como essa.

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  27. Que massa o texto. Linda resposta

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